Ana La-Salete Silva , in Público
Apesar das melhorias criadas pela requalificação dos bairros sociais do Porto, o frio parece atravessar paredes, revela o trabalho não feito e que ameaça fazer subir a factura da electricidade.A imagem de Constância Sandeares por trás do balcão da pequena mercearia que gere no Bairro do Falcão, no Porto, é como casa para muitos dos que ali habitam. Com um xaile quente sobre as costas, recebe como família cada cliente que a visita. Ali, tudo é som: as conversas, a caixa registadora, os pedidos de ovos “bem grandes” e o roçar de casacos que podiam facilmente ser descritos com a mesma expressão e que sinalizam o frio dos últimos dias. Com vários distritos sob aviso amarelo por todo o país, as baixas temperaturas vão prolongar-se durante toda a semana e, num país onde a pobreza energética das casas é uma das piores da União Europeia, nem o sol impede o frio de ser o assunto de todas as conversas de circunstância.
Interrompida de vez em quando pelos vizinhos e clientes da mercearia, Constância, de 60 anos, fala da requalificação dos bairros sociais. Na casa onde vive desde que se lembra de ser gente, foram colocadas novas portas e janelas há cerca de cinco anos, mas as promessas de um lar mais isolado do frio não se cumpriram. Para a família de Constância, “as condições são as mesmas a nível de temperatura” e, nos últimos dias, o frio parece atravessar paredes.
Muitas vezes, Constância e o marido fazem melhorias habitacionais por conta própria e a ocasional pintura ou nova mobília são projectos pessoais que permitem que a casa fique mais sua – mas não vai além disso. Sistemas de aquecimento, isolamento ou ar condicionado são impensáveis, quando ambos os elementos do casal ganham o salário mínimo.
E para combater o desconforto do Inverno? “Ligamos o aquecedor, pomos mais um cobertor na cama, mais um casaquinho quentinho”, diz Constância Sandeares, utilizando o xaile para abraçar o próprio corpo, num movimento que repete várias vezes durante toda a conversa com o PÚBLICO. “É assim que se vai superando. A tremer, mas lá terá de ser.”
Ainda assim, a factura da luz “é caríssima”, pelo que o aquecedor é reservado apenas para os dias de muito frio, para evitar que aumentos inesperados tenham “um bocadinho” de impacto no orçamento familiar. “Ou um “bocadão”, remata, acrescentado que, nesse caso, sem apoios sociais para a tarifa da luz, teria de poupar em bens essenciais como a alimentação.
“Ter mais conforto vai custar uma pipa de massa”
Alguns metros da mercearia da dona Constância, também Helena Cardoso, sentada na sala do bloco sete do Falcão, fala dos impactos de ligar o aquecedor na factura da electricidade que lhe cai na caixa de correio. Revela que, apesar das baixas temperaturas registadas esta semana, mantém “alguma cautela” e evita usar o aparelho.
“Não vamos estar a ligar a torto e a direito, porque as facturas da luz são uma coisa doida. Com a inflação, é um Deus nos acuda! Nós sabemos que, devido ao disparar do preço da energia eléctrica, estarmos a ligar aquecimento para ter mais conforto vai custar uma pipa de massa”, afirma Lena, como é apelidada pelos vizinhos.
O seu apartamento também foi sujeito a obra, e a substituição de portas, janelas e varandas revelou-se uma mais-valia no isolamento da casa. Num sítio onde “era tudo em madeira e estava podre”, as melhorias são evidentes. “Antigamente, na varanda, tínhamos uma porta com uma abertura em baixo e tínhamos de colocar lá um cobertor ou coisa parecida, porque o frio entrava. Na casa de banho, era um terror para tomar banho”, relata.
Actualmente, tomar banho já não é um terror, mas cozinhar passou a sê-lo. Estar na cozinha é uma missão impossível devido ao “frio medonho” que, exagera, parece ser capaz de transformar qualquer pessoa num “bloco de gelo”. Isso deve-se sobretudo à marquise que foi instalada na divisão aquando da requalificação e cujo bom aspecto esconde aquele que, para Helena Cardoso, é o maior problema da sua casa ao nível da temperatura.
Durmo acompanhada com o marido e, em último caso, a gata vai lá dar uma ajudinha! Helena Cardoso
Além de isolar pouco a divisão – ao contrário das portas e janelas novas noutros pontos da casa, elogiadas pela residente –, a nova área é adornada por um laminado na parte exterior que, devido à sua inclinação para dentro, faz com que a água da chuva escorra e vá parar ao chão de casa. Na altura, Lena questionou um dos empreiteiros que trabalharam na nova marquise sobre este pormenor e ele respondeu-lhe que a posição das lâminas permitiria que o sol entrasse. “Por mim tudo bem, eu quero o sol a entrar. O que eu não queria era que entrasse o resto: a chuva, o vento, o pó…”, comenta.
Nas restantes regiões da casa, a sensação de calor e aconchego é evidente, pelo que Helena não tem motivos para se queixar e considera-se uma sortuda, porque “há pessoas a viver em condições piores”. À noite, os cobertores e a companhia do marido e da gata malhada são suficientes para poupar na factura da luz e aquecer o corpo – e o coração. “Durmo acompanhada com o marido e, em último caso, a gata vai lá dar uma ajudinha! Ficamos assim quentinhos”, brinca, entre gargalhadas.
“Se todas as pessoas tivessem o que nós temos, já era bom”
No Bairro do Cerco do Porto, os frutos das obras de requalificação já se estão a colher e, um pouco por toda a parte, os que aí habitam comentam as melhorias que sentiram na temperatura das casas, que estão, agora, mais isoladas. Interrupções causadas pela pandemia de covid-19 atrasaram o processo, pelo que alguns blocos – menos de dez – estão ainda por reabilitar.
Rosa Santos, de 58 anos, vive numa das casas que ainda não foram alvo de requalificação, mas mal pode esperar que a empreitada “que está ali ao lado” lhe bata à porta. “As pessoas dizem que as casas ficam muito confortáveis. Tenho uma vizinha que diz que a casa é quentinha e que, agora, nem precisa de ligar o aquecedor”, comenta.
Uma pessoa que só conseguia sair da cama para se sentar no sofá tinha de ter aquecimento em casa. Rosa Santos
Para já, o aquecedor continua ligado na casa de Rosa. Com algum frio e humidade nas divisões que estão em maior contacto com a rua, está habituada a pagar mais por electricidade durante o Inverno. A vida assim o exigiu: durante seis anos, cuidou do pai, que estava doente, naquela mesma casa e, entre o bem-estar dele e poupar na conta da luz, a escolha era óbvia.
“Nessa altura, tínhamos o aquecedor ligado dia e noite, portanto já estávamos habituados a pagar facturas altas. Uma pessoa que só conseguia sair da cama para se sentar no sofá tinha de ter aquecimento em casa”, observa.
Ter de gerir o orçamento familiar nesse contexto contribui para que Rosa fale tão naturalmente dos seus truques para poupar dinheiro. Quando necessário, optar pelas refeições caseiras, aproveitar as promoções e comprar menos parecem ser a chave para a sobrevivência. “Não nos falta pão na mesa. Se não der para comprar um bife de 100 gramas, dá para um de 50”, explica. Apesar de esperar grandes melhorias com as obras que, brevemente, chegarão ao seu bloco, o pequeno apartamento é um sítio onde gosta de estar. “Eu acho que, se todas as pessoas que precisam tivessem o que nós temos, já era bom”, conclui.
Texto editado por Andrea Cunha Freitas