30.3.10

O mito do Estado mínimo

Daniel Oliveira, in Expresso

No mesmo momento em que defende o emagrecimento do Estado o governo anuncia o aumento do contingente policial. É coerente e é a partir daqui podemos fazer um debate sobre o Estado que queremos: o social ou o penal.

Quando lhe dizem que querem menos Estado não lhe dizem tudo. Nem sequer o que lhe dizem é verdade. É falsa a dicotomia mais Estado/menos Estado. Nunca foi esse o debate. O "Estado mínimo" é um mito. Se olharmos com atenção, não há partido em Portugal que exija mais Estado do que o CDS. Ou a polícia não é Estado? E as prisões não são Estado?

Não me verão escrever aqui que dispenso a polícia. Não a dispenso. Apenas faço notar esta contradição para se perceber que a questão não é se se quer mais ou menos Estado. É o que se desvaloriza e o que se valoriza no Estado. É o Estado que se quer e o Estado que se dispensa.

Dirão: Portas quer Estado onde o Estado falta. Pois fica apenas a informação: em Portugal, em 2008, havia um polícia por cada 227 habitantes. A média europeia é um por 350 habitantes . Talvez haja problemas na sua distribuição. Mas não é disso que o CDS fala. O que diz é que quer mais. Ou seja, mais do que a eficácia, a direita quer deixar clara qual é a sua prioridade para o Estado.

Dando razão ao CDS, o mesmo governo que se encarrega de emagrecer o Estado e cortar nas despesas sociais vai admitir "imediatamente" dois mil novos policias, melhorando ainda mais a nossa média. Não acho que a existência de polícias seja uma coisa negativa. Gosto de me sentir seguro. Mas já estas duas coisas associadas - cortes nas prestações sociais e aumento do efectivo de polícias - me diz o tipo de Estado que queremos. Faz sentido: só podemos ter menos Estado Social se tivermos mais Estado Policial.

Temos prestações sociais porque somos solidários e queremos viver num país decente. Mas também as temos porque somos pragmáticos: o conforto mínimo garante alguma segurança. Se nos ficarmos pelas democracias, facilmente percebemos que são as sociedades mais igualitárias e não as mais policiadas que garantem mais segurança. A diferença entre o Estado Penal e o Estado Social (continuo a falar apenas de democracias) resume-se nestes números: os EUA têm dos índices mais altos de desigualdade dos países desenvolvidos e uma população prisional de 750 por cada cem mil habitantes. A Dinamarca tem dos melhores índices de igualdade dos países desenvolvidos e uma população prisional de 67 por cada cem mil habitantes . É a diferença entre um Estado Penal e um Estado Social. Sendo que nenhum deles é mínimo.

Não vos maçando com as muitas referências filosóficas que antecedem este debate, atalho. Simplificando (as dicotomias são sempre perigosas), há quem acredite que o bem estar económico é um prémio pelo mérito. Os que mais têm só têm mais porque o merecem. Pelo contrário, há quem acredite que a riqueza e a pobreza resultam, antes de mais, de uma injustiça na distribuição dos recursos - sejam eles materiais ou imateriais.

Os primeiros pensam que a principal função do Estado é garantir que esta espécie de "justiça natural" não é perturbada. Deve, antes de mais, defender o mercado e o valor supremo da propriedade privada. Cobrar poucos impostos (que castigam o mérito), gastar pouco com prestações sociais (que promovem a preguiça) e dar às funções de segurança do Estado a maior das relevâncias. Os segundos acreditam que, mesmo não dispensando o monopólio da violência detido pelo Estado (até porque os mais pobres são sempre as primeiras vítimas do crime), o papel central do Estado é redistribuir a riqueza (através dos impostos e das prestações sociais), garantir a igualdade de oportunidades (por via, por exemplo, da educação e da saúde públicas, universais e gratuitas) e ter um olhar mais geral sobre a segurança (reduzindo o risco de pobreza, por exemplo, através de apoios sociais e de uma política que tenha o pleno emprego como objectivo).

Não faço a injustiça de achar que os primeiros dispensam todas as funções sociais do Estado, porque estaria a mentir. Não farão a injustiça de achar que os segundos dispensam as funções de segurança do Estado, porque estariam a mentir.

Ao anunciar cortes em prestações sociais e o aumento dos efectivos policiais o governo socialista - que normalmente estaria no segundo grupo que aqui foi referido - deixa, para além do conteúdo de cada medida, bem claro o caminho que escolheu. Deixa claro que já não é apenas o socialismo que está na gaveta. É o modelo social em que a Europa apostou nos últimos sessenta anos.

Se o caro leitor acha que o confronto entre esquerda e direita não faz hoje qualquer sentido, aqui ficam as minhas desculpas. Porque é disso mesmo que tenho estado a falar.