16.12.13

Maria Fernanda faz trabalho socialmente útil na ilusão de que terá emprego

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Medida está em vigor desde Outubro do ano passado, mas Instituto de Segurança Social não esclarece até que ponto está a ser aplicada. Vila Real vai à frente.

Maria Fernanda está atarefada a secar as marmitas e a arrumá-las. As embalagens andam sempre cá e lá — saem da cozinha da Santa Casa da Misericórdia de Vila Pouca de Aguiar atestadas de comida para idosos ou para famílias carenciadas e regressam no dia seguinte com os vestígios. Trabalha das 9h às 14h às segundas, terças e quartas-feiras, mas não recebe um euro por isso. Exerce o que se designou chamar de “actividade socialmente útil”, um programa que convoca beneficiários de rendimento social de inserção (RSI) para trabalhar até um máximo de 15 horas por semana, distribuídas por três dias, para entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos.

Vila Real, com 5249 beneficiários, foi um dos primeiros distritos a avançar com a polémica medida, em vigor desde o ano passado. O centro distrital de Segurança Social recebeu 189 pedidos de 26 instituições dos concelhos de Alijó, Chaves, Murça, Peso da Régua, Saborosa, Santa Marta, Vila Pouca de Aguiar e Vila Real — a maior parte (82%) para cumprir o cúmulo de horas previstas por lei.

A medida abarca pessoas com capacidade para trabalhar, sem crianças ou idosos a cargo, não inseridas em programas de formação ou de procura activa de trabalho. Quando a lançou, o ministro Pedro Mota Soares disse que podia abranger até 50 mil pessoas. Mas o Instituto de Segurança Social nada esclarece sobre a estado da sua aplicação, apesar do PÚBLICO estar a pedir dados desde Junho.

Por todo o país, os centros distritais receberam ordem para fazer listas de pessoas aptas para o programa. Instituições candidatam-se ao programa e, atendendo à proximidade e ao perfil, seleccionam beneficiários.

No distrito de Vila Real, candidataram-se quatro câmaras, uma junta de freguesia e mais de duas dezenas de privados – fundações, misericórdias e instituições particulares de solidariedade social. Neste momento, estão 60 beneficiários a desemprenhar pequenas tarefas, sobretudo, de apoio a serviços sociais.

Maria Fernanda começou em Junho. “A doutora chamou-me. Ela disse para vir para o Lar de Nossa Senhora da Conceição. Eu vim. Eu quero é trabalhar! Eu não estranho nada, nadinha!” Bom, no primeiro dia estranhou. “Saí daqui doente. Ia a pensar: aonde uma pessoa chega! Será que vou ficar assim?”

Entra ali, coloca o avental, enfia a toca e põe-se a lavar ou a secar louça, a ajuda a lavar ou a secar idosos, a descascar ou a partir legumes. “Tudo o que mandam, eu faço”, diz a mulher, de 52 anos. Há outros quatro a cumprir programa na Santa Casa. Um deles está lá fora, a lavar as cinco carrinhas usadas no apoio domiciliário.

Maria Fernanda gosta de se sentir parte da equipa. Está convencida de que, fazendo tudo direitinho, a podem contratar no final desta experiência, que deverá alongar-se um ano. Experiência de limpeza não lhe falta. Trabalhou muitos anos na hotelaria. Está desempregada há quatro ou cinco.

“Todas as pessoas têm expectativa de ficar a trabalhar”, admite Rita Dias, da Santa Casa, também vice-presidente da Câmara de Vila Pouca de Aguiar, entidade que se candidatou a dez e tem nove beneficiários de RSI a fazer “actividades socialmente úteis”.

As oportunidades escasseiam num concelho tão marcado pelo êxodo e pelo envelhecimento. “Tenho vivido porque tenho feito horas”, diz Maria Fernanda. Tanto dá uma mão num restaurante como numa horta, tanto limpa uma casa como desfolha milho. “Estive um ano na câmara a varrer e não estranhei nada, nadinha.”

O que cumpriu, há dois anos, na câmara, foi um contrato Emprego Inserção +, o que entra na categoria do “trabalho socialmente útil” destinado a beneficiários de RSI, mas corresponde ao modelo dos programas ocupacionais que foi inventado há muito: quem trabalha recebe uma bolsa de 419,22 euros, subsídio de transporte e de alimentação e seguro de acidentes pessoais.

Maria Fernanda recebe apenas os 178, 15 euros de RSI. Por lei, tem direito a transporte, seguro e alimentação quem trabalhe mais de quatro horas por dia. A Santa Casa paga-lhe o autocarro nos dias em que ela tem de se deslocar da aldeia de Pedras Salgadas para a vila. Servidos os utentes, as funcionárias convidam-na a sentar-se com elas para o pequeno-almoço e para o almoço.

Instituições houve que cederam à tentação de planear horários que destrambelhavam a vida dos beneficiários. Propuseram, por exemplo, uma hora e meia de manhã e outra hora e meia de tarde, evitando pagar o subsídio de alimentação e de transporte. Teve o centro distrital de as refrear.

Nem sempre corre tão bem como com Maria Fernanda. Naquele mesmo dia, alegando gripe, não tinham ido trabalhar os dois beneficiários colocados no Centro Social e Paroquial de São Tomé de Castelo, por exemplo. “São pessoas com histórias de vida complicadas, com limitações”, salienta a autarca.

No entender da social-democrata, além de ser “um apoio precioso” às instituições, o programa é um modo de os beneficiários se sentirem inseridos na comunidade e de ganharem uma experiência. “Como é um meio relativamente pequeno conhecemos quem está na lista, sabemos se serve ou não.”

Há um ano, PS, PCP, BE e PEV apresentaram na Assembleia da República resoluções a pedir a revogação desta medida. Mariana Aiveca, do BE, fez um dos discursos mais inflamados. Defendeu que “todo o trabalho digno tem de ser pago”. “Se há trabalho, integrem as pessoas”, reclamou.

Ainda sexta-feira, num encontro organizado por sem-abrigo, no Porto, a directora adjunta do centro distrital de Segurança Social do Porto, Ana Venâncio, disse ao vereador da Habitação Câmara do Porto, Manuel Pizarro, que tinham de conversar sobre modos de criar espaço para a “actividade socialmente útil”, e a diferença entre sociais-democratas e socialistas ficou bem clara. Se há trabalho, tem de ser pago, defendeu Pizarro.

Quem não aceita, perde o RSI. Não aceitar não é opção para Maria Fernanda. Os filhos estão grandes, têm a vida deles. Dois moram na Suíça, um em Famalicão, onde ela nasceu. Só uma está perto dela, no concelho para o qual ela se mudou quando se casou com um homem que muito lhe deu “mau viver”. Nenhum a pode ajudar. Agarra-se à esperança de ter ali uma porta para o mercado de trabalho.