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8.3.23

Madalena, Elisa, Marta, Cristina, Filipa e Maria: entre a pobreza e a universidade, seis raparigas contam a sua história

Natália Faria, in Público

É possível a partir de seis universitárias oriundas das classes pobres traçar-se o retrato de um país? João Teixeira Lopes fê-lo e o resultado é um livro que mostra uma sociedade de contradições.

Madalena, Elisa, Marta, Cristina, Filipa e Maria são uma espécie de “improbabilidade estatística”, no entender do sociólogo João Teixeira Lopes que, ao fim de muitos anos a ver raparigas provenientes das classes populares a destacarem-se na sua sala de aula pelos excelentes resultados académicos, resolveu investigar as suas trajectórias, numa tentativa de, “a partir das biografias individuais, chegar aos aspectos estruturais da sociedade portuguesa”, conforme adiantou ao PÚBLICO o professor catedrático no Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Na procura de perceber o que contribuiu para que estas raparigas quebrassem a forte correlação (essa sim, estatisticamente provável) “entre origens sociais modestas e o insucesso escolar, o abandono e o fracasso”, Teixeira Lopes encontrou “manhas de sobrevivente” e “experiências de sofrimento, de humilhação e de esforço”.Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

“A ambivalência das classes populares face à escola joga-se na transição entre um desejo de mobilidade social e uma certa inaptidão para, pelo menos no início do circuito escolar, se adaptar às exigências da cultura e da ordem escolares”, escreve o autor no livro Elas – Percursos “Inesperados” de Jovens Mulheres das Classes Populares, acabado de chegar às livrarias pela Tinta da China, coincidentemente numa altura em que o Governo lançou para discussão pública a proposta de reservar 2% das vagas no acesso ao Ensino Superior público para os alunos mais carenciados, beneficiários do 1.º escalão do abono de família

Na casa dos 20 anos de idade, as raparigas entrevistadas no livro têm em comum a pertença a cidades adjacentes ao Porto ou na periferia do distrito. Os pais são emigrantes, desempregados, cortadores de carne. As mães costureiras, empregadas de balcão, domésticas. Cresceram todos num Portugal rural ou semi-rural que, aos solavancos e tropeções, se abriu à litoralização, à feminização crescente do mercado de trabalho, às quebras na natalidade, ao “arrefecimento” do controlo das famílias (numerosas, quase sempre), mas também da Igreja e de uma vizinhança sempre atenta aos desmandos da porta ao lado.

“Estas raparigas fazem já parte de famílias nucleares pequenas, são filhas únicas ou têm um irmão ou uma irmã, e os pais, esses sim, provenientes de famílias numerosas, já tiveram a preocupação de olhar para os filhos, não como força de trabalho, mas como crianças, reconhecendo a especificidade e a singularidade da criança, isto é, preocupando-se em oferecer-lhes um quarto confortável, material escolar, em comprar-lhes computadores, se necessário, centrando muito do seu esforço no projecto escolar dos filhos”, descreve ainda o sociólogo.

A par do novo olhar dos pais sobre a infância (liberta já do trabalho infantil de que os antecessores tinham sido vítimas), estas raparigas são também beneficiárias do Estado-providência. “Daquilo que é a escola pública, das actividades extracurriculares, do apoio da acção social escolar, das bibliotecas públicas onde encontram um bom ambiente para estudar, de um modelo de sociedade onde a escola é importante e faz parte da antecipação do que pode ser um bom futuro”, precisa o investigador.

Um professor que faça a diferença e o facto de terem tido um quarto só para elas fez toda a diferença na vida destas alunas, ainda segundo o sociólogo, que segue rente a uma frase da escritora Virgínia Woolf quando alunas de um colégio feminino lhe perguntaram o que era preciso para escrever: “A resposta foi ‘Precisam de 500 libras por ano e de um quarto só para vocês’. E, de facto, estas alunas, embora tivessem ainda as famílias numerosas no seu imaginário, puderam ter um quarto só para si.”

“Quando os meus pais fizeram esta casa, eu não estava na conta deles, a intenção era terem só um filho, por isso, dormia nuns arrumos, num quarto improvisado. Quando o meu irmão saiu, passei para o quarto dele, mas sempre tive o meu espaço, a minha comodidade”, relata no livro Madalena, 22 anos, nascida em Baião, filha de uma doméstica e trabalhadora agrícola intermitente e de um operário da construção civil, entretanto reformado por invalidez. “Quando percebeu que havia a expectativa de eu ir para a faculdade, não quis que eu perdesse essa oportunidade e foi [trabalhar] para o Panamá. Foi lá que teve o acidente”, acrescenta a entrevistada, referindo-se ao pai.

Neta de agricultores em Baião (só o avô paterno era pedreiro), Madalena precisou de chegar à universidade para aprender palavras como “exequível” e “conectores”. “No início do curso, o pior eram mesmo as aulas. Estava a apontar a matéria e, ao mesmo tempo, a apontar palavras para ver no dicionário, porque não percebia”, recorda.

Ausência de “capital militante”

O alheamento de Madalena face à política e mesmo ao associativismo é denominador comum às várias histórias contadas no livro. “Outra coisa eram os intervalos, quando ouvia os meus colegas a falar de política. Ficava envergonhada, porque não percebia nada. Eu até via o telejornal, mas nunca me tinha interessado, se calhar a falha é minha porque nunca fui pesquisar, apesar de ter todas as ferramentas. Mas também nunca tive uma educação partidária em casa, aquilo funciona mais como clubes ou rivalidades políticas ou pelos conhecimentos. E se tentar falar disso com os meus pais acaba sempre em discussões”, desculpa-se Madalena.

Elisa acrescenta, umas páginas depois: “Acho que não sou muito empenhada politicamente, não sou esse tipo de pessoa. Mas sinto que me falta um bocado isso, consciência política para perceber certas coisas.” Filha de um desempregado e de uma costureira, residentes em Vila Nova de Gaia, esta estudante de mestrado acaba por assumir: “Nunca participei em nenhuma manifestação.”

Marta, pai estofador e mãe empregada de escritório, casa em Penafiel, também nunca foi de se pôr à frente das manifestações. “Nesta questão do activismo político, sou um bocado céptica. Pôr-me à frente da manifestação e começar aos berros e bater com as panelas, não sou assim.”

“O facto de serem jovens que têm uma atitude relativamente conservadora em relação ao envolvimento político e até um certo alheamento face a formas mais activas, militantes ou engajadas, de participação, vem na continuidade dos pais”, interpreta João Teixeira Lopes, que encontra no esforço dos pais pela sobrevivência no dia-a-dia a explicação mais do que natural para essa “falta do que em sociologia se chama o ‘capital militante’”.

Apesar disso, todas evidenciam em relação aos pais saltos quânticos perante temas como o aborto, a sexualidade pré-conjugal, as orientações sexuais plurais, a eutanásia ou a possibilidade de adopção por homossexuais. “Todas elas têm atitudes que podemos considerar progressistas, embora depois não tenham o dito empenhamento político ou qualquer tipo de activismo”, nota.

Cristina, residente em Valbom, num apartamento que descreve como espaçoso, “com dois quartos, uma cozinha e uma sala”, foge de abordar alguns temas com os pais. “Acho que as nossas mentalidades não são compatíveis. Por exemplo, homossexualidade, ele diz algumas asneiras e eu digo-lhe que ele pensa de forma incorrecta, que está a julgar sem saber. Há alturas em que entramos mesmo em conflito (…). A minha mãe, por exemplo, é muito xenófoba com brasileiros e já cheguei a discutir com ela por causa disso.”

O pai é cortador de carnes e a mãe reformou-se por invalidez. Cristina está capaz de jurar que nenhum deles sabe sequer nomear o curso que ela frequenta: “O meu pai se calhar sabe, mas a minha mãe não. Nunca falamos sobre esses assuntos.”

Elisa também sabe que há assuntos que tem de pisar com o mesmo cuidado que teria de ter num terreno minado. “Não tenho nada contra a homossexualidade e a adopção por casais gays e repudio sempre que alguém tem posições contrárias, principalmente quando ouço comentários dos meus pais, temos muitas discussões sobre isso.”

A austeridade herdada

Entre avanços e recuos, a ética austera perante o consumo permanece em todas como herança dos pais. “Estas jovens são claramente amigas de uma atitude frugal, austera, poupada, em relação a tudo o que signifique consumo ou mesmo até um estilo de vida. Elas sabem que não têm recursos para consumos ostentatórios ou excessivos ou supérfluos. Sabem que têm famílias que se esforçaram muito para que elas pudessem continuar os seus estudos. E, é curioso, vestem essa atitude, que é muito presente nas classes populares, com uma nova roupagem que encontra na narrativa da sustentabilidade ou do consumo responsável uma justificação”, pondera João Teixeira Lopes, a partir de raciocínios como este, que ouviu a Elisa e que é bem tradutor de “uma certa exaltação de honra social alicerçada no sacrifício”: “Aprendi com os meus pais o valor das coisas. O valor material, o valor do esforço para se ter alguma coisa (…) Não se pode ter tudo, não é suposto ter tudo. E aprendi a dar valor ao que se tem. E a nível mais material, de comida, não se tem para um manjar, mas tem-se para uma sopa.”

Quando quer umas miniférias ou sair à noite, Elisa coíbe-se de pedir dinheiro aos pais. “Uso o meu dinheiro. Tenho umas poupanças, trabalhinhos que fiz ou prendas de anos. Não sou consumista, tenho consciência de que é um luxo poder estar na faculdade e é preciso fazer escolhas. Por exemplo, a minha mãe trabalha muito e ela precisa de massagens por causa do tipo de tarefas que faz. E eu prefiro deixar de ter as unhas arranjadas ou comprar umas calças para a minha mãe poder ter isso todas as semanas.”

Em relação à religião, a herança permanece, mas não tão pesada. “A maior parte continua a ser religiosa, umas mais fervorosas do que outras, mas em todas a religião é vivida como um artesanato, isto é, como uma prática muitíssimo modelada. Cada uma reza a Deus à sua maneira e cada uma tem o seu próprio entendimento do que deve respeitar ou não dos ensinamentos da Igreja”, aponta o investigador. Em suma, do mesmo modo que deixaram de ter nas famílias o seu universo auto-referencial, estas raparigas esforçaram-se por se distanciar da religião enquanto modelo norteador de relações e condutas.

Ao longo das mais de 300 páginas do livro, e ao mesmo tempo que atribui significados contextuais alargados à voz destas seis alunas, João Teixeira Lopes reconstitui as principais cenas de uma sociedade “em rápida aceleração, mas com imensas contradições”. “Uma sociedade que permitiu a estas raparigas chegar à universidade e terem sucesso escolar e poderem almejar um emprego mais qualificado do que o dos pais, mas, simultaneamente, uma sociedade que continua a exigir-lhes a elas um sobre-esforço, uma sobrecarga, que tantas vezes se reflecte no seu próprio corpo.”

Ansiedade descontrolada

Obrigadas a crescer depressa e a saltar etapas na infância e juventude, quase todas as entrevistadas denotam dificuldade em controlar a ansiedade. A maior parte porque sente que não lhes é dada margem para o erro. “Eu sofro muito com tudo o que implique dinheiro. Sei que os meus pais me estão a pagar as propinas e, por isso, tenho que dar o máximo, tenho que tirar as melhores notas. A mesma coisa com o ginásio, se os meus pais estão a pagar, tenho que dar tudo, fazer tudo. Claro que isso causa ansiedade e muito cansaço”, descreve Marta.

No seu caso, os primeiros sintomas de ansiedade começaram a aparecer no segundo ano da licenciatura. “Eu não percebia porque é que o meu coração batia tão rápido, porque é que tinha dores de cabeça, como é que eu falava e quase desmaiava”, recorda, antes de concluir: “Fico frustrada se tiver de tomar um ansiolítico, porque eu devia ser capaz, eu não quero ser ansiosa.”

“Elas pagam um preço, por vezes alto, por terem sido forçadas a acelerar os ritmos de crescimento, pelo desajuste que acusam por estarem entre dois mundos, duas linguagens, duas culturas e duas classes”, conclui João Teixeira Lopes, para quem os problemas de saúde mental que lhes foi ouvindo resultam em boa parte “da dívida que elas incorporaram face aos pais que as faz sentir que não têm tempo a perder nem dinheiro a perder”.

1.2.23

“Explorados por todos”, os imigrantes encontram refúgio neste bar de Bejas”, os imigrantes encontram refúgio neste bar de Beja

Andreia Friaças,  in Público

Em Beja, Os Infantes tornou-se um abrigo para imigrantes: é aqui que aprendem e ensinam. Há várias histórias por ouvir — desde os caminhos que se fizeram ao luar até às batalhas que enfrentam.

Quando o sol se esconde, vários rapazes caminham até ao coração de Beja. Junto à conhecida Praça da República fica a Rua dos Infantes, uma das poucas que mantêm as suas paredes com cor. Lê-se “Beja, cidade antifascista”, escrito a vermelho, ao lado de um cravo pintado. Uns passos à frente, um corpo feminino desenhado numa porta, vários autocolantes com palavras de oposição ao ódio e à xenofobia.

É nesta rua que encontramos Os Infantes, um conhecido bar de Beja, que abriu portas em 1983. Na década de 1980, serviu de palco a António Variações ou Madredeus — agora, continua a resistir à música comercial. É um espaço para dançar, jogar setas e xadrez, ou simplesmente combater o frio com dois dedos de conversa. Mas é durante o dia que este bar ganha uma nova identidade.

—​ Salaam Aleikum!

Maria dos Santos dá as boas-vindas em árabe. Pelas 18h, começam a chegar os alunos às suas aulas de Português. A maioria são rapazes, do Senegal, fluentes em uolofe, uma das línguas da África Ocidental. Sobem as escadas apressados, deixam as mochilas junto ao palco, e os olhares recaem sobre o quadro, colocado ao lado da máquina das setas. “As aulas são ao sábado, mas mesmo assim eles têm de vir a correr do trabalho”, diz Maria, professora de Português há 21 anos.

Ana Ademar pertence à Ressurrectos, uma associação cultural de Beja que também se dedica à integração e apoio da comunidade imigrante. Em conversa com Patrícia Santos e Ricardo Caseiro, que também fazem parte da associação, surgiu a ideia de avançar com as aulas de árabe e português. E o projecto funciona com a ajuda de todos: Patrícia recolhe as inscrições para as aulas no seu café, a Pracinha, e Ricardo, que trabalha com imigrantes, passa a palavra sobre os cursos.

Ao longo de seis meses, esta turma de 15 alunos aprende Português de forma prática: a ler anúncios de jornal, a explicar sintomas de doenças ou a partilhar opiniões. “Vêm do trabalho suados, cansados, fatigados, mas vêm sempre”, repara a professora. “É que aqui a necessidade de aprender é muito forte.”

“Arrependo-me muito de ter vindo”

Cada aluno guarda em si muitas histórias à espera de serem ouvidas: seja da infância, das dificuldades ou das lutas que continuam a enfrentar. Na última fila da aula, sentam-se Cristina e Nicusor Paraschiv. São de Soveja, uma pequena comuna na região da Moldávia. Cresceram a uma rua de distância e trazem imediatamente à memória os anos de infância em que se encontravam para dar mergulhos no rio ou para fazer bonecos de neve junto às suas casas.

Em criança, Nicusor já trabalhava com os pais a cortar árvores nas florestas. Como o trabalho ficava a mais de 300 quilómetros de casa, tinham uma “casa de madeira" que levavam agarrada ao tractor, de floresta em floresta. "Vivíamos nessa barraca. Fazia muito frio de noite, não tínhamos cozinha nem casa de banho. Fazíamos lume para nos aquecermos e para cozinharmos”, conta Nicusor. "Nessa altura, nem tinha sapatos. O meu pai arranjou-me umas botas, mas de cores diferentes. Uma era vermelha e outra verde. Ficava cheio de vergonha.”

Ao longo dos anos, a vida não melhorou. “Era difícil arranjar trabalho e os que havia eram mal pagos”, diz Nicusor. “Nós queríamos ter uma vida melhor, conseguir sair de casa dos pais. Queríamos construir a nossa própria casa”, acrescenta Cristina, de 33 anos.

Umas mesas à frente, na primeira fila, está sentado Papa Amet. Cresceu numa família de 17 irmãos em Tambacounda, no Senegal. Aos 14 anos saiu da escola e começou a trabalhar como padeiro. “No Senegal, crescemos com a mentalidade de que temos de cuidar da nossa família, temos de assumir a responsabilidade”, conta o senegalês, agora com 36 anos.

Em 2007, partiu em busca do “sonho europeu”. Uma empresa do Senegal precisava de mão-de-obra na Europa e Papa viajou, num grupo de 75 pessoas, até Espanha. “Sonhava muito com a Europa, achava que ia ter uma vida melhor”, confessa. Entretanto, passaram-se 15 anos. “Agora arrependo-me muito de ter vindo.”

“A experiência da minha vida”

A tendência é comum no Alentejo, e Beja não é excepção: nos últimos anos, o número de imigrantes não parou de subir. Em 2021, havia 15.953 imigrantes a viver no distrito — mais do dobro do que em 2015 (7445), segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Muitos vêm de países como a Índia, Senegal, Guiné-Bissau, Cabo Verde ou Timor-Leste. Entre 2020 e 2021, Beja foi a segunda cidade do país a registar uma maior subida de imigrantes residentes (13,2%), a seguir a Viana do Castelo (21,7%).

Muitos vivem em Beja pela necessidade de mão-de-obra das explorações agrícolas, mas chegam sem conhecimento da língua, das condições de trabalho ou dos seus direitos — tornando-se, assim, um grupo vulnerável, afectado pela pobreza, discriminação e exclusão social.

Para contrariar esta situação, Ana Ademar, responsável pelo Os Infantes, quis ceder o seu bar para ajudar a comunidade imigrante — e o primeiro passo foi ensinar a língua portuguesa. Conseguiram o apoio do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), que ficou responsável pela formação, e as aulas arrancaram no ano passado, com esta turma.

“Foi a experiência da minha vida”, começa por dizer a professora Maria dos Santos, que trata carinhosamente os seus alunos por “meus meninos”. “Foi uma lição para mim. Para eles, aprender é uma necessidade premente para se integrarem na sociedade, para comunicarem”, justifica.

Além da aprendizagem, esta turma tornou-se uma rede de entreajuda: ora os alunos levam e partilham sacos de comida, ora a professora faz bolo e chá para as aulas e junta-se às videochamadas que os estudantes fazem com a família. Ao longo do tempo, também foi aprendendo com eles palavras em árabe — seguindo a lição do pedagogo Paulo Freire de que o aprender completa-se com o ensinar.

No entanto, nota que o mais importante é ter empatia para ouvir as dificuldades dos alunos. “As condições em que muitos viviam deixaram-me chocada”, afirma. Um deles, por causa do trabalho excessivo, teve de ser operado ao coração de urgência. “Fiquei tão preocupada”, suspira a professora, que foi a primeira a ir visitá-lo ao hospital.

“Sem eles, não teríamos vinho nem azeite”

Durante a pandemia, as más condições em que os imigrantes trabalham estiveram debaixo de atenções devido a um surto de covid-19 entre os trabalhadores de Odemira. Mas esta é uma realidade que se mantém e que se estende a vários lugares. Em Portugal, os imigrantes continuam a estar mais representados nos grupos profissionais menos qualificados, mais precários, mais expostos à instabilidade e à possibilidade de acidentes.

No entanto, é cada vez mais gritante a importância que têm para a economia do país — não só pelas suas contribuições (em 2021, os imigrantes contribuíram com 1200 milhões de euros para a Segurança Social), mas também porque, sem eles, vários sectores económicos “não sobreviveriam ou entrariam em colapso”, lê-se no relatório anual do Observatório das Migrações.

A agricultura é um destes sectores. “Temos de perceber que os imigrantes são necessários e importantes. Sem eles, não teríamos vinho nem azeite. Porque nós não queremos ir trabalhar para o campo, é um trabalho muito duro”, defende Ana Ademar.

Eles são explorados por todos. Pelos senhorios, pelas pessoas que os trazem para Beja ou pelas herdades onde trabalham”, acrescenta Ana, que critica a falta de preocupação das herdades em relação às condições de vida dos trabalhadores, escusando-se “por serem contratados através de empresas de trabalho temporário”.

As críticas vêm de todas as frentes. Papa Amet é um dos muitos homens que continuam a trabalhar no campo. No Verão só descansa ao domingo, passando os outros dias na labuta, debaixo de sol, com temperaturas que facilmente ultrapassam os 40 graus. Já no Inverno, a actividade é irregular. “Sempre que chove, não trabalhamos e não recebemos”, exemplifica o senegalês, que nos últimos meses não consegue receber mais de 700 euros.

“Depois de 15 anos na Europa a trabalhar, continuo a não ter vida”, diz. Está sozinho em Beja e nunca viu o seu filho, de 12 anos: “Ele está com a mãe e agora foram para o Brasil. Eu não posso ir lá, não tenho os documentos, não consigo sair e entrar do país. E não consigo que ele venha cá.”

Trabalhar e não ter dinheiro para comer

Mukesh Kumar é outro aluno das aulas de Português. De 38 anos, natural da Índia, é formado em Design Gráfico e foi já há dois anos que fez as malas rumo à Europa para encontrar trabalho na sua área.

Primeiro, mudou-se para a Ucrânia, mas as dificuldades continuaram. Trabalhou na construção civil, a entregar comida de bicicleta e meses depois assistiu ao início dos ataques da Rússia. Tal como milhares de pessoas, Kumar acabou por fugir da guerra: cruzou a fronteira da Polónia, seguiu para a Alemanha, apanhou um comboio para Paris, um autocarro para Espanha, outro para Lisboa e finalmente o comboio para Beja. “Um amigo disse que aqui havia trabalho”, diz Kumar, que chegou à cidade com 20 euros no bolso. Agora, trabalha no grupo Vale de Rosa, através de uma empresa de trabalho temporário.

Moustafa Drame, 28 anos, também deixou o seu país, Senegal, em busca de uma vida melhor. Trabalha na agricultura e, graças às aulas de Português, esforça-se por encontrar palavras que expliquem como este é um trabalho “muito irregular”, recordando a megaoperação, levada a cabo em Novembro, que levou à detenção de 35 pessoas por tráfico humano em rede, que exploravam centenas de imigrantes em Beja.

“Nessa semana, fiquei cinco dias sem trabalhar e sem receber. Como havia mais controlo policial, a empresa disse que queria verificar a documentação e disse para não irmos”, recorda Moustafa, que trabalha nesta empresa de exploração agrícola há mais de um ano. “Nunca sabemos muito bem com que dinheiro chegamos ao final do mês”, reforça.

“Os trabalhadores migrantes podem ter as suas profissões nos seus países, mas aqui só conseguem trabalhar na agricultura”, lamenta Mukesh. “A vida na agricultura é dura. Às vezes não há dinheiro para pagar a renda da casa ou dinheiro para comer”, acrescenta. “É muito difícil”, vai repetindo.

Dividir casa com 20 pessoas

A habitação é outra das batalhas que a população migrante enfrenta: muitos vivem em casas sobrelotadas, precárias e sem infra-estruturas básicas, como água ou luz. No Plano Municipal para a Integração de Migrantes de Beja de 2022, em que foram entrevistados 250 imigrantes, quase metade (44%) diz viver apenas “em parte de casa”, em situação de habitação ou quarto compartilhado.

Nesta cidade, espaços como antigos restaurantes, farmácias, ex-pensões ou armazéns estão a ser arrendados a imigrantes, mesmo que estejam em estado obsoleto ou degradado. No caso de Kumar, divide casa com 20 pessoas — e partilha o quarto com quatro homens. “Não gosto de dividir o meu quarto. Mas sinto-me impotente. Tenho de partilhar”, afirma.

Papa Amet partilha uma história semelhante. Quando chegou à Europa, vivia numa casa antiga, em Espanha, junto ao campo onde trabalhava. Lá moravam 75 pessoas. Agora, em Beja, continua a não conseguir ter o seu próprio quarto. Divide casa com 14 pessoas e paga, por um quarto partilhado, 190 euros de renda. “Não dá para viver em condições”, desabafa.

“É importante trabalharmos esta ideia de que todos podemos aprender uns com os outros”Saeid Shakra, natural da Síria

“Beja é uma cidade pequena: as pessoas, as autoridades sabem quais são os espaços que se estão a aproveitar destes imigrantes”, critica Ana Ademar. “Não podemos olhar mais para o lado.”

Do português para o árabe

A situação da comunidade imigrante em Beja é complexa — mas a ajuda na integração pode vir de todos os lados. “Podemos começar por perceber como os podemos fazer sentir respeitados e valorizados”, defende Ana Ademar.

Para dar o exemplo, neste bar não se aprende apenas Português. Em breve, Saeid Shakra vai começar a dar as suas aulas de Árabe — e, desta vez, são os portugueses que se sentam para aprender. “É importante trabalharmos esta ideia de que todos podemos aprender uns com os outros”, começa por dizer Saeid na companhia do seu filho mais velho, Abdullah, que ajuda o pai a encontrar as palavras em Português.

Saeid é natural de Hamã, uma cidade da Síria “cheia de artistas e poetas”, diz, sorridente. Em criança, o país vivia sob a alçada do regime de Hafez al-Assad, que causou a morte e o desaparecimento de milhares de pessoas — incluindo o seu pai. Em 2015, Saeid, a mãe Enaam, a mulher Batol e os três filhos abandonaram a Síria.

Atravessaram o país a pé, durante mais de cinco horas, pelas montanhas, pelos rios, escondidos da polícia, até chegarem à Turquia. "Caminhávamos só com a luz da lua”, diz Saeid. "Tínhamos de fugir. Vivíamos com medo. Tínhamos dificuldade em ter água para viver, em ter luz, em ter uma casa”, recorda Abdullah, de 22 anos.

Não conheciam Portugal mas, graças a um programa de apoio a refugiados das Nações Unidas, conseguiram apoio para viver em Beja. “Quando fugimos da Síria, combinámos que, para onde quer que fôssemos, iríamos tornar aquela a nossa cidade”, diz Saeid, que encontrou trabalho como auxiliar num centro de paralisia, enquanto Batol trabalha como cozinheira. Os três filhos estão integrados na escola e o mais velho, Abdullah, conseguiu passar no exame de admissão e entrar no curso de Informática no Instituto Politécnico de Beja.

“Beja acolheu-nos e nós queremos retribuir, fazer parte da comunidade”, sublinha Saeid, que começou por organizar um evento, no Centro de Cultura de Beja, para dar a conhecer os pratos típicos da Síria e com aulas de Árabe. “Percebi que havia interesse em aprender. Tive uma aluna que vinha de Sines duas vezes por semana para ter aulas comigo.”

“Queria muito ensinar árabe aos portugueses, é uma língua muito bonita”, acrescenta. Por enquanto, aguarda que mais pessoas se inscrevam nas suas aulas, que irão ser dadas no bar Os Infantes. “Este é o meu grande sonho”, sorri.

“O futuro… fica no futuro”

Ao fim de nove anos em Beja, Nicusor e Cristina já se sentem em casa. Às vezes vão comer ao McDonald’s da cidade ou andar de bicicleta. “Mas não saímos muito, estamos aqui há tanto tempo e mal conhecemos a cidade”, lamenta Cristina. “Estamos sempre ocupados, a trabalhar”, justifica.

Nicusor conseguiu sair da agricultura e trabalha numa empresa de limpeza em Portalegre. Dada a distância, só vai a casa ao fim-de-semana, o que fez com que Cristina deixasse o seu trabalho e ficasse em casa, a cuidar dos seus filhos de dois e dez anos. Ainda assim, nos próximos tempos, gostava de voltar a trabalhar. “Nas limpezas, por exemplo”, afirma.

Mas, com a azáfama do dia-a-dia, ter sonhos ou pensar no futuro é, para muitos, um privilégio. “Aqui não podemos pensar muito no futuro. O futuro… fica no futuro”, diz Kumar, que ainda sonha conseguir um trabalho na sua área, como designer gráfico. Já Moustafa gostava de deixar de trabalhar na apanha e ter formação para conduzir tractores. “Queria arranjar um emprego fora do campo. Ter uma vida digna”, diz. No caso de Papa, sonha ver o filho pela primeira vez. “Eu estou aqui sozinho, não tenho nada, só vivo para trabalhar. Sinto-me triste”, confessa.

Numa cidade que perde, de ano para ano, dezenas de habitantes, receber e integrar a comunidade imigrante não só é uma questão de direitos humanos — é “fundamental para o funcionamento da cidade”, defende Ana Ademar.

“A autarquia tem de agir, mas a comunidade também se pode envolver de várias formas”, considera Ana, recordando o dia em que organizaram sessões de cinema sob o tema da imigração ou quando transmitiram numa tela gigante na Praça da República a final da Taça das Nações Africanas.

N’Os Infantes, a primeira turma chegou à última aula. Fizeram-se aqui novas amizades, houve alunos que até se inscreveram nos clubes de futebol da cidade e certamente “todos ganharam ferramentas para se integrarem melhor”, defende a professora Maria dos Santos. "Os imigrantes são cidadãos de pleno direito. É nosso dever de cidadania integrá-los”, reitera a professora.

Agora, é altura de iniciar uma nova turma de Português, de Árabe... e do que estiver por vir. “Que ameaça pode haver em pessoas que querem ter uma vida melhor?”, questiona Ana Ademar. "Tudo aquilo que podemos aprender uns com os outros…", discorre Ana, que nos desafia com uma pergunta. "Não teremos todos a ganhar?"Texto de Andreia Friaças, leitura de Inês Bernardo e edição de Ana Zayara Coelho.

6.3.18

UNESCO: 1 em cada 5 crianças e adolescentes está fora da escola

in ONUBR

Cerca de 263 milhões de crianças e adolescentes estão fora de escola, segundo levantamento divulgado nesta semana (28) pela UNESCO. Dados também apontam disparidades entre os jovens de nações ricas e pobres — em países de baixa renda, a taxa de evasão de estudantes de 15 a 17 anos é de 59%, enquanto nos países ricos é de apenas 6%.

Cerca de 263 milhões de crianças e adolescentes estão fora da escola, segundo levantamento divulgado nesta semana (28) pela UNESCO. Isso significa que uma em cada cinco pessoas com até 17 anos não frequenta uma instituição de ensino. Dados também apontam disparidades entre os jovens de nações ricas e pobres — em países de baixa renda, a taxa de evasão de estudantes de 15 a 17 anos é de 59%, enquanto nos países ricos é de apenas 6%.

A partir de informações reunidas por seu Instituto de Estatística (UIS), a agência da ONU denuncia uma estagnação nos progressos para recuperar meninos e meninas excluídos da educação formal.
Desde 2012, o número de crianças e adolescentes fora da escola caiu pouco mais de 1 milhão.

No nível primário, a taxa de evasão escolar quase não sofreu modificações durante toda a década passada, com 9%, ou 63 milhões de crianças de seis a 11 anos fora da escola.
O problema piora conforme avança a idade — 61 milhões de adolescentes de 12 e 14 anos e 139 milhões de jovens de 15 a 17 anos não estão matriculados em nenhum colégio. Isso significa que um em cada três adolescentes não estuda.

Os jovens de 15 a 17 anos têm uma probabilidade quatro vezes maior do que crianças do primário de estarem fora da escola. Em comparação com a faixa etária dos 12 aos 14, os adolescentes mais velhos têm o dobro de chances de não frequentar uma instituição de ensino.

“Esses novos dados mostram o tamanho da lacuna que precisa ser preenchida para garantir o acesso universal à educação”, alerta a diretora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay. “Precisamos de abordagens mais abrangentes e focadas, somadas a mais recursos para alcançar crianças e jovens que têm o direito à educação negado, com ênfase social nas meninas e em melhorar a qualidade da educação para todos.”
A dirigente acrescentou que tais mudanças são urgentes para avançar no cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de nº 4, que prevê a garantia do acesso de todos à educação primária e secundária de qualidade.
Diferenças regionais, econômicas e de gênero

O estudo do UIS confirma que, em toda a África subsaariana, um em cada três crianças e adolescente está fora da escola. As meninas estão mais propensas a serem excluídas dos sistemas de ensino do que os meninos. Para cada cem meninos de seis a 11 anos fora da escola, há 123 garotas sem direito à educação.

Na América Latina e no Caribe, 9,9% das crianças e adolescentes não frequentam centros de ensino. O índice é menor que a média global de evasão, estimada em 17,8%, quase um quinto de todos os jovens até 17 anos de idade. Mas a taxa latino-americana e caribenha está bem mais alta do que o valor calculado na Europa (4,3%) e é maior que os índices na Ásia Central (7,6%) e no Leste e Sudeste Asiáticos (9%).
A UNESCO também ressalta que há uma profunda disparidade entre as taxas de evasão escolar nos países mais pobres e mais ricos do mundo. Nos países de baixa renda, a taxa de evasão de estudantes de 15 a 17 anos é de 59%. Nos países de renda alta, o índice cai para 6%.

“Temos também uma crise de aprendizagem, com um em seis crianças e adolescentes não atingindo os níveis mínimos de proficiência em leitura ou matemática. A educação oferecida deve ser de qualidade para todos, o que requer um monitoramento eficaz para garantir que todas as crianças estejam na escola e que estejam aprendendo o que precisam saber”, acrescentou a diretora do UIS, Silvia Montoya.

Segundo a especialista, a instituição de pesquisa está desenvolvendo novos indicadores sobre equidade na educação e resultados de aprendizagem.

Acesse o levantamento do UIS na íntegra clicando aqui (em inglês).

Os novos números foram publicados no mesmo dia em que teve início, em Paris, a quarta reunião do Comitê de Direção do ODS 4. O organismo é o principal mecanismo global de consulta e coordenação para a educação na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

A entidade se reúne uma ou duas vezes por ano para fornecer aconselhamento estratégico sobre políticas, financiamento, monitoramento, relatórios e conscientização. O comitê é composto por 38 membros que representam em sua maioria os Estados-membros, juntamente com oito agências das Nações Unidas, a Parceria Global para a Educação, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organizações regionais, organizações de professores, redes da sociedade civil, além de representantes do setor privado, fundações, jovens e organizações estudantis.

23.10.17

Human Rights Watch acusa governo afegão de afastar raparigas do ensino

in Diário de Notícias

A organização não-governamental Human Rights Watch (HRW) acusa o governo de Cabul e os doadores internacionais de falharem na aplicação dos programas de educação para raparigas, estimando que dois terços das jovens afegãs não têm acesso à escolarização.

"O governo do Afeganistão e os doadores fizeram grandes promessas em 2001 no sentido de garantir educação para as raparigas, mas a insegurança, a pobreza e a mobilidade forçada estão a afastar as jovens das escolas", disse Liesl Gerntholtz, diretora para os Direitos das Mulheres da HRW.

"O governo precisa de voltar a focar-se para garantir educação a todas as raparigas", sublinhou.

O relatório de 132 páginas com o título "Não vou ser médica e um dia tu vais ficar doente: o acesso à educação no Afeganistão", a HRW refere que os doadores internacionais se afastaram dos compromissos.

Os casos abordados no documento dizem sobretudo respeito a regiões das províncias de Cabul, Kandahar, Balkh e Nangarhar e foca-se nas raparigas com idades compreendidas entre os 11 e os 18 anos que não estudam ou não podem continuar a estudar.

O relatório indica também as situações em que, por motivos religiosos, as famílias impedem as raparigas de serem ensinadas por professores do sexo masculino e que 41 por cento das escolas não funcionam em edifícios apropriados: não têm água, paredes ou instalações sanitárias.
A discriminação contra as raparigas é também sublinhada no relatório que alerta para os casamentos forçados: um terço das raparigas são obrigadas a casarem-se antes dos 18 anos.

A organização com sede nos Estados Unidos recorda que os talibãs controlam cerca de 40 por cento dos distritos do país, 16 anos depois do início da intervenção internacional liderada por Washington.

A situação é também marcada pela falta de aplicação da legislação em vigor, pela presença de milícias e grupos de crime organizado que proliferam em todo o país.

"As raparigas são alvo de ameaças e ataques sexuais, raptos e agressões com ácido além dos ataques específicos contra as raparigas que se encontram a estudar", nota o documento.

A HRW insiste com o governo de Cabul e os doadores internacionais para que aumentem o investimento na educação e a proteger as escolas e os estudantes adotando medidas concretas que devem passar, entre outras, pelo aumento do orçamento do Estado dedicado ao setor.

18.9.17

Ciganas com um pé na tradição e outro na universidade

in Diário de Notícias

São ciganas no ensino superior, das primeiras, querem servir de exemplo à comunidade para que as suas histórias deixem de ser notícia. Têm idades e experiências de vida diferentes, com o mesmo respeito pelos hábitos da etnia. Assim entendem a integração

Priscila e Sónia têm um sonho: ter um curso superior. Mas enquanto Priscila seguiu o percurso regular e está a concluir a licenciatura em Direito, Sónia deixou a escola aos 9 anos, casou aos 15 e teve a primeira filha aos 16. Voltou aos estudos no ano passado para se preparar para os exames do regime para os alunos com mais de 23 anos e vai iniciar o curso de Educação Social. Duas mulheres ciganas com muito em comum - desde logo o respeito pelas tradições da etnia, mas com perspetivas e rumos diferentes. "Casar? Não quero falar disso, estou concentrada nos estudos", responde Priscila. Um percurso diferente de Sónia: "Chegava-se ao 4.º ano e acabava-se a escola. Os meus pais trabalhavam na feira e eu tinha de ficar em casa a tratar dos meus irmãos. Conheci o meu marido aos 15 . Juntámo-nos e tivemos a primeira filha."

Conheceram-se no âmbito do programa OPRE, que começou como projeto associativo e se transformou numa medida política o ano passado, para incentivar a comunidade cigana a tirar um curso superior. Passaram de oito para 24 bolsas de estudo e, este ano, concedem 30. As candidaturas começaram na quinta-feira. Cada aluno tem 1 500 euros anuais, verba a cargo dos gestores da bolsa, que pagam diretamente as despesas, como as propinas.

Priscila Sá tem 20 anos e será uma das primeiras ciganas a licenciar-se - há outra finalista em Lisboa em Sociologia. Os ativistas da comunidade só conhecem mais uma cigana com um curso superior, por isso, esperam multiplicar os casos de sucesso com o OPRE . "Só no programa conheci mulheres ciganas a estudar, porque é complicado. Muita gente não quer seguir, outras os pais não deixam, há crenças de que não é seguro. Há também a questão do casamento, na escola há a possibilidade de conhecerem alguém que não seja de etnia. E há quem pense que estudar é um desperdício de tempo, que "eu devia estar casada e com filhos". Os que apoiam são os que têm mente mais aberta."

Priscila pensa nas amigas de infância para chegar à conclusão de que todas estão casadas e com filhos e brinca: "Já não tenho amigas". Conquistou outras na Universidade Lusófona, no Porto, onde estuda e todos sabem que é cigana. "Sempre souberam, quem é da zona do Porto percebe pelo sotaque, eles têm um sotaque mais carregado". Se sentiu discriminação, foi pela positiva. Diz que tem tido a colaboração de professores e colegas, também é apoiada pela ação social e é bolseira do OPRE desde o ano passado. Tem ouvido um ou outro comentário preconceituoso, aos quais reage de forma positiva, por exemplo, quando se discutem matérias de criminalidade. "Brincam: "Cuidado com o cigano." Depois, olham para mim e dizem: "Sem ofensa"."

Os pais de Priscila sempre entenderam que a educação é a chave de sucesso. "A minha mãe quis estudar e não foi possível, então, criou-me de outra forma. E o meu pai [quem a criou não o biológico]sempre me incentivou, às vezes parece que sabe mais de Direito do que eu. Vende carros e lida com advogados, sabe da prática e eu sei de teoria, somos uma boa dupla. Desde que me conheço como gente que quero ser advogada", conta. Tem dois irmãos, de 2 e 4 anos respetivamente, que terão o mesmo percurso se o entenderem.

A família vive em Francelos, Vila Nova de Gaia, onde há outros ciganos mas não tantos como no bairro dos avós. São feirantes, incluindo os pais mesmo que nem sempre tenham exercido a atividade, e passaram-lhe o bicho. "Nas férias trabalho nas feiras com a minha mãe, gosto muito de ajudar a montar as coisas, de interagir com as pessoas e de toda aquela agitação."

Priscila sugere vir à entrevista com o traje académico. Vem maquilhada, com os longos cabelos, características das mulheres ciganas. Chega acompanhada de um tio, ela está "habituada"à vigilância. Acha natural, como natural entende não sair sozinha à noite, muito menos para uma discoteca. "Saio com os meus pais, é um casal novo e fixe, gostam de se divertir". Reconhece que os rapazes têm mais facilidade. "Podem fazer tudo, é tudo mais fácil para os homens, acontece na sociedade em geral".

Nunca chumbou e espera manter a folha limpa até ao fim dos estudos, concluir Direito este ano letivo e estagiar num escritório de advogados. E já tem patrono, "um dos melhores do Porto", assegura. Quer especializar-se em criminologia, esperando não ter mais dificuldades por ser cigana. "Um advogado é um profissional independente, penso que não terei problemas se for boa naquilo que faço". A sua comunidade terá um lugar especial. "Vou ajudar em tudo o que puder, tem-me apoiado".

Sónia Pridêncio, 30 anos, Gondomar, 1.º ano de Educação Social no Instituto Politécnico do Porto, como o marido. As dilhas, Alaíde e Bruna, também estudam

Tirar as "crianças ciganas do beco"

Sónia Prudêncio, 30 anos, sempre gostou de estudar, também nunca chumbou, mas foi obrigada a deixar a escola aos 9 anos. "Os meus pais tinham muitos filhos, eu era a menina mais velha, tinha de ficar a cuidar dos meus irmãos quando eles iam à feira". Conheceu o marido no noivado de um primo, tinha ela 15 anos e ele 22, namoraram "um tempo" e juntaram-se. "Não foi uma escolha da família, nunca houve compromisso [os pais combinarem o casamentos dos filhos], foi um namoro de adolescentes normal".

Um companheiro com quem tem inteira cumplicidade, incluindo nos estudos. Ele é o Bruno Prudêncio, tirou o 12. º ano, é assistente operacional na câmara e vai entrar com ela no 1.º ano de Educação Social no Instituto Politécnico do Porto, no curso noturno, enquanto que ela frequentará o diurno.

Cabelos longos, não deixou que a maternidade lhe descurasse a apresentação. Sónia sorri muito ao falar no voltar à escola e na esperança de melhores dias. "Casámos e tivemos a nossa filha tinha eu 16 [ia fazer 17], nasceu com um problema de pele, o que exige mais cuidados. Estivemos um tempo estagnados e, ao fim de dois anos, o meu marido começou a estudar à noite, tirou o 9.º ano, depois o 12.º, tinha 28 anos quando acabou. Eu cuidava das filhas e envolvi-me em atividades ligadas à comunidade cigana. Quando surgiu esta oportunidade não hesitei. Elas estavam mais crescidas, a mais nova entrara na escola , tinha uma vida mais independente e decidi ir atrás do meu sonho."

Contou esse sonho num programa televisivo, a que assistia Bruno Gonçalves (ver entrevista). O dirigente associativo enviou-lhe uma mensagem e explicou-lhe que não era preciso voltar ao ensino básico para chegar à universidade, falou-lhe no programa OPRE. Teria que se inscrever nas unidades curriculares para se preparar para o exame de acesso ao ensino superior dos mais de 23 anos, o que fez com sucesso. "Apesar de não estar na escola, sempre fui uma pessoa interessada em ir mais além. E graças a Deus consegui. Voltar a estudar não é fácil, ainda por cima só com o 4.º ano de escolaridade, mas quando se tem vontade faz-se tudo".

As filhas, a Bruna de 12 anos, e a Alaíde de 8, seguem a conversa. É a Bruna quem responde quando lhe perguntamos o que pensam dos pais voltarem à escola. "Dá-nos mais força para estudar". Ela quer ser cientista em Biologia, a irmã, professora de ginástica. "Somos todos estudantes", comenta a mãe.

Não esquece o dia em que voltou à sala de aula. "Senti um grande orgulho, também o orgulho da minha comunidade, apesar de todas as dificuldades, cheguei lá, é um feito extraordinário, e tenho-me sentido muito acarinhada." No primeiro dia, sentou-se a um cantinho, receosa mas também para não dar muito nas vistas. "Os meus colegas chamaram-me logo para o pé deles, estão sempre a puxar por mim, nos grupos de estudo e em tudo, os meus professores disponibilizam todos os meios."

O pior são os transportes, já que vive no bairro social do Baguim do Monte, em Gondomar, e estuda na cidade do Porto. Um bairro onde teve sérias dificuldades de integração. "Sinceramente, não sei quem ficou mais chocado se quem cá morava ou eu. Antes morava num bairro na Maia, com ciganos e não ciganos. Aqui não havia ciganos, veio a minha e mais duas famílias ciganas. Até fizeram uma abaixo-assinado para não virmos. Senti muito racismo."

Aparentemente, essa fase passou. Sónia e as filhas são saudadas por todos. A família Prudêncio faz a diferença não só entre a comunidade cigana como entre a população local. Vivem numa casa social, que têm vindo a melhorar, os livros são mesmo para estudar e a escola é uma oportunidade. Mas, mais que ser um exemplo, querem ajudar os outros a fazer o mesmo. "As crianças são o bem mais precioso na nossa comunidade, daí a minha paixão por este curso. Quero motivá-las, tirá-las do beco, mostrar que há horizontes e, trabalhar também com os pais, desmistificar a ideia de que os ciganos não são capazes."

Marisa Oliveira, Cheila Ribeiro e Tânia Oliveira. da Figueira da Foz, no 1.º ano de Animação Socioeducativa, Escola Superuor de Educação de Coimbra

O programa OPRE enquadra-se na Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, dando continuidade ao projeto Opré Chavalé, promovido, no ano letivo 2015/16, pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, em parceria com a Associação Letras Nómadas. O ano letivo passado passou a ser desenvolvido pelo Alto Comissariado para as Migrações em parceria com a Associação Letras Nómadas e a Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens.

Animação socioeducativa em maioria

Marisa, Cheila e Tânia vivem na Figueira da Foz e têm tido trabalhos temporários na área da mediação na comunidade. São mulheres vistosas e bem dispostas que se preparam para iniciar o curso de Animação Socioeducativa na Escola Superior de Educação de Coimbra, a licenciatura que tem mais estudantes do programa, seis no total. Candidataram-se nos + de 23, estão entusiasmadas com o ensino superior, revelam experiências de vida diferentes, garantem que lutam diariamente contra o preconceito, que nas associações que dinamizam recebem telefonemas a quem recusaram emprego devido à sua etnia. O curso é para trabalhar com a comunidade e mostrar-lhes que são capazes. Também querem mostrar "à sociedade maioritária" que têm de "valer pelo que fazem e não por estereótipos".

Os 24 bolseiros do ano passado, 13 raparigas e 11 rapazes - entretanto, desistiram dois -, distribuem-se, ainda, pelas áreas de serviço social (4), Educação Social (5), Sociologia (1), Psicologia (1), Direito (3), Fotografia (1), Desporto (1), Automação Naval (1) e Qualidade Alimentar (1), oriundos de 18 concelhos e distribuídos por 17 instituições de ensino. Neste primeiro ano, a taxa de aprovações foi de 71%, que sobe para 77 % no caso do sexo feminino.

Marisa Oliveira, 38 anos, é loira, não parece portuguesa nem cigana. Conta que o senhorio só conheceu o marido três meses depois de lhes alugar a casa e de como a "grande" amizade que entretanto fizera como uma vizinha se desmoronou no dia em que a mãe a visitou, imagina ela que devido às saias compridas que a matriarca usa. A mesma pessoa a quem uma mulher alugou casa, sabendo que era cigana e que respondeu perante as preocupações de Marisa. "Qual é o problema, desde que paguem a renda e mantenham tudo em condições..." Também há reações positivas.

Marisa é mediadora do programa OPRE e vice-presidente da Associação Ribalta Ambição, que promove a igualdade de género nas comunidades ciganas. Fez mediação numa escola, trabalhou num laboratório de próteses dentárias, gostou muito mas as tarefas não tiveram continuidade por falta de verba dos empregadores. Completou em adulta o 6.º ano, mais tarde o 9.º nas Novas Oportunidades, fez depois os exames de acesso aos + de 23 e entrou, tal como a irmã Tânia. "Em criança gostava da escola mas morava muito longe, a minha mãe não tinha transporte e fiquei em casa. Aos 9 anos fazia uma panela de sopa para toda a família". E é com as crianças que gostaria de trabalhar, para lhes poder passar o seu testemunho, com contrato efetivo.

A presidente da Ribalta Ambição é Tânia Oliveira, 36 anos, a irmã de Marisa, das três a que tem tido um trabalho mais continuado. Está há 15 anos em funções de mediação, atualmente na empresa municipal de habitação Figueira Domus, no âmbito de programa de emprego para a inserção. Diz, meio a brincar meio a sério: "Faço a descodificação da linguagem." É nos bairros sociais que quer trabalhar, também defende o envolvimento na vida política, para lutarem pelos seus direitos.

A associação a que Tânia preside não se dirige exclusivamente à etnia. "Figueira da Foz a sorrir", por exemplo, um projeto de higiene oral que apresentaram à autarquia com boas hipótese de ser implementado, destina-se a todas as crianças carenciadas. Figueira da Foz e Torres Vedras são as autarquias que consideram mais terem feito para a integração da comunidade.

Cheila Ribeiro, 27 anos, está separada e tem um filho, nasceu tinha ela 17 anos. O pai de Cheila é pastor evangélico - 59,1% dos ciganos pertencem à Igreja Evangélica da Filadélfia, segundo o Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas.

É a mais assertiva das três, brinca que o seu dia tem mais de 24 horas tantas são as coisas que faz, desde miúda. "Não acabei a 4.ª classe, éramos quatro e eu era a mais velha, os meus pais trabalhavam na feira e tinha que haver alguém para tomar conta dos outros." Voltou à escola no ano passado para se ingressar no Ensino Superior nos + de 23. "Eu a e Marisa metemo-nos neste curso empoderar os nossos jovens, para que eles se envolvam na política e lutem pelos seus direitos. Sou a sexta na lista do Bloco de Esquerda para a Freguesia de Tavarede."

Não concorda com a existência dos bairros sociais, nem com os subsídios de subsistência. "Os bairros sociais são uma forma de manter as pessoas fechadas num espaço, não promovem a integração. E o Rendimento de Inserção Social (RSI) é um caramelo que dão aos pobres, somos escravos da pobreza". Palavras duras de Cheila, mas são de alguém que viu as portas de emprego fecharem-se por ser cigana. Tem trabalhado em programas de mediação ou de inserção laboral, atividades temporárias. "Nem numa loja de chineses me aceitaram. Porquê? Fui dona de uma loja, fazia a receção da mercadoria, fecho e abertura da caixa, tudo."

Vânia LOurenço, 19 anos, de Viseu, 1.º ano do curso de DIreito na Universidade Portucalence › objetivos ser magistrada. O pai é o principal impulsionador e o sonho é ver a filha numa sala do tribunal. Estará lá no primeiro dia

Cheila, Tânia e Marisa são o orgulho da família e de muitas mulheres ciganas, sobretudo das mães, ignoram quem desdenha na comunidade e, curiosamente, têm ouvido mais apoios por parte das mais velhas, sublinha a Marisa: "Têm 50 e 60 anos e dão o exemplo delas, não estudaram, viveram para a família e agora não têm condições , vivem do RSI".

Elas demonstram que os agregados familiares ciganos estão a mudar. A Tânia é solteira, "e boa rapariga", a Marisa é casada e não tem filhos, a Cheila é mãe separada. Não é isso que as afasta das tradições, muito menos das feiras. "Claro, é o passado da criança cigana, quase todas cresceram nas feiras." Admiram o respeito pelos mais velhos - "não vê um cigano num lar" -, compreendem o dever das meninas "preservarem a honra" e o não saírem sem ser acompanhadas - têm as festas ciganas, onde "há música e alegria" - , o luto pela morte do companheiro, o que leva as mulheres a cortarem os longos cabelos e a vestirem-se de preto, para a vida.

Magistrada com pai na primeira fila

No dia em que Vânia Lourenço, 19 anos, presidir a um julgamento, é seguro que o pai, Ringo Lourenço, estará na primeira fila, com um grande sorriso e, talvez, algumas lágrimas. A menina é a filha do meio de quatro raparigas e é ele que a tem impulsionado para "seguir em frente". Ela está no 1.º ano de Direito da Universidade Portucalense, quer seguir a magistratura. O verbo do pai é "ir". "Se nos convidam, vamos, já fomos às escolas, vamos estar nas mesas de voto nas eleições autárquicas. Sempre as incentivei a estudar, a vida das feiras não é para elas, não têm ordenado, já não rende tanto, e eu sou uma pessoa bem integrada na sociedade". E a Vânia gosta das feiras, "mas para passear". "Não quero fazer vida da feira, levantar às 5 de manhã e, às vezes, nem ganhar para o gasóleo."

Ringo conta uma história: "Ela tem o traje académico desde que entrou na Universidade. Foi o tio que o comprou, fez uma aposta com um cigano que dizia que ela não ia conseguir." E a rapariga já tem convites de trabalho, assim conclua os estudos. "Vai concluir, não tem que ter complexos", advoga o pai.

A filha mais velha de Ringo casou e tem uma filha, as mais novas do que a Vânia "estão bem encaminhadas nos estudos". Ele saiu do bairro social há 24 anos, para morar em frente da escola primária onde as filhas iniciaram os estudos. Tem feito vida da feira, agora está desempregado, justifica que a saúde não o tem deixado trabalhar com continuidade, sofreu várias operações. Acompanha a filha para todo o lado, nomeadamente nas festas da universidade. Não achou piada às praxes.

Vânia aceita bem a companhia, agradece o entusiasmo, respeita os hábitos ciganos, não casará com um não cigano, mas não é nisso que pensa, garante: "Agora é o tempo para estudar."

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Governo lança bolsas de estudo para jovens de etnia cigana

in Sol

Governo vai lançar este ano 30 bolsas de estudo para jovens de etnia cigana que entrem no ensino superior. São mais cinco do que em 2016

O governo vai apoiar este ano letivo mais cinco bolsas para estudantes do ensino superior de etnia cigana, 30 no total. São mais cinco do que em 2016, ano em que o governo reforçou o apoio a um projeto promovido por associações ligadas à comunidade cigana.

Olga Mariano, de 67 anos, foi uma das mentoras da iniciativa. Todos lhe chamam tia Olga. Era vendedora ambulante até ter ficado viúva. Em 1998, fez uma ação de formação sobre mediadores socioculturais com mulheres africanas e ciganas e decidiu criar a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas. Nunca estudou na universidade, mas essa foi uma das bandeiras da AMUCIP. Pelo caminho, conheceu Bruno Gonçalves, da Associação de Ciganos de Coimbra, e começaram a estruturar uma forma de ajudar outros jovens e adultos a ter mais oportunidades na área da formação.

O programa Opré Chalavé – “erguei-vos jovens”, em romani – surgiria em 2015, numa parceria da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres com a Associação Letras Nómadas e cofinanciado pelo programas Cidadania Ativa da Gulbenkian, o Escolhas do Alto Comissariado para as Migrações e a Fundação Montepio.

Na altura, começaram com um grupo piloto de 15 jovens, que apoiaram na ida para o ensino superior, suportando as propinas de oito estudantes. Queriam mostrar que estudar era uma questão de empenho e esforço, mas também de suporte financeiro para não serem forçados a abandonar os cursos.

No ano passado, o programa mudou de nome e passou a ter mais apoio estatal. Já com o nome OPRE – Programa Operacional de Promoção de Educação – o Estado passou a assegurar 25 bolsas. E foi a procura que levou a que este ano abrissem mais cinco vagas, para responder a 30 candidaturas.

O anúncio do aumento das bolsas foi feito ontem pelo ministro-Adjunto, Eduardo Cabrita, numa cerimónia que teve lugar no ISCTE. Cabrita lembrou o seu percurso como “filho de operários”, parabenizou os estudantes pela sua determinação e apelou um maior número de candidaturas nos próximos anos, defendendo ser necessário motivar mais os homens e mulheres desta comunidade “a ter orgulho em aceder ao ensino superior”.

“Queríamos que os nossos meninos e meninas tivessem acesso ao Ensino Superior. Percebemos que tínhamos de construir a casa pelo teto, que eram precisos exemplos do mais alto nível de formação para que inspirassem os mais novos”, explica Olga Mariano.

Maria Teresa Vieira e Priscila Sá são duas das estudantes que levaram mais longe os desejos da mentora. “Entrar para a faculdade era algo que eu nem punha em questão porque não é normal na minha comunidade”, diz Maria Teresa, de 27 anos, do Montijo. “Aos 25 anos, a tia Olga convenceu-me a concorrer através do programa Maiores de 23. Os meus pais sempre me apoiaram e estou muito feliz por estudar Sociologia no ISCTE.”

Bruno Gonçalves resume o objetivo do programa: capacitar. “A sociedade é exigente e é preciso provar aos nossos jovens que é necessário atingir alguns patamares de formação para que sofram menos e possam combater a pobreza, que está tão enraizada na nossa comunidade”, sublinha, lamentando que o preconceito ainda leve alguns jovens a não aproveita resta oportunidade para não serem mais tarde discriminados na procura de emprego ou casa. Uma “clandestinidade étnica” a que muitos jovens ainda se sentem obrigados por causa do estigma.

7.9.17

Percentagem de crianças sem escola estagnou na última década - UNICEF

in Diário de Notícias

A percentagem de crianças que não frequentam a escola estagnou a nível mundial na última década, devido a pobreza e conflitos prolongados, mas também à insuficiência de financiamento da educação em situações de emergência, anunciou hoje a UNICEF.

"Atualmente, 11,5% das crianças em idade escolar -- ou seja, 123 milhões -- não frequentam a escola, em comparação com 12,8% - ou 135 milhões -- em 2007", indicou o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) num relatório cuja conclusão é que, numa década, tais números representam uma "quase total ausência de progressos".

Considerando em idade escolar as crianças entre os seis e os 15 anos, a agência especializada da ONU apontou como causas para a estagnação desta taxa "níveis de pobreza generalizados, conflitos prolongados e emergências humanitárias" e pediu mais investimento para combater as razões que deixam as crianças vulneráveis fora da escola.

"Os investimentos destinados a aumentar o número de escolas e professores para acompanhar o crescimento populacional não são suficientes, [e] a abordagem habitual não levará as crianças mais vulneráveis à escola -- nem as ajudará a desenvolver todo o seu potencial -- se continuarem presas nas malhas da pobreza, da privação e da insegurança", afirmou a diretora dos Programas de Educação da UNICEF, Jo Bourne.

"Em primeiro lugar, os governos e a comunidade internacional devem direcionar os seus investimentos para eliminar os fatores que impedem estas crianças de frequentarem a escola, nomeadamente tornando-as mais seguras e melhorando o ensino e a aprendizagem", defendeu.

As crianças que vivem nos países mais pobres do mundo e em zonas de conflito são as mais afetadas, segundo o relatório, que refere que, dos 123 milhões de crianças que não frequentam a escola, 40% vivem nos países menos desenvolvidos e 20% em zonas de conflito.

"A guerra continua a ameaçar -- e a reverter -- os ganhos alcançados em matéria de educação: os conflitos na Síria e no Iraque provocaram um aumento do número de crianças fora da escola da ordem dos 3,4 milhões, o que representa um retrocesso no Médio Oriente e norte de África comparável aos níveis de 2007, com aproximadamente 16 milhões de crianças não escolarizadas", lê-se no documento.

Já "na África subsaariana e no sul da Ásia -- com os seus elevados níveis de pobreza, rápido crescimento populacional e emergências recorrentes -- o número de crianças em idade escolar primária e do primeiro ciclo do secundário não escolarizadas representa 75% das crianças que, ao nível global, não têm acesso à educação", prossegue a UNICEF.

A organização registou, contudo, alguns progressos: na última década, a Etiópia e o Níger, dois dos países mais pobres do mundo, foram os que mais progrediram no que respeita a matrículas de crianças em idade escolar primária, com um aumento respetivo de mais de 15% e de cerca de 19%.

Quanto ao financiamento insuficiente da educação em situações de emergência que está a afetar o acesso das crianças à escola em zonas de conflito, a agência especializadas da ONU indicou que "em média, menos de 2,7% dos apelos humanitários globais são dedicados à educação".

"Nos primeiros seis meses de 2017, a UNICEF recebeu apenas 12% dos fundos necessários para proporcionar educação às crianças que vivem em situações de crise", precisou a organização, frisando que "são necessários mais fundos para responder ao número e à complexidade crescente das crises e dar às crianças a estabilidade e as oportunidades que merecem".

A curto prazo, estimou Jo Bourne, "a aprendizagem proporciona alívio às crianças afetadas por emergências, mas, a longo prazo, é também um investimento fundamental no futuro das sociedades".

"Porém, o investimento na educação não responde à realidade de um mundo volátil. Para tal, devemos assegurar mais financiamento, e também de forma mais preventiva, para a educação em emergências que são imprevisíveis", sustentou a responsável.

Há 123 milhões de crianças dos 6 aos 15 anos fora das escolas

Pedro Sousa Tavares, in Diário de Notícias

UNICEF lamenta a "ausência quase total de progressos" na última década. Países pobres e zonas de conflito, nomeadamente no Iraque e na Síria, têm os piores indicadores

No espaço de uma década a percentagem de crianças em idade escolar que não frequentam o ensino baixou apenas 1,3 pontos percentuais, estando atualmente nos 11,5%. Os dados são da UNICEF e traduzem-se num total de 135 milhões de crianças e jovens aos quais ainda não está a ser dada a oportunidade de aprenderem. Por "idade escolar" a UNICEF entende o período dos seis aos 15 anos, apesar de vários países -Portugal incluído - já terem alargado a escolaridade obrigatória até aos 18 anos.

"Níveis de pobreza generalizados, conflitos prolongados e emergências humanitárias complexas estão na origem da estagnação desta taxa", aponta a organização que defende os direitos e o bem-estar das crianças no mundo, para a qual é necessário continuar a reforçar o investimento, nomeadamente "para combater as razões que deixam as crianças vulneráveis fora da escola", considerando que não basta aplicar verbas em infraestruturas e recursos humanos.

"Os investimentos destinados a aumentar o número de escolas e professores para acompanhar o crescimento populacional não são suficientes. A abordagem habitual não levará as crianças mais vulneráveis à escola - nem as ajudará a desenvolver todo o seu potencial - se continuarem presas nas malhas da pobreza, da privação e da insegurança ", avisou a chefe dos Programas de Educação da UNICEF, Jo Bourne, citada num comunicado divulgado ontem. "Em primeiro lugar, os governos e a comunidade global devem direcionar os seus investimentos para eliminar os fatores que impedem estas crianças de frequentarem a escola, nomeadamente tornando-as mais seguras e melhorando o ensino e a aprendizagem".

O outro preço da guerra

Segundo a UNICEF, as crianças que vivem nos países mais pobres do mundo e em zonas de conflito são, de longe, as mais afetadas. "Dos 123 milhões de crianças que não frequentam a escola, 40% vivem nos países menos desenvolvidos e 20% em zonas de conflito", revela. De resto, o facto de as condições terem piorado radicalmente nestas zonas é uma das explicações para que, em termos médios, as melhorias a nível mundial não tenham sido significativas.

"A guerra continua a ameaçar - e a reverter - os ganhos alcançados em matéria de educação", afirma. "Os conflitos no Iraque e na Síria provocaram um aumento do número de crianças fora da escola na ordem dos 3,4 milhões, o que representa um retrocesso no Médio Oriente e Norte de África comparável aos níveis de 2007, com aproximadamente 16 milhões de crianças não escolarizadas".

Mas a pobreza continua a ser, de forma destacada, o principal obstáculo ao acesso à educação. "Na África subsariana e no Sul da Ásia - com os seus elevados níveis de pobreza, rápido crescimento populacional e emergências recorrentes - o número de crianças em idade escolar primária e do primeiro ciclo do secundário não escolarizadas representam 75% das crianças que, ao nível global, não têm acesso à educação".

Apesar deste quadro pouco animador, a UNICEF faz questão de sublinhar que também há "alguns progressos" dignos de registo. "Na década passada, a Etiópia e o Níger, que estão entre os países mais pobres do mundo, foram os que mais progrediram no que diz respeito às taxas de matrícula de crianças em idade escolar primária, com um aumento de mais de 15% e cerca de 19%, respetivamente".

Apesar do reconhecido papel da educação como ferramenta de melhoria das condições de vida e promoção da paz, esta raramente é reconhecida como uma emergência. "Em média, menos de 2,7% dos apelos humanitários globais são dedicados à educação".

10.11.15

Câmara de Barcelos reforça apoios na Educação

In "Correio do Minho"

Pré-escolar e 1.º Ciclo Câmara de Barcelos reforça apoios na Educação A Câmara Municipal de Barcelos aprovou um conjunto de medidas de apoio à Educação. Entre as medidas aprovadas encontra-se a plataforma informática Mais Cidadania , no valor de cerca de 12.500 euros, cuja missão é aumentar os níveis de cidadania participativa das crianças e jovens em todas as escolas do concelho, assim como a aquisição da ferramenta Manual Digital , no valor de 8.260 euros, para todos os alunos dos 2.º e 4.º anos que frequentam a actividade extra-curricular de inglês. Foi reforçado também o transporte gratuito a crianças e jovens do Ensino Especial para o Centro Hípico Irmão Pedro Coelho com vista ao desenvolvimento de um programa terapêutico, e o apoio às refeições escolares a alunos do 1.º CEB e ensino pré-escolar.

18.11.13

Um terço das crianças no mundo não aprende a ler ou escrever

in Jornal de Notícias

Um terço das crianças em idade escolar não está a aprender a ler nem a escrever, uma tendência crescente e que está relacionada com a redução dos apoios oficiais ao desenvolvimento no mundo, segundo uma organização jesuíta espanhola.

Dos 650 milhões de crianças no mundo em idade de frequentar a escola primária, 250 milhões não estão a aprender a ler ou escrever, quer porque não vão à escola ou porque estão a receber uma educação de má qualidade.

A organização não-governamental Entreculturas, que apresentou o estudo "Direito a aprender: educação de qualidade, educação transformadora", denunciou os efeitos da interrupção das ajudas ao desenvolvimento, que afeta os mais vulneráveis, "que são as crianças das famílias pobres ou em situação de exclusão social, os que vivem na rua ou os refugiados".

"As limitações no acesso à educação marcam as vidas das crianças para sempre, condenando milhões de pessoas à exclusão social", defendeu a responsável da instituição, Valeria Méndez de Vigo.

A representante da ONG sublinhou que "os inegáveis avanços no acesso à educação primária estancaram desde 2010 como consequência direta dos cortes à ajuda destinada à educação básica".

30.7.13

Livros escolares para o próximo ano letivo chegam a custar 264 euros

Ana Gaspar, in Jornal de Notícias

A menos de dois meses do início das aulas, os pais começam a comprar os manuais escolares que podem ultrapassar os 250 euros em alguns anos. O preço dos livros aumentou 2,6% em relação a 2012/2013.

Se é pai ou encarregado de educação de um aluno que vai frequentar o 11.º ano do curso de Ciências e Tecnologias na Escola Secundária Alexandre Herculano, no Porto, saiba que pode ter de pagar até cerca de 264,08 euros pelos manuais escolares para o próximo ano letivo.

24.1.13

Medidas de austeridade limitam acesso das crianças à saúde e educação, de acordo com a Eurochild

in RTP

As medidas de austeridade impostas em Portugal estão a limitar o acesso de crianças e famílias a serviços essenciais como a educação e a saúde, revela um relatório da Eurochild, a rede europeia de organizações para a infância.

A Eurochild é uma rede de organizações e pessoas que trabalham pela melhoria da qualidade de vida das crianças e adolescentes, com 116 membros em 35 países europeus.

"A maior evidência do presente relatório é que as condições de vida das crianças de toda a Europa e das suas famílias deterioraram-se muito em comparação com a anterior análise da Eurochild, em 2011", lê-se no relatório, concluído em dezembro do ano passado.

De acordo com a Eurochild, depois de um breve período de medidas de estímulo e expansão da despesa pública para contrariar o primeiro impacto da crise em 2008, a maioria dos governos europeus introduziu medidas de austeridade severas nos últimos anos, "o que representa uma série de ameaças às crianças e às suas famílias".

A organização coloca Portugal no grupo de países onde as transferências sociais têm pouco impacto na redução do risco de pobreza infantil, juntamente com a Bulgária, Grécia, Espanha, Itália, Lituânia, Letónia, Polónia, Roménia e Eslováquia.

Os países deste grupo são também aqueles cujas crianças estão expostas ao risco de pobreza mesmo quando todos ou alguns membros do agregado familiar trabalham.

"O estudo mostra que, desde o início da crise, muitos governos introduziram medidas de corte na despesa social, que são diretamente sentidas pelas crianças e pelas suas famílias", diz a Eurochild.

Acrescenta que isto diminuiu o acesso das crianças aos recursos adequados, limitou o seu acesso a serviços de educação, saúde e bem-estar e restringiu as oportunidades das crianças participarem plenamente na vida familiar e social.

"A crise afetou todos os países europeus, mas em diferentes graus. Nos casos mais graves, os governos da Grécia, Irlanda e Portugal aceitaram pacotes de empréstimos com a `troika` da Comissão Europeia, Banco Central Europeia e o Fundo Monetário Internacional, na condição de imporem enormes cortes na despesa social", aponta a organização.

A Eurochild alerta que as consequências a longo prazo do desemprego ou das condições de emprego precárias podem ser severas tanto no bem-estar das crianças como dos pais e lembra que a pobreza infantil pode ser evitada, dando como exemplo que há países que conseguem proteger melhor do que outros as suas crianças mais vulneráveis.

De acordo com o relatório, em Portugal, o corte nos benefícios para as crianças entre 2010 e 2012 "foram particularmente severos e tiveram um impacto significativo no rendimento de muitas famílias com filhos".

"As novas e restritivas regras de acessibilidade para os benefícios sociais podem levar a que muitos beneficiários sejam injustamente privados do acesso à assistência social, o que pode igualmente constituir uma importante redução no seu rendimento", lê-se no relatório.

A Eurochild lembra que, comparando com 2011, a taxa de desemprego subiu em 15 Estados membros nos últimos três meses, com os aumentos mais altos registados na Grécia, Espanha, Itália, Chipre, Portugal (+0,5 pontos percentuais, para 15,2%) e Bulgária.

Por outro lado, o desemprego afeta mais de 30% dos jovens em idade ativa na Bulgária, Itália, Portugal e Eslováquia.

Os dados relativos a Portugal foram recolhidos através da Rede Europeia Anti-Pobreza que sublinha que "o desemprego e o corte nos subsídios têm uma influência direta nas oportunidades e nos cuidados infantis".

A mesma organização denuncia "o aumento substancial", nos últimos dois anos, do número de casos de famílias com dificuldades em pagar os seus empréstimos e um aumento do número de chamadas relacionadas com pobreza familiar feitas em 2011 para a linha do Instituto de Apoio à Criança.