Por Marta F. Reis, in iOnline
Dizem-se vítimas das suas escolhase não da crise. Procuram uma oportunidade
"Se precisasse de dois funcionários para sua casa, não nos contratava?", pergunta Rui. Há um mês a pedir emprego com a mulher num anúncio no "Expresso" e no "Público", só ligaram jornalistas e pessoas a provocar, a dizer que vão repetir a fórmula, a gabar a "boa ideia". Aos 50 anos procuram trabalho como caseiros, ou ele mordomo, motorista, e ela governanta. Trabalho com alojamento. No anúncio dizem-se educados, cultos e polivalentes, pré-falidos, mas sem dívidas. Fluentes em inglês, francês e castelhano. Ela com formação musical, carta de marinheiro, conhecimentos de cozinha. Ele, ex-relações públicas e empresário. Ambos desportistas e com boa presença. Ambos com carta de condução. Moram (ainda) em Cascais. Com o melhor nível moral, elevada educação e saber-estar. Sem mais-valias rurais. "É que, se calhar, devia pôr que faço tudo, animal de carga", remata o ex-empresário. Maria suaviza. "Estamos revoltados com a situação, queríamos apenas trabalho, o que for." Insistem que não são vítimas da crise nem queriam exposição mediática. São produto das decisões e alguns erros, e esperam uma oportunidade. "Quando tudo falhou, pusemo-nos no lugar de quem pensámos que nos poderia contratar e fizemos o anúncio."
Rui e Maria conheceram-se em miúdos nas férias, perto da praia da Adraga, Sintra. Namoraram, casaram e começaram a trabalhar depois do secundário. Ele foi director comercial e vendedor de publicidade. Ela trabalhou nos CTT e teve duas empresas. Aos 40 anos, e com uma vida desafogada, acharam que chegava de trabalhar 18 horas por dia. "Tínhamos poupado, não tínhamos filhos e já não fazia sentido tê-los. Tínhamos alguns rendimentos de imóveis e decidimos aproveitar." Em 2001 foram para o Brasil. "Nunca quisemos trabalhar para enriquecer, era para manter um nível de vida confortável", explica Rui. "Íamos esperar pelos 70 e não gozar nada? Tive anos em que descontei 35% do que ganhava e, se calhar, nem nunca vou ter direito a reforma."
Para ter visto, tiveram de montar um negócio. Investiram mil dólares, cada, e abriram uma empresa de construção e turismo, com um pequeno rent-a-car em Fortaleza. Viviam sobretudo de rendimentos, mas o negócio acabou por trazer mais problemas do que imaginavam. "Somos obrigados a ter um sócio brasileiro e, no nosso caso, não correu bem, fomos enganados. Uma pessoa, quando está a jogar fora de casa, não conhece o terreno, fica mais vulnerável", diz Rui. Depois de perderem mais do que ganharam, mas sobretudo por causa da "insegurança crescente" no Brasil, decidiram regressar em 2009. Das escolhas, é a única de que se arrependem. "Tínhamos um suporte financeiro que nos permitia voltar. Pensámos que com 20 ou 30 mil euros se abria um boteco que dava para manter o nível de vida, que nunca foi acima das possibilidades. Nunca pedimos um empréstimo, nunca comprámos nada a crédito."
Mas a realidade caiu-lhes em cima. "Talvez por estarmos longe, não tínhamos noção e voltámos na pior altura. A primeira ideia foi abrir uma empresa de publicidade, mas percebi que seria impossível, com o mercado lotado e a carga fiscal. Pensámos num bar, numa discoteca. Andámos pelo país a ver hipóteses, tanto fazia ficar em Lisboa ou ir para outro lado, mas vimos tudo a abrir e a fechar. Pessoas que investiram e meses depois faliram. Para investir à toa e perder tudo, mais valia estar quieto."
Mas as poupanças começaram a encolher. "Decidimos começar a vender algum património herdado, mas a carga fiscal foi tremenda. Tinha uma casa na Ulgeira, a aldeia onde nos conhecemos, que restaurei de ruínas com 50 mil euros. Quando a vendemos, tive de pagar mais-valias ao Estado de 30 mil euros, quase não ganhei nada. Mas sempre pagámos todos os impostos." Para viver, arrendaram uma casa na Quinta da Bicuda, na expectativa de que apareceria o negócio. A renda inicial era de 1500 euros, negociaram para 800 euros, valor que esperavam conseguir suportar. "Fomos arrastando, sempre na expectativa, não encontramos nada este ano, é no próximo." Pelo meio, contratempos trouxeram novas despesas. Maria teve de ser operada quatro vezes. "No Estado, o tempo de espera era de dois anos. Não ia andar a morfina e com dores e, por isso, fomos para o particular. Nunca pusemos o bem--estar ou a alimentação em causa."
Há ano e meio, e conscientes de que seria difícil, decidiram voltar ao mercado de trabalho. Rui colocou anúncios e respondeu a outros na área comercial. Maria foi ao centro de emprego, primeiro a pedir orientação para um eventual negócio e, depois, para ter trabalho. A ela, disseram-lhe que tinha pouca formação e que tinham parado os programas de orientação. Quando muito, poderia inscrever-se "para as estatísticas". A ele, disseram-lhe que era velho e estava há demasiado tempo fora do mercado de trabalho. "Dei comigo a pensar que não tinha mais nada, o dinheiro acabou. Resta um andar que tenho arrendado em Almada, com dois inquilinos com mais de 65 anos. Não posso vendê-lo ocupado, podem viver mais 30 anos, e não posso tirá-los de lá", sublinha. "Não posso do ponto de vista jurídico e não queria, estão lá há 20 anos e não os vou pôr na rua. Não me parece correcto."
Até há seis meses acreditaram que haveria hipótese de negociar a saída dos inquilinos com indemnização, vender o apartamento, investir num negócio e recomeçar sozinhos. Nada aconteceu. "Quando demos por nós, já só havia duas soluções: ir pedir moedas para Santa Apolónia, o que está fora de questão ou, como fizemos, pôr um anúncio de caseiros e encontrar uma família abastada que precise e nos dê um tecto." Rui garante que todas as palavras do anúncio foram escolhidas com cuidado, do melhor nível moral à falta de experiência na agricultura. "Íamos dizer que percebemos quando fui criado na Avenida de Roma, e a Maria na Graça? Pusemos as mais-valias que pensamos ter, fruto da nossa experiência e educação. Saber línguas, a aprendizagem de anos de música da Maria na Academia de Santa Cecília, mais-valia na iniciação de crianças. Queríamos que tivesse impacto, mas nunca este impacto", garante. Mesmo depois de aceitarem contar a história à comunicação social, para tornar mais visível o anúncio, não houve resultados: "Mesmo que não seja para caseiros ou trabalho doméstico, temos aquelas competências, só queríamos que aparecesse alguém."
E se não resultar, há um plano B? "O plano B era voltar a Portugal e investir. O plano B falhou e não tenho plano C. O meu dinheiro acabou. Não tenho ninguém a quem pedir. Não temos pais, tenho um irmão com quem não me dou há dez anos e não lhe vou bater à porta agora, a pedir."
A última cartada, diz Rui, é um último anúncio no "Expresso", que será publicado amanhã. "É o meu último investimento. Pagámos 500 euros para ser no caderno de Economia, para ter mais visibilidade."
Se até lá nada mudar, até 8 de Janeiro vão deixar a casa, para não ficarem a dever ao senhorio. Nas últimas semanas, agarraram-se a esta última expectativa. Todas as manhãs fazem caminhadas e ginástica para espairecer e Maria diz que, apesar de tudo, continuam a ser a bengala um do outro. "Cansamo-nos para dormir. Força para me levantar, tenho todos os dias, não nos podemos deixar ir abaixo", diz Rui. "Não sei como vai ser quando chegar o limite, o dia de sair. Mas não me vão despejar. Antes chamo alguém para vender o recheio e autodespejo-me."