Andreia Friaças, in Público
Em Beja, Os Infantes tornou-se um abrigo para imigrantes: é aqui que aprendem e ensinam. Há várias histórias por ouvir — desde os caminhos que se fizeram ao luar até às batalhas que enfrentam.
Quando o sol se esconde, vários rapazes caminham até ao coração de Beja. Junto à conhecida Praça da República fica a Rua dos Infantes, uma das poucas que mantêm as suas paredes com cor. Lê-se “Beja, cidade antifascista”, escrito a vermelho, ao lado de um cravo pintado. Uns passos à frente, um corpo feminino desenhado numa porta, vários autocolantes com palavras de oposição ao ódio e à xenofobia.
É nesta rua que encontramos Os Infantes, um conhecido bar de Beja, que abriu portas em 1983. Na década de 1980, serviu de palco a António Variações ou Madredeus — agora, continua a resistir à música comercial. É um espaço para dançar, jogar setas e xadrez, ou simplesmente combater o frio com dois dedos de conversa. Mas é durante o dia que este bar ganha uma nova identidade.
— Salaam Aleikum!
Maria dos Santos dá as boas-vindas em árabe. Pelas 18h, começam a chegar os alunos às suas aulas de Português. A maioria são rapazes, do Senegal, fluentes em uolofe, uma das línguas da África Ocidental. Sobem as escadas apressados, deixam as mochilas junto ao palco, e os olhares recaem sobre o quadro, colocado ao lado da máquina das setas. “As aulas são ao sábado, mas mesmo assim eles têm de vir a correr do trabalho”, diz Maria, professora de Português há 21 anos.
Ana Ademar pertence à Ressurrectos, uma associação cultural de Beja que também se dedica à integração e apoio da comunidade imigrante. Em conversa com Patrícia Santos e Ricardo Caseiro, que também fazem parte da associação, surgiu a ideia de avançar com as aulas de árabe e português. E o projecto funciona com a ajuda de todos: Patrícia recolhe as inscrições para as aulas no seu café, a Pracinha, e Ricardo, que trabalha com imigrantes, passa a palavra sobre os cursos.
Ao longo de seis meses, esta turma de 15 alunos aprende Português de forma prática: a ler anúncios de jornal, a explicar sintomas de doenças ou a partilhar opiniões. “Vêm do trabalho suados, cansados, fatigados, mas vêm sempre”, repara a professora. “É que aqui a necessidade de aprender é muito forte.”
“Arrependo-me muito de ter vindo”
Cada aluno guarda em si muitas histórias à espera de serem ouvidas: seja da infância, das dificuldades ou das lutas que continuam a enfrentar. Na última fila da aula, sentam-se Cristina e Nicusor Paraschiv. São de Soveja, uma pequena comuna na região da Moldávia. Cresceram a uma rua de distância e trazem imediatamente à memória os anos de infância em que se encontravam para dar mergulhos no rio ou para fazer bonecos de neve junto às suas casas.
Em criança, Nicusor já trabalhava com os pais a cortar árvores nas florestas. Como o trabalho ficava a mais de 300 quilómetros de casa, tinham uma “casa de madeira" que levavam agarrada ao tractor, de floresta em floresta. "Vivíamos nessa barraca. Fazia muito frio de noite, não tínhamos cozinha nem casa de banho. Fazíamos lume para nos aquecermos e para cozinharmos”, conta Nicusor. "Nessa altura, nem tinha sapatos. O meu pai arranjou-me umas botas, mas de cores diferentes. Uma era vermelha e outra verde. Ficava cheio de vergonha.”
Ao longo dos anos, a vida não melhorou. “Era difícil arranjar trabalho e os que havia eram mal pagos”, diz Nicusor. “Nós queríamos ter uma vida melhor, conseguir sair de casa dos pais. Queríamos construir a nossa própria casa”, acrescenta Cristina, de 33 anos.
Umas mesas à frente, na primeira fila, está sentado Papa Amet. Cresceu numa família de 17 irmãos em Tambacounda, no Senegal. Aos 14 anos saiu da escola e começou a trabalhar como padeiro. “No Senegal, crescemos com a mentalidade de que temos de cuidar da nossa família, temos de assumir a responsabilidade”, conta o senegalês, agora com 36 anos.
Em 2007, partiu em busca do “sonho europeu”. Uma empresa do Senegal precisava de mão-de-obra na Europa e Papa viajou, num grupo de 75 pessoas, até Espanha. “Sonhava muito com a Europa, achava que ia ter uma vida melhor”, confessa. Entretanto, passaram-se 15 anos. “Agora arrependo-me muito de ter vindo.”
“A experiência da minha vida”
A tendência é comum no Alentejo, e Beja não é excepção: nos últimos anos, o número de imigrantes não parou de subir. Em 2021, havia 15.953 imigrantes a viver no distrito — mais do dobro do que em 2015 (7445), segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Muitos vêm de países como a Índia, Senegal, Guiné-Bissau, Cabo Verde ou Timor-Leste. Entre 2020 e 2021, Beja foi a segunda cidade do país a registar uma maior subida de imigrantes residentes (13,2%), a seguir a Viana do Castelo (21,7%).
Muitos vivem em Beja pela necessidade de mão-de-obra das explorações agrícolas, mas chegam sem conhecimento da língua, das condições de trabalho ou dos seus direitos — tornando-se, assim, um grupo vulnerável, afectado pela pobreza, discriminação e exclusão social.
Para contrariar esta situação, Ana Ademar, responsável pelo Os Infantes, quis ceder o seu bar para ajudar a comunidade imigrante — e o primeiro passo foi ensinar a língua portuguesa. Conseguiram o apoio do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), que ficou responsável pela formação, e as aulas arrancaram no ano passado, com esta turma.
“Foi a experiência da minha vida”, começa por dizer a professora Maria dos Santos, que trata carinhosamente os seus alunos por “meus meninos”. “Foi uma lição para mim. Para eles, aprender é uma necessidade premente para se integrarem na sociedade, para comunicarem”, justifica.
Além da aprendizagem, esta turma tornou-se uma rede de entreajuda: ora os alunos levam e partilham sacos de comida, ora a professora faz bolo e chá para as aulas e junta-se às videochamadas que os estudantes fazem com a família. Ao longo do tempo, também foi aprendendo com eles palavras em árabe — seguindo a lição do pedagogo Paulo Freire de que o aprender completa-se com o ensinar.
No entanto, nota que o mais importante é ter empatia para ouvir as dificuldades dos alunos. “As condições em que muitos viviam deixaram-me chocada”, afirma. Um deles, por causa do trabalho excessivo, teve de ser operado ao coração de urgência. “Fiquei tão preocupada”, suspira a professora, que foi a primeira a ir visitá-lo ao hospital.
“Sem eles, não teríamos vinho nem azeite”
Durante a pandemia, as más condições em que os imigrantes trabalham estiveram debaixo de atenções devido a um surto de covid-19 entre os trabalhadores de Odemira. Mas esta é uma realidade que se mantém e que se estende a vários lugares. Em Portugal, os imigrantes continuam a estar mais representados nos grupos profissionais menos qualificados, mais precários, mais expostos à instabilidade e à possibilidade de acidentes.
No entanto, é cada vez mais gritante a importância que têm para a economia do país — não só pelas suas contribuições (em 2021, os imigrantes contribuíram com 1200 milhões de euros para a Segurança Social), mas também porque, sem eles, vários sectores económicos “não sobreviveriam ou entrariam em colapso”, lê-se no relatório anual do Observatório das Migrações.
A agricultura é um destes sectores. “Temos de perceber que os imigrantes são necessários e importantes. Sem eles, não teríamos vinho nem azeite. Porque nós não queremos ir trabalhar para o campo, é um trabalho muito duro”, defende Ana Ademar.
“Eles são explorados por todos. Pelos senhorios, pelas pessoas que os trazem para Beja ou pelas herdades onde trabalham”, acrescenta Ana, que critica a falta de preocupação das herdades em relação às condições de vida dos trabalhadores, escusando-se “por serem contratados através de empresas de trabalho temporário”.
As críticas vêm de todas as frentes. Papa Amet é um dos muitos homens que continuam a trabalhar no campo. No Verão só descansa ao domingo, passando os outros dias na labuta, debaixo de sol, com temperaturas que facilmente ultrapassam os 40 graus. Já no Inverno, a actividade é irregular. “Sempre que chove, não trabalhamos e não recebemos”, exemplifica o senegalês, que nos últimos meses não consegue receber mais de 700 euros.
“Depois de 15 anos na Europa a trabalhar, continuo a não ter vida”, diz. Está sozinho em Beja e nunca viu o seu filho, de 12 anos: “Ele está com a mãe e agora foram para o Brasil. Eu não posso ir lá, não tenho os documentos, não consigo sair e entrar do país. E não consigo que ele venha cá.”
Trabalhar e não ter dinheiro para comer
Mukesh Kumar é outro aluno das aulas de Português. De 38 anos, natural da Índia, é formado em Design Gráfico e foi já há dois anos que fez as malas rumo à Europa para encontrar trabalho na sua área.
Primeiro, mudou-se para a Ucrânia, mas as dificuldades continuaram. Trabalhou na construção civil, a entregar comida de bicicleta e meses depois assistiu ao início dos ataques da Rússia. Tal como milhares de pessoas, Kumar acabou por fugir da guerra: cruzou a fronteira da Polónia, seguiu para a Alemanha, apanhou um comboio para Paris, um autocarro para Espanha, outro para Lisboa e finalmente o comboio para Beja. “Um amigo disse que aqui havia trabalho”, diz Kumar, que chegou à cidade com 20 euros no bolso. Agora, trabalha no grupo Vale de Rosa, através de uma empresa de trabalho temporário.
Moustafa Drame, 28 anos, também deixou o seu país, Senegal, em busca de uma vida melhor. Trabalha na agricultura e, graças às aulas de Português, esforça-se por encontrar palavras que expliquem como este é um trabalho “muito irregular”, recordando a megaoperação, levada a cabo em Novembro, que levou à detenção de 35 pessoas por tráfico humano em rede, que exploravam centenas de imigrantes em Beja.
“Nessa semana, fiquei cinco dias sem trabalhar e sem receber. Como havia mais controlo policial, a empresa disse que queria verificar a documentação e disse para não irmos”, recorda Moustafa, que trabalha nesta empresa de exploração agrícola há mais de um ano. “Nunca sabemos muito bem com que dinheiro chegamos ao final do mês”, reforça.
“Os trabalhadores migrantes podem ter as suas profissões nos seus países, mas aqui só conseguem trabalhar na agricultura”, lamenta Mukesh. “A vida na agricultura é dura. Às vezes não há dinheiro para pagar a renda da casa ou dinheiro para comer”, acrescenta. “É muito difícil”, vai repetindo.
Dividir casa com 20 pessoas
A habitação é outra das batalhas que a população migrante enfrenta: muitos vivem em casas sobrelotadas, precárias e sem infra-estruturas básicas, como água ou luz. No Plano Municipal para a Integração de Migrantes de Beja de 2022, em que foram entrevistados 250 imigrantes, quase metade (44%) diz viver apenas “em parte de casa”, em situação de habitação ou quarto compartilhado.
Nesta cidade, espaços como antigos restaurantes, farmácias, ex-pensões ou armazéns estão a ser arrendados a imigrantes, mesmo que estejam em estado obsoleto ou degradado. No caso de Kumar, divide casa com 20 pessoas — e partilha o quarto com quatro homens. “Não gosto de dividir o meu quarto. Mas sinto-me impotente. Tenho de partilhar”, afirma.
Papa Amet partilha uma história semelhante. Quando chegou à Europa, vivia numa casa antiga, em Espanha, junto ao campo onde trabalhava. Lá moravam 75 pessoas. Agora, em Beja, continua a não conseguir ter o seu próprio quarto. Divide casa com 14 pessoas e paga, por um quarto partilhado, 190 euros de renda. “Não dá para viver em condições”, desabafa.
“É importante trabalharmos esta ideia de que todos podemos aprender uns com os outros”Saeid Shakra, natural da Síria
“Beja é uma cidade pequena: as pessoas, as autoridades sabem quais são os espaços que se estão a aproveitar destes imigrantes”, critica Ana Ademar. “Não podemos olhar mais para o lado.”
Do português para o árabe
A situação da comunidade imigrante em Beja é complexa — mas a ajuda na integração pode vir de todos os lados. “Podemos começar por perceber como os podemos fazer sentir respeitados e valorizados”, defende Ana Ademar.
Para dar o exemplo, neste bar não se aprende apenas Português. Em breve, Saeid Shakra vai começar a dar as suas aulas de Árabe — e, desta vez, são os portugueses que se sentam para aprender. “É importante trabalharmos esta ideia de que todos podemos aprender uns com os outros”, começa por dizer Saeid na companhia do seu filho mais velho, Abdullah, que ajuda o pai a encontrar as palavras em Português.
Saeid é natural de Hamã, uma cidade da Síria “cheia de artistas e poetas”, diz, sorridente. Em criança, o país vivia sob a alçada do regime de Hafez al-Assad, que causou a morte e o desaparecimento de milhares de pessoas — incluindo o seu pai. Em 2015, Saeid, a mãe Enaam, a mulher Batol e os três filhos abandonaram a Síria.
Atravessaram o país a pé, durante mais de cinco horas, pelas montanhas, pelos rios, escondidos da polícia, até chegarem à Turquia. "Caminhávamos só com a luz da lua”, diz Saeid. "Tínhamos de fugir. Vivíamos com medo. Tínhamos dificuldade em ter água para viver, em ter luz, em ter uma casa”, recorda Abdullah, de 22 anos.
Não conheciam Portugal mas, graças a um programa de apoio a refugiados das Nações Unidas, conseguiram apoio para viver em Beja. “Quando fugimos da Síria, combinámos que, para onde quer que fôssemos, iríamos tornar aquela a nossa cidade”, diz Saeid, que encontrou trabalho como auxiliar num centro de paralisia, enquanto Batol trabalha como cozinheira. Os três filhos estão integrados na escola e o mais velho, Abdullah, conseguiu passar no exame de admissão e entrar no curso de Informática no Instituto Politécnico de Beja.
“Beja acolheu-nos e nós queremos retribuir, fazer parte da comunidade”, sublinha Saeid, que começou por organizar um evento, no Centro de Cultura de Beja, para dar a conhecer os pratos típicos da Síria e com aulas de Árabe. “Percebi que havia interesse em aprender. Tive uma aluna que vinha de Sines duas vezes por semana para ter aulas comigo.”
“Queria muito ensinar árabe aos portugueses, é uma língua muito bonita”, acrescenta. Por enquanto, aguarda que mais pessoas se inscrevam nas suas aulas, que irão ser dadas no bar Os Infantes. “Este é o meu grande sonho”, sorri.
“O futuro… fica no futuro”
Ao fim de nove anos em Beja, Nicusor e Cristina já se sentem em casa. Às vezes vão comer ao McDonald’s da cidade ou andar de bicicleta. “Mas não saímos muito, estamos aqui há tanto tempo e mal conhecemos a cidade”, lamenta Cristina. “Estamos sempre ocupados, a trabalhar”, justifica.
Nicusor conseguiu sair da agricultura e trabalha numa empresa de limpeza em Portalegre. Dada a distância, só vai a casa ao fim-de-semana, o que fez com que Cristina deixasse o seu trabalho e ficasse em casa, a cuidar dos seus filhos de dois e dez anos. Ainda assim, nos próximos tempos, gostava de voltar a trabalhar. “Nas limpezas, por exemplo”, afirma.
Mas, com a azáfama do dia-a-dia, ter sonhos ou pensar no futuro é, para muitos, um privilégio. “Aqui não podemos pensar muito no futuro. O futuro… fica no futuro”, diz Kumar, que ainda sonha conseguir um trabalho na sua área, como designer gráfico. Já Moustafa gostava de deixar de trabalhar na apanha e ter formação para conduzir tractores. “Queria arranjar um emprego fora do campo. Ter uma vida digna”, diz. No caso de Papa, sonha ver o filho pela primeira vez. “Eu estou aqui sozinho, não tenho nada, só vivo para trabalhar. Sinto-me triste”, confessa.
Numa cidade que perde, de ano para ano, dezenas de habitantes, receber e integrar a comunidade imigrante não só é uma questão de direitos humanos — é “fundamental para o funcionamento da cidade”, defende Ana Ademar.
“A autarquia tem de agir, mas a comunidade também se pode envolver de várias formas”, considera Ana, recordando o dia em que organizaram sessões de cinema sob o tema da imigração ou quando transmitiram numa tela gigante na Praça da República a final da Taça das Nações Africanas.
N’Os Infantes, a primeira turma chegou à última aula. Fizeram-se aqui novas amizades, houve alunos que até se inscreveram nos clubes de futebol da cidade e certamente “todos ganharam ferramentas para se integrarem melhor”, defende a professora Maria dos Santos. "Os imigrantes são cidadãos de pleno direito. É nosso dever de cidadania integrá-los”, reitera a professora.
Agora, é altura de iniciar uma nova turma de Português, de Árabe... e do que estiver por vir. “Que ameaça pode haver em pessoas que querem ter uma vida melhor?”, questiona Ana Ademar. "Tudo aquilo que podemos aprender uns com os outros…", discorre Ana, que nos desafia com uma pergunta. "Não teremos todos a ganhar?"Texto de Andreia Friaças, leitura de Inês Bernardo e edição de Ana Zayara Coelho.