Bárbara Wong, in Jornal Público
Está sentada no chão, junto à carroça, toda vestida de negro - o lenço que traz à cabeça (porque é viúva) já tem alguns buracos, assim como a saia comprida -, os pés descalços e muito sujos de terra. Cláudia da Conceição Silva tem 50 anos, mas o rosto curtido pelo sol, pelas ralações e pelas noites passadas ao relento parece carregar muitos mais. Cláudia é a matriarca da família Ganhão, tem oito filhos e muitos netos. São portugueses de etnia cigana e são nómadas.
Em Portugal, existem cerca de 4200 ciganos itinerantes, que pernoitam por poucos dias num sítio, levantam o acampamento e seguem caminho. Não têm morada fixa, por isso, não têm trabalho, nem põem os filhos na escola. A pobreza, no caso da família de Cláudia Silva, é extrema, sobrevivem da caridade e da esmola que ela vai pedindo.
Como não tem os miúdos na escola, não está em condições de aceder ao Rendimento Social de Inserção (RSI). Ninguém sabe ler. Como está sempre a caminho, não pode trabalhar. "A fazer o quê? Se ninguém lê?", pergunta. Como não pára no mesmo lugar não pode candidatar-se a nenhuma habitação social, lamenta. "Todos os dias peço a Deus uma casinha", confessa.
As inúmeras mantas estão todas dobradas, já em cima da carroça de madeira com pneus de um automóvel. Está quase tudo pronto para abandonar aquela beira de estrada, em Porto Alto, no Ribatejo. A GNR já lhes fez uma visita e advertiu-os a sair, conta o filho José Manuel, de 19 anos, que tem uma perna ligada com um trapo sujo de sangue. Cortou-se com uma foice quando apanhava erva para as mulas que puxam as carroças. Precisava de levar uns pontos, mas não há dinheiro para isso.
Pelo campo, andam os filhos e os netos da matriarca, todos mais ou menos das mesmas idades. Têm os rostos, as mãos e os pés sujos, mas não cheiram mal, orgulha-se Cláudia Silva. Embora lamente ser difícil conseguir água para beber, cozinhar e para os banhos tomados num alguidar. "Somos pobres, mas com a graça de Deus gosto de asseio e de limpeza", diz, ao mesmo tempo que adverte a filha mais nova, de sete anos, que pega num tacho e tira água de uma enorme leiteira de alumínio para beber: "Cuidado, Marcelina, que a água ainda é longe..."
Todos os dias Cláudia Silva pede a Deus uma casinha em Évora, porque foi lá que viveu toda a vida, numa casa de madeira, até há quatro anos, quando a câmara derrubou tudo, conta.
Agora, sempre que a família regressa a Évora, a GNR expulsa-a. O que acontece em qualquer lado onde estão muito tempo. "Os guardas não nos deixam estar em lado nenhum, eles vêm numa carrinha grande, são mais de 20, pegam em coisas e batem-nos. Cortam-nos os panos [as lonas com que montam o acampamento], já me ficaram com uma das carroças", lamenta.
Antes, a família fazia trabalho sazonal, na agricultura. Agora já não o faz, a culpa é das máquinas que apanham o tomate e a azeitona. "Já ninguém precisa de pessoal", conclui.
Não se adaptaram à casa
A família de Lola Monteiro da Silva vive desde 1984 pelos pinhais da Marinha Grande, Beira Litoral. Mas Lola, que nasceu em Lisboa, já andou por Lugo, Pamplona e Madrid, em Espanha. Por cá, viveu em barracas e tendas no Porto, Santarém, e na zona de Leiria. "Gostava de ter uma casa nas Caldas da Rainha", sonha a mulher de 66 anos e com muitos quilómetros com a casa às costas.
O que a faz andar de um lado para o outro são os conflitos com outros ciganos, admite. Quando há um problema, não podem regressar ao mesmo sítio. "Estou cansada de tantos filhos e de tantos netos, preferia viver sozinha", confessa. Os filhos bebem muito, fazem zaragatas, Lola Silva também não se deixa ficar e ameaça-os que os pendura nas árvores pelos pés ou que lhes arranca um olho, vai desfiando divertida. "Não gosto de tanta ciganagem junta!", ri.
Lola vive perto da zona industrial. Paco, um dos filhos, a mulher Maria Cecília e os nove filhos vivem na outra ponta da Marinha Grande, junto ao estádio municipal. Ao todo, a família Monteiro da Silva é constituída por 35 pessoas, 25 são crianças.
Destas, a maior parte vai à escola. No pinhal, as meninas saltam em cima de um colchão, cantam o último sucesso dos Morangos com Açúcar. Junto ao estádio, Filipa, filha de Paco, com 11 anos e no 6.º ano, gostava de ser professora.
Todos têm acesso ao RSI, vivem da sucata que apanham e dos cestos que fazem e vendem. Têm autorização da autarquia para permanecer nos espaços ocupados.
Os acampamentos de Lola e o de Paco são semelhantes. As lonas esticadas e presas a estacas servem de telhado e parede. O chão é tapado por mantas, há camas desdobráveis e colchões, há rendas que tapam as malas das roupas, ao fundo a televisão que trabalha graças a um gerador, há mesas cheias de panelas e pratos lavados, há arcas com comida, mas também muito lixo espalhado pelo chão.
A família de Lola já viveu numa casa no centro da Marinha Grande, mas as queixas dos vizinhos obrigaram-na a sair. Culpa os netos por isso. A família de Paco também ocupou, com autorização, uma casa de um guarda-florestal. Fizeram uma horta, arranjaram as janelas, mas não se adaptaram. "Era muito escuro, os miúdos tinham medo de brincar lá fora." Ali têm os holofotes do estádio. "Se tivesse água e luz, nunca tinha saído de lá", conta Cecília, de 29 anos, que dá de mamar ao nono filho, sentada numa manilha de cimento.