Por Sílvia Caneco, in iOnline
Analfabeta, nunca casou e cuidou da patroa até ela morrer. Agora pede aos herdeiros que paguem tudo aquilo a que tinha direito e nunca recebeu
Benilde não o sabia, mas aos 17 anos entregou a sua vida a Ernestina. Quando deu por ela tinham passado cinco décadas, a patroa estava deitada na cama às portas da morte, ela noutra cama no mesmo quarto a acorrer aos seus ais, e sem ter ninguém. Benilde não se casou, não teve filhos. Nem tão-pouco se lhe conheceram namorados, saídas nocturnas ou matinés com as amigas. Durante 50 anos foi uma criada exemplar: limpava a casa, lavava e engomava a roupa, engraxava os sapatos, preparava e cozinhava as refeições, tratava do galinheiro, da horta e do jardim e, se preciso fosse, ainda acordava a meio da noite para cuidar da patroa. Não folgava, não gozava feriados - a não ser o dia de Natal - e mesmo quando ia à missa obrigava-se a regressar a correr porque o trabalho não esperava. No meio disto, nunca aprendeu a ler nem a escrever. Benilde, analfabeta, passou dois quartos de século a trabalhar, sete dias por semana. Em troca, nunca ganhou mais de 150 euros por mês.
Quando a patroa morreu, em 2011, com 99 anos, Benilde tinha a idade da reforma, memórias daquela casa de família de Vila Nova de Famalicão e pouco mais. Nos últimos 20 anos nunca viu o salário ser actualizado. Nunca teve férias, nunca viu a cor a subsídios de férias ou de Natal, não teve horário de trabalho, não gozou praticamente feriados ou dias de descanso. "De longe a longe" era-lhe permitido visitar a família, desde que não descurasse os seus afazeres domésticos: saía depois de lavar a loiça do almoço, voltava a tempo de preparar mais um jantar. Nos últimos tempos, com Ernestina acamada, nem isso. O tempo para ir a casa da irmã eram umas horas à tarde de três em três semanas. Um dia precisou e nem pôde prestar assistência à mãe, também ela doente.
Quando chegou àquela casa, na véspera dos anos 60, Benilde estava incumbida de tratar de Ernestina, então funcionária dos Correios, do marido e de um filho deficiente. O filho foi o primeiro a morrer. Quando cerca de 12 anos antes da sua morte Ernestina ficou viúva, tinha tanto medo de ficar sozinha em casa que pediu a Benilde para passar a dormir no seu quarto.
A criada não se aborrecia por não ter folgas ou feriados, não pedia aumentos. E se acaso se lembrasse de discordar de alguma coisa a patroa passava-lhe a mão pela cabeça e prometia-lhe que a sua amizade e dedicação de mais de cinco décadas seriam recompensados pois não havia herdeiros legítimos.
A promessa nunca foi cumprida. Ernestina deixou um testamento mas nele não era a empregada que figurava como herdeira, mas um casal que de vez em quando a passeava. Para a criada, um legado de 15 mil euros e o usufruto de uma casa antiga ainda ocupada. Benilde ficou desolada e levou a sua história para a sala de audiências do tribunal, reivindicando que os herdeiros lhe deviam mais de 250 mil euros, entre diferenças salariais, trabalho suplementar, feriados e descansos semanais e compensatório, subsídios de férias e de Natal. Tudo isto acrescido de juros à taxa de 4%.
No dia do julgamento vieram familiares e vizinhos e a empregada da casa ao lado, com quem desabafou durante mais de 40 anos entre quintais separados por uma rede, contar a história de Benilde e da sua patroa desalmada.
Heitor, vizinho, comparou a empregada com "uma escrava no tempo dos reis". Se folgava? "Ia uma vez por mês a casa, ao domingo, embora saísse depois do almoço e viesse antes do jantar." Como poderia ser de outra forma "se não tinha amigas em Famalicão, se não tinha outros interesses senão os do trabalho e se ficou uma pedra bruta em vida?", questionava Heitor. Ernestina "era uma pessoa doutros tempos, antiga, cuja perspectiva sobre a relevância da criada era a da sua redução a uma trabalhadora permanente, sem qualquer interesse próprio". Pois como não, se Benilde "veio trabalhar aos 17 anos e era analfabeta, e não casou nem teve filhos - e qualquer outra necessidade além da alimentação e alojamento lhe eram dados?", voltou a perguntar Heitor perante o juiz.
E a Fabíola, empregada vizinha que sempre teve folgas e as gozou, a contar que sempre que perguntava a Benilde se não folgava ouvia sempre que tinha de "fazer isto e aquilo", que aos domingos ia à missa "mas depois vinha logo porque tinha de lavar os galinheiros", e assim fazia e acontecia "porque a senhora era um bocadinho rigorosa e mandava".
O Tribunal de primeira instância condenou os herdeiros a pagar a Benilde 18 659 euros, fora juros de mora, devido ao salário não actualizado e aos subsídios que ficaram por pagar. Mas Benilde recorreu, inconformada por aquele tribunal ter concluído que "trabalhava sete dias por semana, folgando por vezes ao domingo", e invocando que a ser descontado do salário mínimo mensal valores de alimentação e alojamento - que não pagava - esse valor nunca poderia ser superior a 47% do ordenado mínimo.
Chamado a decidir, o Tribunal da Relação do Porto concluiu que Benilde gostava da patroa como de uma mãe e se mais vezes não folgou ao domingo foi porque não quis. "Seguramente algumas vezes não foi preciso fazer o almoço de domingo, nem voltar para fazer o jantar, e algumas vezes a recorrente gozou a sua folga, fora de casa, ainda que sempre voltasse para dormir, e que a gozou sem sair da casa, que era também a sua", diz o acórdão, que não foi em tudo desfavorável a Benilde.
Concordando que alimentação e alojamento não podem representar mais de 47% do ordenado, os juízes desembargadores mandaram calcular quanto custaria um quarto naquela região e alimentação completa, ano após ano, desde 1992. O juiz vai ter de voltar a ouvir a história de Benilde.
O que diz o acórdão do Tribunal da Relação do Porto
“Pelo menos desde 1960, por acordo efectuado verbalmente, a B. trabalhava para E. como empregada doméstica. As funções de B. consistiam em confeccionar refeições, fazer a lavagem e tratamento de roupas, serviços de jardinagem, cultivo da horta e execução de outras tarefas relacionadas com estas. Nos últimos anos, a sua função era de vigilância e assistência a E., mantendo as funções relacionadas com a casa de habitação. A B. vivia em casa de E., que lhe fornecia alimentação e alojamento. A B. nunca gozou férias enquanto trabalhou para a E. A B. trabalhava sete dias por semana, folgando por vezes ao Domingo. A B. vivia em casa da E., estando sempre disponível para as necessidades desta, tratando-a como se fosse sua mãe. A B.
nunca gozou qualquer feriado obrigatório com excepção do dia 25/12. A B. nunca auferiu subsídio de natal ou subsídio de férias. Durante os vários anos que trabalhou para a referida E., nunca a B. reclamou quanto ao salário pago, horas de trabalho, falta de gozo de dias de descanso ou falta de pagamento do que quer que fosse.”
“E. era uma pessoa doutros tempos, antiga, cuja perspectiva sobre a relevância da criada era a da sua redução a uma trabalhadora permanente, sem qualquer interesse próprio. [...] É um facto notório e absolutamente incontestável que esta foi a perspectiva de muitas pessoas antigas, obviamente não de todas e variando de meio rural para urbano e de meio urbano para meio urbano concretamente considerado. E é também absolutamente comum que muitas destas empregadas se afeiçoaram – à míngua da possibilidade de tempo e dinheiro para desenvolverem outros interesses – aos seus patrões, aos quais dedicaram toda a vida, e em cujas famílias praticamente se integraram.”
“Reafirmamos que para uma empregada doméstica alojada, o facto de estar em casa não significa estar a trabalhar, podendo estar também a descansar, seja no seu próprio quarto ou alojamento, seja no resto da casa, ou no quintal, e o tempo de receber visitas próprias nessa casa, sem estar a trabalhar, é tempo de descanso.”
“E conjugando os depoimentos, de F., G. e H., temos de aceitar que a recorrente ia algumas vezes visitar a família, e apreciados os mesmos à luz das regras de experiência normal, temos de considerar que os depoimentos se referem a uma realidade genérica, mas não concretizam domingo a domingo de 50 anos, o que seria absolutamente impossível. E temos de considerar que seguramente algumas vezes não foi preciso fazer o almoço de domingo, nem voltar para fazer o jantar, e algumas vezes a recorrente gozou a sua folga, fora de casa, ainda que sempre voltasse para dormir, e que a gozou sem sair da casa, que era também a sua.”
“Ora, no âmbito do seu contrato, a B. tinha alojamento e alimentação e por isso o custo respectivo não teve de ser por ela especificamente pago em contado.
A Autora beneficiou desse alojamento e alimentação. É verdade que no caso em que o trabalhador tem um alojamento próprio, o alojamento em regime de internato no domicílio patronal se afigura mais benéfico ao empregador do que ao trabalhador. [...] Em suma, não é defensável que o alojamento não possa ser considerado retribuição por ser estabelecido em favor do empregador.”
“Sendo a disciplina regulada de modo idêntico ao longo dos diversos diplomas, neste ponto concreto do recurso assiste inteira razão à recorrente. Na matéria de facto provada apenas se apurou alojamento e alimentação – de resto, sem mais qualquer pormenorização – e não se apurou – o que também era discutido – se a recorrente igualmente beneficiava de vestuário fornecido pela empregadora. Não se tendo apurado qualquer outra prestação em espécie além do alojamento e alimentação, o valor percentual (35% para a alimentação e 12% para o alojamento) montava a 47%, percentagem que era o máximo que podia ter sido considerado. Haverá assim que, relativamente a todos os cálculos aplicar um aumento de 3%.”
“Nestes termos, e nos do artigo 662.o n.o 2 al. c) parte final do CPC (na versão da Lei 41/2013 de 26.6) anula-se oficiosamente a decisão da matéria de facto, ordenando-se a ampliação da matéria de facto para se apurar se o alojamento da recorrente era um quarto na casa da empregadora e para apurar o valor corrente na região dum quarto e da alimentação completa, ano a ano, em todos os anos reclamados pela recorrente, desde 1992, se necessário com um convite às partes para alegarem factos pertinentes.”