por José Bastos, in RR
Daniel Bessa, Carvalho da Silva e Carlos Moreno no Conversas Cruzadas deste domingo.
“A alternativa do regresso ao mercado é mirífica. Portugal não tem condições para um regresso puro e simples ao mercado. Era preciso que muita coisa mudasse, nesta meia dúzia de meses, para que isso pudesse ser viável. Então, a alternativa é o dito programa cautelar que ninguém sabe muito bem o que é. E o primeiro-ministro apareceu a dizer que não precisa de um acordo com ninguém. Para lhe dizer a verdade isto deixou-me quase estupefacto, porque é um programa que envolve alguma forma de compromisso exterior” é a opinião de Daniel Bessa no “Conversas Cruzadas” deste domingo comentando uma das duas entrevistas de Passos Coelho na mesma semana.
O chefe do governo afirmou à “TVI” que o programa cautelar não necessita do apoio do PS um dado noticioso também analisado por Manuel Carvalho da Silva. “Quando o primeiro-ministro assume que ‘isto vai assim e vai só comigo’ isto é, só com as forças do poder... Nós vamos ter de encontrar no país compromissos muito para além do chamado ‘centrão político’. Quando ele nem sequer considera o ‘centrão’ e sozinho, aí vai, isto é uma governação onde os interesses dos cidadãos deixaram de estar presentes” defende o sociólogo.
Daniel Bessa não ficou convencido com a argumentação de Pedro Passos Coelho neste ponto. “O programa cautelar será, basicamente, com o BCE e com a Comissão Europeia, não terá o FMI, mas fico muito surpreendido com a afirmação de que só o governo chega. Mesmo com a argumentação de que será por um ano e coincidirá com o fim da legislatura, vejo com dificuldade que uma negociação dessas não tenha implicações que vão mais longe no tempo e, do meu ponto de vista, é sempre desejável que mais gente esteja envolvida. Foi a surpresa maior das entrevistas do primeiro-ministro” sustenta o ex-ministro da Economia.
Teria então um maior envolvimento da oposição não só reflexos positivos no programa cautelar como nos juros da dívida pública?
“A mobilização de toda uma família num projecto comum é alguma coisa que não pode ser desprezada por um credor inteligente. O que falta aos credores – e terão muitos defeitos – não é inteligência. Terão suficiente inteligência para verem que na vida política portuguesa devia passar-se uma coisa completamente diferente” defende Carlos Moreno, juiz jubilado do Tribunal de Contas.
Daniel Bessa: “Temos de nos entender”
“Há uma única coisa que reivindico: é a de que nós temos de nos entender. Acho que os portugueses têm de se entender por maior que seja a distância que os separa à partida. Nós somos 10 milhões e temos de chegar a um acordo qualquer… sem o qual não há solução” afirma o economista Daniel Bessa. Carvalho da Silva não se opõe, mas baliza o entendimento: “temos de nos entender debaixo da verdade e de uma ideia de compromisso, de rigor, de ética” Daniel Bessa concorda e também matiza a aproximação. “Eu estou disponível e acho que para esse entendimento todos temos de ceder alguma coisa, porque não há negociação possível enquistando numa qualquer posição de partida” precisa o ex-ministro da Economia. Já o ex-líder da CGTP critica o PS, mas atribuiu os males maiores à crise da social-democracia. “É indispensável fazer compromissos, mas a partir de reequilíbrios de posições. Não se pense que há saída sem a reposição de valores que estão à esquerda. Com contas (como refere Daniel Bessa) e com seriedade. O Partido Socialista está neste momento atrofiado. Não só o PS, o problema é em toda a Europa a derrota da social-democracia. O abandono da procura de respostas para os problemas. Há aqui dimensões e centralidades. O Trabalho tem que vir de novo para o centro do debate” sublinha Manuel Carvalho da Silva.
IRC: “não aprovam porquê?”
Daniel Bessa critica as reservas do PS em aprovar as medidas relativas ao IRC. A questão transitou para esta semana, mas o ex-ministro da Economia sustenta que quando as medidas são positivas devem ser aprovadas sem pré-condições. “Achei sempre que as medidas do IRC seriam aprovadas pelo PS. Cheguei a sugerir, porque fui recebido pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais na qualidade de responsável da Cotec, um ‘veja lá em que é que o PS concorda – porque o PS tem de concordar com a maior parte das medidas – e se há alguma coisa em que não concorda separe-as’. Tenho agora dificuldade de entender esta conversa de que ‘para nós votarmos essas medidas que estão a propor, há aqui, agora, uma série de outras nossas que também devem ser aprovadas, ou não aprovamos as vossas’. Mas não aprovam porquê? Tenho muita dificuldade em perceber. Uma medida quando é positiva deve ser aprovada. Depois discutimos o resto…” é a tese de fundo do Director da Cotec-Portugal.
Carlos Moreno: “Austeridade: resultados não são proporcionais ao sofrimento”
“O primeiro-ministro tem uma extrema dificuldade em reconhecer que a austeridade tem falhas graves em matéria de crescimento económico, de desemprego, de emigração, da - poucas vezes referida - baixa catastrófica da taxa de natalidade. Também tem falhas graves na eficácia do ajustamento das contas públicas, porque os resultados não são proporcionais ao sofrimento infligido na sociedade pela austeridade” defende o juiz Carlos Moreno olhando para o balanço do programa de ajustamento a meio ano do fim.
Daniel Bessa sinaliza um grave erro no design do programa de ajustamento. “O meu maior factor de desconforto com o programa de ajustamento tem a ver com o tema do financiamento das empresas públicas de transportes. A vida dos portugueses e a economia andou para trás mais por causa da contração do crédito que devido à redução da despesa pública e dos impostos. Ou seja, a banca tirou à economia muito mais dinheiro do que o Estado” sublinha o economista.
“Esta é uma parte do programa que é menos visível, foi conduzida pelo Banco de Portugal, não pelo governo. Os bancos tinham evidentemente que limitar o crédito face ao endividamento excessivo com o exterior, mas tudo se viu muito agravado pelo facto do programa não prever uns milhares de milhões de euros, fala-se em 20 mil milhões, para as empresas públicas que tinham necessidades de financiamento, estavam endividadas perante o exterior, os bancos estrangeiros cortaram o crédito e a banca portuguesa no momento em que contraía o crédito à economia não só o fazia como ainda tinha de dar mais dinheiro às empresas públicas de transportes” acrescenta Daniel Bessa.
Carvalho da Silva alude a responsabilidades políticas por apurar. “Tínhamos de ter austeridade? Sim, tínhamos. Mas tínhamos também de ir ver como é que lá chegámos nas empresas públicas. Temos de ir ao fundo da questão e ver que foi gestão desastrosa. Foi um conjunto de negociatas. Foi, muitas vezes, as empresas públicas de transportes a servirem de protecção ao Orçamento do Estado a substituir outras responsabilidades” um ângulo sublinhado pelo sociólogo que merece a concordância de Daniel Bessa.
O juiz Carlos Moreno refere que o quadro era conhecido. “As necessidades de financiamento do sector público empresarial do estado eram mais do que conhecidas. Eu passei 10 anos no Tribunal de Contas a fazer relatórios anuais sobre essa situação catastrófica. As empresas de transportes foram todas analisadas por mim no empurrar para a frente de uma dívida colossal que estava desorçamentada. Não havia ignorância a esse respeito. O actual primeiro-ministro não se pode desculpar com isso, porque o programa de ajustamento também foi negociado por um notável e brilhante delegado do PSD” sustenta o magistrado, ex-professor de Finanças Públicas e juiz jubilado do Tribunal de Contas.
Carvalho da Silva: “austeridade é assumida como forma de economia política
Manuel Carvalho da Silva, coordenador do Observatório de Crises de Alternativas, desenvolveu um dos ângulos do relatório sobre a austeridade divulgado esta semana por este organismo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Esta austeridade é assumida como forma de economia política e as medidas que se designam como técnicas e transitórias não são nada técnicas e transitórias. Há aqui uma mudança profunda do modelo social e político centrada em medidas que incidem sobre o trabalho e as transferências dos rendimentos do trabalho para o capital que se concentram, em geral, não nas mãos dos empresários portugueses – à maior dos empresários portugueses não chega nada – porque há um conjunto de mecanismos de dependência que desagua tudo nos accionistas dos grandes grupos financeiros e económicos que são autenticamente parasitários” defende o sociólogo.
O relatório do Observatório contraria também a tese do “viver acima das possibilidades” como factor indutor da crise. “A evolução do consumo interno em Portugal, na década de 90 e na primeira década deste século, não foi superior à média europeia. Antes pelo contrário: é dos crescimentos de consumo mais baixos da Europa. A relação entre o consumo e a evolução da riqueza não se desvia de forma negativa dos padrões europeus. Então como é isto? Os problemas são muito mais complexos. São problemas nacionais e são problemas externos” conclui Manuel Carvalho da Silva.
Num âmbito mais alargado Carlos Moreno alerta para os riscos de algum discurso oficial e oficialista. “É extremamente perigoso - e parece não haver consciência disso – de que pode ser devastador acenar aos portugueses com promessas de milagres, de crescimento económico, do emprego, de diminuição de pobreza até de libertação patriótica da ‘troika’. Tudo sabendo que, no curto prazo, nada disto vai ser sentido no dia a dia das pessoas” remata o juiz jubilado do Tribunal de Contas.