23.11.07

Dia sim, dia não, morre uma pessoa por overdose

Ana Cristina Pereira, em Bruxelas, in Jornal Público

Óbitos provocados, sobretudo, pelo uso de opiáceos. Especialistas preocupados com países com aumentos superiores a 30 por cento, caso de Portugal


Há uma tendência para a estabilização das mortes por intoxicação na Europa, mas em valores que continuam muito elevados. "Mais de sete mil vidas perdidas por ano é um sinal irrefutável de que não estamos a fazer o que devemos em matéria de prevenção das overdoses", admite o director do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), Wolfgang Gotz. Há dois anos, em Portugal, havia uma overdose fatal a cada dois dias.

É preciso recuar para melhor apreender a inquietação de Gotz perante os dados que constam no relatório anual do OEDT, ontem divulgado em Bruxelas.

Na década de 1980 e no início da de 90, a par da expansão do consumo de heroína, cresceu na Europa o número de mortes por overdose. Embora de uma forma menos pronunciada, esta tendência manteve-se até 2000. Desde então, "muitos países" europeus comunicaram uma redução.

Pela maior possibilidade de tratamento, pela multiplicação de iniciativas de redução de danos, pela diminuição da disponibilidade de heroína no mercado, as mortes directamente relacionadas com o consumo de droga encolheram "seis por cento em 2002, 14 por cento em 2002, cinco por cento em 2003".

A subida global é diminuta entre 2004 e 2005, o que denota uma tendência de estabilização, só que é bem acentuada nalguns Estados-membros - em Portugal, na Irlanda, na Grécia, na Finlândia e na Noruega registaram-se aumentos superiores a 30 por cento. Portugal teve 219 das 7557 overdoses fatais.

Produção de ópio em alta

O relatório aponta algumas pistas de leitura: o aumento do policonsumo e da disponibilidade de heroína no mercado - a situação estável, em matéria de consumo de heroína no espaço europeu, poderá estar em causa com a produção recorde de ópio no Afeganistão (6610 toneladas em 2006).

Apesar de o tratamento de substituição reduzir o risco de overdose fatal, "todos os anos são notificadas algumas mortes associadas ao abuso" de medicamentos como a metadona.

A abstinência também pode ser contraproducente. "Muitas overdoses ocorrem após a saída de uma prisão ou de uma desintoxicação. O toxicodependente recai, consome a quantidade de droga a que se habituara, não tem a mesma tolerância, não aguenta", explica Roland Simon, coordenador científico do OEDT responsável pela área de Intervenção, Leis e Políticas.

Os especialistas recomendam acesso facilitado ao tratamento, mas também estratégias de redução de riscos dirigidas a consumidores que estão a sair da cadeia ou da desintoxicação. "Claro que é difícil pensar que alguém que está a sair vai consumir dali a dois ou três dias, mas é preciso informar a pessoa para evitar o erro", comenta Roland Simon.

A prevenção pode também incluir formação em primeiros socorros para consumidores de droga - ferramentas que podem usar nos locais de consumo. E formação especifica para o pessoal dos serviços de tratamento sobre modos de enfrentar os riscos do policonsumo.

Homens dos 15 aos 39 anos

Desde 1990, os Estados-membros da União Europeia (UE) notificaram perto de 130 mil mortes. "Entre os homens dos 15 aos 39 anos, as taxas de mortalidade são normalmente três vezes mais elevadas", lê-se no relatório.

Enquanto afirma a necessidade de "acções igualmente eficazes para reduzir as mortes relacionadas com o consumo de droga", o OEDT assinala os progressos feitos na redução de HIV. A avaliação é "globalmente positiva", apesar de se terem registado 3500 novas infecções de HIV entre consumidores de drogas injectáveis. Portugal mantém-se à frente nesta negra estatística. O OEDT refere "indícios de uma elevada incidência recente" em Portugal, Lituânia e Estónia. A hepatite C continua a ser a "epidemia oculta", que afecta um milhão de pessoas. No conjunto de mortes indirectas incluem-se as geradas por violência, suicídio e acidentes.

Menores de 15 anos representam um por cento dos utentes em tratamento

Apenas sete países europeus, entre eles Portugal, dispõem de unidades destinadas a crianças e jovens

a Os adultos podem ter uma percepção diferente, mas o consumo de drogas ilegais entre menores de 15 anos é "raro" na Europa. A dependência "é ainda mais rara" e quase sempre circunscrita a grupos específicos - com outras perturbações psicológicas e sociais associadas. Este grupo etário representa menos de um por cento dos utentes em tratamento.

Segundo um relatório específico ontem divulgado pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), a cannabis é a substância ilegal mais consumida pelos menores de 15 anos. As inaláveis (cola, por exemplo) ocupam o segundo lugar. Os estudos referem uma escalada da prevalência de consumo de cannabis durante os primeiros anos de adolescência, sobretudo entre os 11-12 anos e os 15-16 anos - 23 por cento já experimentaram aos 15. Pelo contrário, o uso de inaláveis aumenta pouco ou nada depois dos 11-12 anos.

Por que razão o número de menores em tratamento é diminuto? Porque o consumo nestas idades é reduzido, claro. Mas também, sublinha o coordenador científico do OEDT, Paul Griffiths, porque, por norma, nesta fase, o uso não se tornou ainda problemático. Acresce que o tratamento para esta faixa etária é "pouco disponível" - apenas um terço dos países europeus dispõe de resposta adaptada a crianças e jovens (Portugal, Áustria, Países Baixos, Luxemburgo, Chipre, Grécia e Alemanha). E os serviços sociais tendem a não registar os problemas de droga quando um menor frequenta um programa por outro motivo.

Quem são estes menores? Os que possuem familiares consumidores "correm maior risco" de cedo se iniciarem nas drogas - "devido às consequências neurológicas da família ou devido às consequências neurobiológicas provocadas pelo consumo de substâncias durante a gravidez". Um factor muito mencionado nos estudos é o desconhecimento dos pais acerca das actividades dos filhos. Uma relação negativa com a escola e o ingresso numa actividade criminosa ou delinquente podem também dar um forte contributo.