Ana Cristina Pereira, in Público
Num artigo publicado na revista Temas Sociais, Elisete Diogo, Bárbara Mourão Sacur e Paulo Guerra sugerem reforma do sistema de promoção e protecção das crianças e jovensNão é uma revolução o que recomendam Elisete Diogo, investigadora da Universidade Católica, Bárbara Sacur, assessora para a área da psicologia no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, e Paulo Guerra, juiz desembargador no Tribunal da Relação de Coimbra. É uma reforma do sistema de promoção e protecção das crianças e jovens que o torne mais coerente, mais integrado, mais eficaz.O momento parece-lhes determinante. Pela primeira vez, Portugal tem uma Estratégia Nacional para os Direitos da Criança (2021-2024). E essa fala em apoiar as famílias, incitar a desinstitucionalização, reforçar o acolhimento familiar, qualificar o sistema de adopção e de apadrinhamento civil.
O sistema de protecção de crianças e jovens prioriza as medidas em meio natural de vida (92,1%). Contudo, quando retira crianças à família e as põe à guarda de desconhecidos, recorre quase sempre a instituições. No final de 2021, o Instituto de Segurança Social contava 6369 crianças e jovens, 3,5% em acolhimento familiar e 96,5% em diversas formas de acolhimento residencial.
Desde 2019, têm sido dados alguns passos para aumentar o número de famílias de acolhimento, mas com pouquíssimo resultado. Os especialistas dão conta da rapidez com que o Instituto de Segurança Social e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa montaram uma resposta de acolhimento familiar destinada a crianças não acompanhadas oriundas da Ucrânia que mostra que é possível mudar este paradigma. Portugal “precisa de rapidamente garantir o mesmo direito às restantes crianças a residir em território nacional, também elas vítimas e em sofrimento”.
Num artigo intitulado “Caminhos para uma reforma do sistema de promoção e protecção das crianças e dos jovens”, agora publicado na revista Temas Sociais, da Universidade Lusófona, começam por propor uma reorganização das medidas de protecção de crianças e jovens em risco: apoio junto dos pais, apoio para a autonomia de vida, colocação junto de outro familiar, colocação junto de pessoa idónea, colocação em família de acolhimento, colocação em casa de acolhimento, confiança a pessoa seleccionada, família de acolhimento ou instituição com vista a adopção.
Pode parecer um detalhe de somenos falar em colocação e não em apoio junto de outro familiar ou pessoa idónea, mas, diz Paulo Guerra, “tendo o nome certo, as coisas ficam mais perceptíveis juridicamente falando”. O apoio é dado aos pais para se reorganizarem e cuidarem dos filhos ou aos adolescentes para se autonomizarem, caso tenham 15 ou mais anos. De resto, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens ou o Tribunal de Família retira a criança ou jovem do contexto natural e “coloca-o” noutro.
Neste momento, diferem as condições pensadas para cada uma das possibilidades de colocação. “Nós advogamos que sejam iguais”, sublinha Bárbara Sacur. Se uma avó, uma tia ou uma madrinha ou outra pessoa idónea se dispõe a acolher a criança ou jovem em sua casa, deve receber o mesmo acompanhamento psicossocial e o mesmo apoio económico (uma família de acolhimento seleccionada e treinada, por exemplo, recebe 531,84 euros por mês).
“O que queremos é nivelar todos os cuidadores, que qualquer um possa ter apoio técnico e financeiro”, esclarece Elisete Diogo. “Falámos em valor equiparado, próximo, na medida do necessário. No fundo, o Estado paga um valor mensal por cada criança que põe ao cuidado de instituições ou famílias de acolhimento quando por vezes a família alargada seria uma resposta mais adequada, mas não tem condições financeiras. O que defendemos é que se fosse por etapas. Que as famílias fossem avaliadas, capacitadas e acompanhadas de forma mais efectiva.”
Apelando ao uso do termo “criança” em detrimento de “menor”, sugerem especialização dos tribunais. Propõem que haja Juízos de Família, Crianças e Jovens nas 23 comarcas e não apenas em 20 (Bragança, Guarda e Portalegre não têm). E que se afine a lei para alargar o manto do sistema de protecção.
“Um jovem que está inserido numa casa de acolhimento pode continuar no sistema de protecção até aos 25 anos, se estiver num percurso educativo ou de formação profissional”, exemplifica Bárbara Sacur. O mesmo acontece se estiver numa família de acolhimento ou se beneficiar de uma medida de apoio à autonomia. Pelo contrário, se estiver sujeito a uma medida de apoio junto dos pais ou de colocação em casa de um parente ou de uma pessoa idónea, o processo cessa quando o jovem atinge a maioridade. Se solicitar a continuação da medida, pode manter-se até aos 21 anos.
No entender destes especialistas, a diferença é incoerente com o princípio da igualdade, com o superior interesse da criança e com a priorização das medidas e apoio às famílias. Se o jovem está com os pais, outro familiar ou pessoa idónea e continua a estudar, a medida de protecção também deve poder manter-se até aos 25.
Alargar adopção
Elisete Diogo, Bárbara Sacur e Paulo Guerra também recomendam o alargamento da idade de adopção dos 15 para os 18 anos. Neste momento, uma pessoa de 15, 16 ou 17 anos só pode ser adoptada se a adoptabilidade tiver sido decretada antes dos 15. Isso deixa de fora, por exemplo, irmãos de crianças adoptadas.
Essa parece ser a ideia com mais possibilidades de avançar, pelo menos nos tempos mais recentes. O assunto está no Parlamento. No primeiro mês deste ano, deram entrada duas propostas de lei nesse sentido. A primeira do Bloco de Esquerda, a segunda do Partido Comunista Português.
O problema essencial é, nas palavras de Paulo Guerra, o desencontro entre crianças disponíveis e candidatos à adopção. “As crianças têm normalmente a idade errada, a saúde errada, a cor errada. Vão ficando as que não são caucasianas, as que têm problemas de saúde, as que têm mais idade”, salienta. “O alargamento da idade não irá resolver isto, mas dará mais hipóteses. Temos mais três anos para encontrar uma família nas listas nacionais ou eventualmente nas listas internacionais.”
Fazem também a defesa da possibilidade de readmissão no sistema de protecção depois dos 18. No artigo, explicam que “os jovens que vivenciaram situações de maus tratos ou negligência correm maior risco de necessitarem de apoio social, ficarem numa situação de sem abrigo, consumirem substâncias, sofrerem problemas de saúde mental ou virem a contactar com o sistema tutelar educativo”.
Na pandemia, aumentaram as fugas prolongadas que levaram ao fim da medida de acolhimento residencial. “Há miúdos que saíram pelo sufoco de não saberem como as famílias estavam e aperceberam-se de que continuava tudo na mesma”, conta Paulo Guerra. “Devia haver pelo menos uma possibilidade de estes jovens poderem arrepender-se e regressar ao centro de acolhimento.”
A PAJE – Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos tem feito pressão nesse sentido. Contactou todos os grupos parlamentares. BE, PCP, PEV chegaram a apresentar propostas de lei antes de a Assembleia da República ter sido dissolvida. Já este mês, o PCP voltou a propor o direito de solicitar a reversão até aos 21 anos de qualquer modo e até aos 25 “sempre que existam, e apenas enquanto durem, processos educativos ou de formação profissional”.
Um provedor da criança
A proposta de reforma inclui ainda um provedor da criança. No dizer de Bárbara Sacur, seria uma figura acessível aos menores. Disponibilizaria informação numa linguagem compreensível para eles. Fundamentando-se no saber científico, trataria de diagnosticar as suas necessidades e de apresentar propostas. Teria de ser uma figura imparcial, com uma visão ampla, achega Elisete Diogo.
O provedor da criança surgiu na Noruega em 1981. Neste momento, Portugal é um dos poucos países na União Europeia sem tal figura. Participa como observador na Rede Europeia de Provedores da Criança.
Essa tem sido uma das bandeiras da AjudAjudar – Associação para a promoção dos direitos das crianças e jovens. Já a apresentou a vários grupos parlamentares e, ao que diz a sua presidente, Sónia Rodrigues, todos lhe têm dito que esse papel é assumido pelo provedor de Justiça e que haver um provedor só para as crianças seria inconstitucional. Parece-lhe haver uma oportunidade para alterar isso, agora que a Constituição vai ser revista.
Em paralelo, o trio de profissionais da infância sugere um conselho nacional para a protecção das crianças. Neste momento, o acompanhamento das medidas de protecção têm dois organismos: a Comissão Nacional da Promoção dos Direitos e Protecção de Crianças e Jovens (quando decretadas pelas comissões locais) e o Instituto de Segurança Social (quando decretadas pelos tribunais). Cada qual faz o seu relatório. Julgam que tudo funcionaria melhor se houvesse uma autoridade nacional, “tendo como missão planear, coordenar e implementar as políticas de promoção dos direitos e de protecção de crianças e jovens”. Também lhe caberia “assegurar a monitorização, a recolha e a publicação de dados”.