1.2.23

Há funcionários judiciários a trabalhar em supermercados porque o salário não chega

Sónia Trigueirão, in Público

São oficiais de justiça de dia mas à noite e aos fins-de-semana trabalham em supermercados, call center e conduzem TVDE. Funcionários judiciais estão em greve desde 10 de Janeiro.

Rosa Galvão é funcionária judicial no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), em Lisboa, e colaboradora num supermercado. Há 14 anos que esta oficial de Justiça tem dois empregos para ter rendimentos suficientes para pagar as suas contas. No supermercado, esta funcionária de 36 anos, faz de tudo: reposição de produtos nas prateleiras, faz pão, faz caixa e até limpezas.

“Triste e muitas vezes cansada”, é assim que Rosa diz que se sente porque gosta de ser oficial de justiça. Desde 2008, altura em que deixou Seia, distrito da Guarda, para rumar a Lisboa que anda pelos meios judiciais. Também foi cedo que percebeu que, dos 794 euros mensais que recebia, não sobrava quase nada depois de pagar as contas.

Foi nessa altura que se viu obrigada a ter um segundo emprego que veio a valer-lhe de muito porque em 2011 a sua carreira de oficial de justiça sofreu um revés, quando não conseguiu passar num concurso. As provas em que chumbou eram essenciais para entrar na carreira de oficiais de justiça.

“Não tinha tempo para estudar. Passava noites e noites no tribunal. Às vezes só ia a casa para tomar banho”, conta, acrescentando que não desistiu e em 2015 voltou a conseguir regressar à profissão. Desta vez passou nas provas.

E o segundo emprego manteve-se até hoje. “Trabalho no supermercado aos fins-de-semana”, conta, sublinhando que há muitos casos como o seu.

“As condições de exigência em que os oficiais de justiça trabalham são tremendas e com as parcas remunerações que auferem não conseguem garantir a sua subsistência” Carlos Almeida, presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça

Num call center entre as 17h e as 22h

E de facto há. Maria tem 62 anos e é funcionária judicial há 33. É adjunta num tribunal de Lisboa durante o dia, mas depois das 17h senta-se num call center até às 22 horas. Faz isto há dez anos.

Também Ana, de 57 anos e funcionária no Palácio de Justiça, em Lisboa, se viu obrigada a seguir o mesmo caminho que Maria. Quando se divorciou ficou com duas filhas a cargo e os 750 euros de salário não chegavam. Foi um call center que lhe ajudou a completar o ordenado. Tem 22 anos de serviço e há meses em que leva pouco mais de mil euros para casa.

Há funcionários judiciais que se vêem obrigados a trabalhar em supermercados, call center e até como motoristas de TVDE (Transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma electrónica), segundo Carlos Almeida, presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça.

Os funcionários ouvidos pelo PÚBLICO neste artigo preferiram não ser fotografados para não serem identificados em ambos os locais de trabalho, razão pela qual o PÚBLICO não identifica também essas empresas. Alguns aceitaram ser identificados apenas pelo segundo nome.

“As condições de exigência em que os oficiais de justiça trabalham são tremendas e com as parcas remunerações que auferem não conseguem garantir a sua subsistência”, afirmou, sublinhando que muitos deles estão deslocados e por isso trabalham em locais em que as casas têm rendas incomportáveis face ao seu salário.
Sem dinheiro para a renda

Carlos Almeida avisa ainda que há funcionários judiciais que estão já numa situação muito complicada e que admitem vir a ter de entregar as casas. “Os oficiais de justiça trabalham para lá da hora de saída e nem sequer auferem pelas horas extraordinárias”, lembra sublinhando que muitos sujeitam-se assim a segundos empregos.

Para o dirigente sindical este é mais um exemplo das críticas que o sindicato tem feito relativamente à carreira dos oficiais de justiça e lembra que este é também um dos motivos para manter a greve, por tempo indeterminado, que começou a 10 de Janeiro, dia da abertura do ano judicial, e teve nesse primeiro dia uma adesão superior a 85%, paralisando tribunais e serviços.

Mais contratações, o descongelamento das progressões nas carreiras e a inclusão no vencimento do suplemento de recuperação processual, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2021, para o pagamento de 14 prestações anuais são as principais reivindicações subjacentes a esta greve. Em jeito de balanço, Carlos Almeida diz que a greve continua a paralisar tribunais em todo o país.
Ministério diz que vai recrutar 200 funcionários

E do Ministério da Justiça também não há novidades. “Apenas silêncio”, sublinha o sindicalista revelando que a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, anunciou no início da greve o recrutamento de 200 oficiais de justiça, mas que a directora-geral já assinou um despacho que diz quem são as pessoas que se podem candidatar.

De acordo com Carlos Almeida o concurso de ingresso é para trabalhadores em situação de precariedade a exercer funções de oficial de Justiça há mais de um ano. “Numa reunião a directora-geral tinha dito que não existiam situações de precariedade, nomeadamente de pessoas a usurpar funções de oficiais de justiça”, afirmou, sublinhando que alguém faltou por isso à verdade.

Questionado sobre o facto de existirem funcionários judiciais que têm de recorrer a um segundo emprego para conseguirem compor o salário, o Ministério da Justiça explicou que são apenas 120, num universo de 7203, os que solicitaram autorização à Direcção-Geral da Administração da Justiça para exercer funções num segundo local de trabalho. O ministério sublinha ainda que destes 120, 10 são funcionários do regime geral (assistentes técnicos e assistentes operacionais).

"O Ministério da Justiça abriu recentemente concurso para 200 novos oficiais de justiça e continua empenhado na valorização destas carreiras. Sem prejuízo, importa referir que esta percentagem, inferior a 1,7%, não permite tirar a conclusão que é inferida na pergunta enviada", sublinhou.

Já o presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça reconhece que há muitos funcionários que estão a trabalhar num segundo emprego sem terem pedido a respectiva autorização e que por isso a tutela pode não ter números que reflictam a realidade.