8.3.23

Madalena, Elisa, Marta, Cristina, Filipa e Maria: entre a pobreza e a universidade, seis raparigas contam a sua história

Natália Faria, in Público

É possível a partir de seis universitárias oriundas das classes pobres traçar-se o retrato de um país? João Teixeira Lopes fê-lo e o resultado é um livro que mostra uma sociedade de contradições.

Madalena, Elisa, Marta, Cristina, Filipa e Maria são uma espécie de “improbabilidade estatística”, no entender do sociólogo João Teixeira Lopes que, ao fim de muitos anos a ver raparigas provenientes das classes populares a destacarem-se na sua sala de aula pelos excelentes resultados académicos, resolveu investigar as suas trajectórias, numa tentativa de, “a partir das biografias individuais, chegar aos aspectos estruturais da sociedade portuguesa”, conforme adiantou ao PÚBLICO o professor catedrático no Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Na procura de perceber o que contribuiu para que estas raparigas quebrassem a forte correlação (essa sim, estatisticamente provável) “entre origens sociais modestas e o insucesso escolar, o abandono e o fracasso”, Teixeira Lopes encontrou “manhas de sobrevivente” e “experiências de sofrimento, de humilhação e de esforço”.Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

“A ambivalência das classes populares face à escola joga-se na transição entre um desejo de mobilidade social e uma certa inaptidão para, pelo menos no início do circuito escolar, se adaptar às exigências da cultura e da ordem escolares”, escreve o autor no livro Elas – Percursos “Inesperados” de Jovens Mulheres das Classes Populares, acabado de chegar às livrarias pela Tinta da China, coincidentemente numa altura em que o Governo lançou para discussão pública a proposta de reservar 2% das vagas no acesso ao Ensino Superior público para os alunos mais carenciados, beneficiários do 1.º escalão do abono de família

Na casa dos 20 anos de idade, as raparigas entrevistadas no livro têm em comum a pertença a cidades adjacentes ao Porto ou na periferia do distrito. Os pais são emigrantes, desempregados, cortadores de carne. As mães costureiras, empregadas de balcão, domésticas. Cresceram todos num Portugal rural ou semi-rural que, aos solavancos e tropeções, se abriu à litoralização, à feminização crescente do mercado de trabalho, às quebras na natalidade, ao “arrefecimento” do controlo das famílias (numerosas, quase sempre), mas também da Igreja e de uma vizinhança sempre atenta aos desmandos da porta ao lado.

“Estas raparigas fazem já parte de famílias nucleares pequenas, são filhas únicas ou têm um irmão ou uma irmã, e os pais, esses sim, provenientes de famílias numerosas, já tiveram a preocupação de olhar para os filhos, não como força de trabalho, mas como crianças, reconhecendo a especificidade e a singularidade da criança, isto é, preocupando-se em oferecer-lhes um quarto confortável, material escolar, em comprar-lhes computadores, se necessário, centrando muito do seu esforço no projecto escolar dos filhos”, descreve ainda o sociólogo.

A par do novo olhar dos pais sobre a infância (liberta já do trabalho infantil de que os antecessores tinham sido vítimas), estas raparigas são também beneficiárias do Estado-providência. “Daquilo que é a escola pública, das actividades extracurriculares, do apoio da acção social escolar, das bibliotecas públicas onde encontram um bom ambiente para estudar, de um modelo de sociedade onde a escola é importante e faz parte da antecipação do que pode ser um bom futuro”, precisa o investigador.

Um professor que faça a diferença e o facto de terem tido um quarto só para elas fez toda a diferença na vida destas alunas, ainda segundo o sociólogo, que segue rente a uma frase da escritora Virgínia Woolf quando alunas de um colégio feminino lhe perguntaram o que era preciso para escrever: “A resposta foi ‘Precisam de 500 libras por ano e de um quarto só para vocês’. E, de facto, estas alunas, embora tivessem ainda as famílias numerosas no seu imaginário, puderam ter um quarto só para si.”

“Quando os meus pais fizeram esta casa, eu não estava na conta deles, a intenção era terem só um filho, por isso, dormia nuns arrumos, num quarto improvisado. Quando o meu irmão saiu, passei para o quarto dele, mas sempre tive o meu espaço, a minha comodidade”, relata no livro Madalena, 22 anos, nascida em Baião, filha de uma doméstica e trabalhadora agrícola intermitente e de um operário da construção civil, entretanto reformado por invalidez. “Quando percebeu que havia a expectativa de eu ir para a faculdade, não quis que eu perdesse essa oportunidade e foi [trabalhar] para o Panamá. Foi lá que teve o acidente”, acrescenta a entrevistada, referindo-se ao pai.

Neta de agricultores em Baião (só o avô paterno era pedreiro), Madalena precisou de chegar à universidade para aprender palavras como “exequível” e “conectores”. “No início do curso, o pior eram mesmo as aulas. Estava a apontar a matéria e, ao mesmo tempo, a apontar palavras para ver no dicionário, porque não percebia”, recorda.

Ausência de “capital militante”

O alheamento de Madalena face à política e mesmo ao associativismo é denominador comum às várias histórias contadas no livro. “Outra coisa eram os intervalos, quando ouvia os meus colegas a falar de política. Ficava envergonhada, porque não percebia nada. Eu até via o telejornal, mas nunca me tinha interessado, se calhar a falha é minha porque nunca fui pesquisar, apesar de ter todas as ferramentas. Mas também nunca tive uma educação partidária em casa, aquilo funciona mais como clubes ou rivalidades políticas ou pelos conhecimentos. E se tentar falar disso com os meus pais acaba sempre em discussões”, desculpa-se Madalena.

Elisa acrescenta, umas páginas depois: “Acho que não sou muito empenhada politicamente, não sou esse tipo de pessoa. Mas sinto que me falta um bocado isso, consciência política para perceber certas coisas.” Filha de um desempregado e de uma costureira, residentes em Vila Nova de Gaia, esta estudante de mestrado acaba por assumir: “Nunca participei em nenhuma manifestação.”

Marta, pai estofador e mãe empregada de escritório, casa em Penafiel, também nunca foi de se pôr à frente das manifestações. “Nesta questão do activismo político, sou um bocado céptica. Pôr-me à frente da manifestação e começar aos berros e bater com as panelas, não sou assim.”

“O facto de serem jovens que têm uma atitude relativamente conservadora em relação ao envolvimento político e até um certo alheamento face a formas mais activas, militantes ou engajadas, de participação, vem na continuidade dos pais”, interpreta João Teixeira Lopes, que encontra no esforço dos pais pela sobrevivência no dia-a-dia a explicação mais do que natural para essa “falta do que em sociologia se chama o ‘capital militante’”.

Apesar disso, todas evidenciam em relação aos pais saltos quânticos perante temas como o aborto, a sexualidade pré-conjugal, as orientações sexuais plurais, a eutanásia ou a possibilidade de adopção por homossexuais. “Todas elas têm atitudes que podemos considerar progressistas, embora depois não tenham o dito empenhamento político ou qualquer tipo de activismo”, nota.

Cristina, residente em Valbom, num apartamento que descreve como espaçoso, “com dois quartos, uma cozinha e uma sala”, foge de abordar alguns temas com os pais. “Acho que as nossas mentalidades não são compatíveis. Por exemplo, homossexualidade, ele diz algumas asneiras e eu digo-lhe que ele pensa de forma incorrecta, que está a julgar sem saber. Há alturas em que entramos mesmo em conflito (…). A minha mãe, por exemplo, é muito xenófoba com brasileiros e já cheguei a discutir com ela por causa disso.”

O pai é cortador de carnes e a mãe reformou-se por invalidez. Cristina está capaz de jurar que nenhum deles sabe sequer nomear o curso que ela frequenta: “O meu pai se calhar sabe, mas a minha mãe não. Nunca falamos sobre esses assuntos.”

Elisa também sabe que há assuntos que tem de pisar com o mesmo cuidado que teria de ter num terreno minado. “Não tenho nada contra a homossexualidade e a adopção por casais gays e repudio sempre que alguém tem posições contrárias, principalmente quando ouço comentários dos meus pais, temos muitas discussões sobre isso.”

A austeridade herdada

Entre avanços e recuos, a ética austera perante o consumo permanece em todas como herança dos pais. “Estas jovens são claramente amigas de uma atitude frugal, austera, poupada, em relação a tudo o que signifique consumo ou mesmo até um estilo de vida. Elas sabem que não têm recursos para consumos ostentatórios ou excessivos ou supérfluos. Sabem que têm famílias que se esforçaram muito para que elas pudessem continuar os seus estudos. E, é curioso, vestem essa atitude, que é muito presente nas classes populares, com uma nova roupagem que encontra na narrativa da sustentabilidade ou do consumo responsável uma justificação”, pondera João Teixeira Lopes, a partir de raciocínios como este, que ouviu a Elisa e que é bem tradutor de “uma certa exaltação de honra social alicerçada no sacrifício”: “Aprendi com os meus pais o valor das coisas. O valor material, o valor do esforço para se ter alguma coisa (…) Não se pode ter tudo, não é suposto ter tudo. E aprendi a dar valor ao que se tem. E a nível mais material, de comida, não se tem para um manjar, mas tem-se para uma sopa.”

Quando quer umas miniférias ou sair à noite, Elisa coíbe-se de pedir dinheiro aos pais. “Uso o meu dinheiro. Tenho umas poupanças, trabalhinhos que fiz ou prendas de anos. Não sou consumista, tenho consciência de que é um luxo poder estar na faculdade e é preciso fazer escolhas. Por exemplo, a minha mãe trabalha muito e ela precisa de massagens por causa do tipo de tarefas que faz. E eu prefiro deixar de ter as unhas arranjadas ou comprar umas calças para a minha mãe poder ter isso todas as semanas.”

Em relação à religião, a herança permanece, mas não tão pesada. “A maior parte continua a ser religiosa, umas mais fervorosas do que outras, mas em todas a religião é vivida como um artesanato, isto é, como uma prática muitíssimo modelada. Cada uma reza a Deus à sua maneira e cada uma tem o seu próprio entendimento do que deve respeitar ou não dos ensinamentos da Igreja”, aponta o investigador. Em suma, do mesmo modo que deixaram de ter nas famílias o seu universo auto-referencial, estas raparigas esforçaram-se por se distanciar da religião enquanto modelo norteador de relações e condutas.

Ao longo das mais de 300 páginas do livro, e ao mesmo tempo que atribui significados contextuais alargados à voz destas seis alunas, João Teixeira Lopes reconstitui as principais cenas de uma sociedade “em rápida aceleração, mas com imensas contradições”. “Uma sociedade que permitiu a estas raparigas chegar à universidade e terem sucesso escolar e poderem almejar um emprego mais qualificado do que o dos pais, mas, simultaneamente, uma sociedade que continua a exigir-lhes a elas um sobre-esforço, uma sobrecarga, que tantas vezes se reflecte no seu próprio corpo.”

Ansiedade descontrolada

Obrigadas a crescer depressa e a saltar etapas na infância e juventude, quase todas as entrevistadas denotam dificuldade em controlar a ansiedade. A maior parte porque sente que não lhes é dada margem para o erro. “Eu sofro muito com tudo o que implique dinheiro. Sei que os meus pais me estão a pagar as propinas e, por isso, tenho que dar o máximo, tenho que tirar as melhores notas. A mesma coisa com o ginásio, se os meus pais estão a pagar, tenho que dar tudo, fazer tudo. Claro que isso causa ansiedade e muito cansaço”, descreve Marta.

No seu caso, os primeiros sintomas de ansiedade começaram a aparecer no segundo ano da licenciatura. “Eu não percebia porque é que o meu coração batia tão rápido, porque é que tinha dores de cabeça, como é que eu falava e quase desmaiava”, recorda, antes de concluir: “Fico frustrada se tiver de tomar um ansiolítico, porque eu devia ser capaz, eu não quero ser ansiosa.”

“Elas pagam um preço, por vezes alto, por terem sido forçadas a acelerar os ritmos de crescimento, pelo desajuste que acusam por estarem entre dois mundos, duas linguagens, duas culturas e duas classes”, conclui João Teixeira Lopes, para quem os problemas de saúde mental que lhes foi ouvindo resultam em boa parte “da dívida que elas incorporaram face aos pais que as faz sentir que não têm tempo a perder nem dinheiro a perder”.