6.12.13

João Lobo Antunes."É consolador ver uma geração entusiasmada a lutar na crise"

Por Marta Reis, in iOnline

Presidente do júri da primeira edição dos Prémios Santa Casa Neurociências diz que a ciência portuguesa não está moribunda

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa atribuiu ontem pela primeira vez dois prémios na área das neurociências, um para o estudo de uma doença neurodegenerativa e outro para novas abordagens a lesões na medula. Ao todo, os investigadores vão receber 400 mil euros para os seus projectos, uma ajuda extra numa altura em que o orçamento nacional da ciência tem vindo a encolher. João Lobo Antunes, neurocirurgião e presidente do Instituto de Medicina Molecular, presidiu o júri da primeira edição dos prémios Melo e Castro e Mantero Belard. Numa conversa sobre a iniciativa, rejeita o pessimismo e diz que a competição serviu de termómetro: 13 entre 35 candidatos estavam quase em pé de igualdade para ganhar.

Este é o maior prémio nacional nas neurociências. Surge numa altura importante?

É um prémio muito valioso na área das neurociências mas tem características particulares, porque o seu objectivo será financiar e promover investigações em áreas específicas. Por um lado, uma área que do ponto de vista da expressão numérica é mais limitada: os traumatismos vertebro-medulares e, por outro, o campo vasto das doenças neurodegenerativas, de natureza muito diversa e que são um grande desafio para ciência médica deste século.

São o maior desafio?

Sem dúvida. Doenças neurodegenerativas como o Alzheimer ou o Parkinson estão ligadas ao envelhecimento, que é uma realidade demográfica, social e até moral muito relevante, não só nos países desenvolvidos, mas em todos os países do mundo.

Envelhecemos mal porque não se apostou mais cedo nas neurociências?

Não podemos ter um pensamento messiânico em relação à ciência. Um dos precursores do método científico distinguia dois tipos: a frutífera e a iluminífera. A frutífera era a ciência que se destinava a fazer bem e a ter impactos na vida das pessoas. Mas a primeira necessidade é conhecer os mecanismos das doenças, se é um processo inflamatório, genético ou outro. Grande parte da investigação é na vertente do conhecimento fundamental. Só conhecendo bem os processos é que podemos partir abordagens terapêuticas.

E é nessa fase que hoje já estamos nas investigações do cérebro?

Já começou há alguns anos, mas há desafios. No caso das lesões vertebro-medulares, por vezes mais esquecidas, também são necessários avanços. A Santa Casa tem trabalho de reabilitação nesta área, nomeadamente no Centro de Alcoitão, mas estes traumatismos são das coisas mais trágicas e onde poderíamos intervir melhor.

E a resposta é curta em Portugal?

Há bons pólos de resposta, mas haveria necessidade de mais camas. Mas é essencialmente uma área que passa muito pela prevenção. Muitos destes traumatismos são resultados de imprudências da juventude, mergulhar em áreas pouco profundas, andar em veículos motorizados sem estar na posse completa das faculdades. Em termos de investigação, as candidaturas a este prémio mostram alguma assimetria: tivemos 28 candidaturas ao prémio das doenças neurodegenegativas e apenas sete na área dos traumatismos.

É uma área onde tem havido pouco interesse científico?

É uma área um bocado órfã, mas os mecanismos de investigação também não são tão variados. Agora começam a surgir alguns modelos experimentais até no peixe e as células estaminais poderão ter um potencial regenerativo nas lesões. Há promessas, mas estamos numa fase inicial.

Perante as dificuldades que estão a viver as universidades, surpreendeu-o a qualidade de candidaturas?

Conheço muito bem o panorama da ciência em Portugal e acho que não é verdade de forma alguma dizer que a ciência em Portugal está moribunda. Há muitos centros de investigação que continuam pujantes. O centro a que presido, o Instituto de Medicina Molecular (IMM) ainda há pouco tempo teve uma bolsa de quase um milhão de euros da Fundação Bill e Melinda Gates.

Mas, por vezes, concorrer a essas bolsas implica ter comparticipação e as verbas nacionais tem vindo a cair...

Nós não temos razões objectivas de queixa. Não digo que seja verdade em todos os centros portugueses, mas no IMM não há razões objectivas de queixa. Claro que, como alguém dizia, os cientistas são como os jogadores compulsivos e as monarquias arruinadas: o dinheiro nunca chega. Há uma certa verdade nisso: também nós no IMM gostávamos de ter mais.

Antes da crise havia a pretensão até europeia de se passar de um investimento nacional de 1% do PIB, em que o país se encontra, para 3%.

Era 3% mas pelo menos 2% viriam da indústria e privados, o que é algo que em Portugal me parece praticamente inatingível, ou pelo menos no horizonte próximo não consigo antecipar.

Cada vez mais inatingível?

Depende muito da situação económica mas também do entendimento da necessidade de aposta na investigação industrial. Mas há mais doutorados nas empresas, acredito que haverá um impulso. Tenho uma visão optimista. A ciência é em si mesmo optimista e portanto temos de trabalhar e andar para a frente. Temos uma geração de gente de nova que é absolutamente extraordinária.

E não está a ir embora?

No IMM não tivemos ninguém a ir embora a não ser por convites profissionais que nos deixam orgulhosos. Pelo contrário, temos manifestações persistentes de pessoas que querem voltar e estrangeiros a querer vir.

Nesse sentido a ciência acaba por ser um ambiente contracorrente.

Nestes prémios há 11 países representados nas colaborações propostas. Não estamos de forma alguma isolados. E as pessoas não vêm só pelos instrumentos de investigação e aparelhos que temos. Os portugueses que querem voltar e os estrangeiros que nos procuram vêm pelo ambiente, pela culturalidade, porque encontram cá pessoas com quem falar. Os nossos institutos de investigação, e falo a nível nacional, já têm muita gente interessante, que sabe pensar, que sabe fazer a pergunta e achar a resposta. Há uma atracção intelectual pelo país.

Os seus alunos fazem boas perguntas ou já houve gerações melhores?

Têm de ser ensinados a fazer a pergunta. Isso faz-se cultivando a imaginação, fazendo-os pensar, fazendo-os formular de uma forma clara. Se a pergunta é bem formulada, a natureza dá uma resposta.

As escolas ensinam a fazer perguntas?

Acredito que sim. Celebrámos ontem o dia dos investigadores de doutoramento do Centro Académico de Medicina de Lisboa. Vê-los a apresentar os seus trabalhos é absolutamente consolador. É isto que temos de transmitir: ver uma geração de gente nova, entusiasmada com o seu trabalho e que continua a lutar não contra a crise mas dentro da crise, como acho que é melhor dizer, é muito compensador.

É consolador em relação a quê? Às notícias, à classe política?

À ecologia pessimista persistente, ao culto da má notícia mesmo quando a notícia é boa ou marginalmente boa. Muitas vezes nesses casos aponta-se para o melhor que ainda podia ser. Não entro nisso, nem eu nem o meu instituto.

A qualidade dos trabalhos tornou difícil a selecção?

Estaríamos à vontade para dar o prémio a pelo menos 13 trabalhos concorrentes. A escolha de um é sempre dolorosa.

O que é que faz a diferença?

Pequenas coisas que não devem transparecer para fora das reuniões. Mas há aspectos importantes: é este um trabalho passível de ser realizado? É o grupo capaz de o fazer? Isto não é um prémio de carreira, é um prémio para financiar trabalhos e não queremos deitar dinheiro à rua. Claro que em ciência há muitas sementes que não germinam, mas estes são grupos de ciência sólidos e só isso significa uma vitalidade importante num país da nossa dimensão. São prémios como este que permitem pôr o termómetro e medir a temperatura da ciência no país. Nas neurociências estamos muito bem.

Em Portugal já há apostas nesta área como a da Fundação Champalimaud.

Há também o Centro de Neurociências e Coimbra e grupos em várias instituições, mas isso são escolhas dos institutos. Não me parece que seja uma área favorecida. A força das neurociências é uma força universal. O cérebro é o cérebro.

E continua a ser o principal mistério?

Não só mistério mas o desafio. Pode substituir-se o fígado, o coração, não o miolo.

Falou da importância das perguntas. Qual é a sua neste momento?

Para mim, como neurocirurgião com mais de 40 anos de carreira, a área em que ainda não houve progressos e que mais me intriga é a dos tumores cerebrais. Retirar um tumor do cérebro não é o mesmo que amputar um membro ou um seio. Não podemos ir ao cérebro e tirar um bocado sem transformar a pessoa noutra, menos consciente, menos viva, com as emoções abafadas. Há imensa investigação, lançámos um banco de tumores mas ainda não temos as respostas.

Ainda o fascina o trabalho de laboratório? O barulho dos neurónios a disparar que hoje já se consegue captar?

O barulho que me ocupa é o da sala de operações, o ruído do monitor. Hoje em dia quando estou a operar exijo silêncio absoluto para ouvir o "bip bip" e perceber o que está a passar.