1.12.07

Fosso entre ricos e pobres mantém-se quase inalterado

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Nasceu uma nova burguesia no país que amanhã referenda uma reforma constitucional para "aprofundar o socialismo"


De Julho de 2006 a Junho de 2007 venderam-se 433 mil novos carros na Venezuela. Há listas de espera de meses. "É uma coisa louca. Entras num centro comercial e observas um enorme consumo de produtos de luxo. Mas ainda a semana passada entravas num supermercado e não encontravas leite. Tem faltado frango, arroz, farinha..."

A descrição feita por Carlos Correa, antigo director da organização não governamental Provea - todos los derechos para todos, actual dirigente da Espacio Publico, é repetida por outros analistas. Às vezes, não se usa o exemplo dos Hummers ou dos Audis. Às vezes, usa-se o exemplo dos relógios Cartier, outras o das viagens em jactos privados para ir às compras a Miami.

Já ninguém pode acusar o Presidente da República, Hugo Chávez, de ser incapaz de domar a miséria, como nos primeiros quatro anos de Governo. As Nações Unidas compa-
raram 1999 com 2005: a taxa de pobreza regrediu de 49,4 para 37,1. O fosso entre ricos e pobres, porém, mantém-se praticamente inalterado. O índice de Gini, que mede essa diferença, passou de 0,498 para 0,490.

O que aconteceu? Com o petróleo a atingir recordes históricos, a eco-
nomia venezuelana cresce há 16 trimestres consecutivos. "Existe uma relação directa entre preço do petróleo, estabilidade cambial e indicadores sociais", avalia o economista José Manuel Puente. Efeitos dos programas sociais na redução da pobreza à parte, "não é que este Governo seja menos puro que os anteriores, é que nenhum teve tanto dinheiro como este".

Nos últimos anos, o país assistiu ao nascimento de "uma nova burguesia, a boliburguesia, diminutivo de burguesia bolivariana, em referência à dita Revolução Bolivariana" liderada por Chávez, comenta o sociólogo Carlos Raul Hernández.
Pode haver consequências até no referendo de amanhã sobre a reforma constitucional. No ensaio Democracia participativa e exclusão na Venezuela, o politólogo José Vicente Carrasquero lembra que "o cancro da corrupção acabou com a velha gerência". À medida que enriqueciam os antigos eleitos perdiam capacidade de sair, "ao invés de andarem na rua à procura de votos abriam um escritório para as pessoas lhes virem pedir favores".

O tema importuna Chávez, para quem os "revolucionários" deviam ser exemplo de honestidade. Há dois meses, no programa Alo, Presidente, criticou "os corruptos da boina vermelha" - "Nem mais um dólar para importar Hummer. Que é isto? Não senhor. Somos um dos países que consomem mais uísque per capita no mundo. Que revolução é esta? A revolução do uísque? Dos Hummer?"

Salmão sim, frango não

Apesar deste discurso oficial anti-consumista, "nunca se consumiu tan-
to na Venezuela", assevera Carlos Correa. Com um "paradoxo" um tanto original: "Vais ao supermercado e há uísque mas não há leite; há salmão fumado, mas não há frango; há azeite importado mas não há óleo vegetal".

Será só o poder de compra? Segundo o Instituto Nacional de Estatística, o rendimento médio por famílias subiu 34 por cento num ano: de 831.540 bolívares (cerca de 287 euros) em 2005 para 1.120.659 (387 euros) em 2006. Haiman el Troudi, um dos ideólogos do Socialismo do Século XXI, receita uma mudança cultural profunda para alterar o comportamento dos venezuelanos. Porta--vozes do sector empresarial, embora admitam aumento do poder de compra, remetem as falhas para a política de controlo de preços.

A Gazeta Oficial trazia, a 14 de Fevereiro, as tabelas de preços de produtos de primeira necessidade, como a carne, a galinha, o leite e os ovos. Os donos dos supermercados apressaram-se a afiançar que não podiam comprar, por o preço regulado ser abaixo ou muito próximo do praticado na fonte. Chávez acusou-os de retirarem os produtos para inflacionarem os preços e ameaçou avançar para a nacionalização de supermercados e afins. Os empresários prometeram respeitar a tabela mesmo que perdessem dinheiro.

34% foi quanto subiu o rendimento médio por famílias num ano: de cerca de 287 euros em 2005 para 387 euros em 2006