12.6.14

Desemprego, depressão e solidão entraram nos consultórios dos médicos de família

Por Marta F. Reis, in iOnline

Famílias separadas, incerteza sobre o futuro ou assédio moral no trabalho tornaram-se queixas frequentes nos centros de saúde


Palpitações que não são fraqueza do coração. Dores de estômago sem nenhum problema gástrico de base. Acordar a meio da noite e não voltar a adormecer. Precisar de fisioterapia e não saber como a vai pagar porque o marido não recebe há três meses. A mãe só sossega a dormir ao lado dos filhos, para se sentir acompanhada depois de o marido ter emigrado. O utente humilhado no trabalho entra no consultório em desespero: "Tenho de ficar em casa senão um dia mato alguém." A vida dos médicos de família mudou. Sentem-se a cumprir a sua missão: cuidar da saúde, segundo a definição da Organização Mundial de Saúde, é zelar pelo bem-estar físico, psicológico e social. Mas a tarefa está mais exigente. Há cada vez mais queixas que dificilmente se resolvem só com comprimidos.

"Se me dizem que estão desempregados, está meio diagnóstico feito", resume José Baptista Pereira, médico de família da Unidade de Saúde Familiar (USF) de Baltar, concelho de Paredes. Perguntar pelo trabalho tornou-se sagrado nas suas consultas. A pergunta funciona como se fosse um atalho: "As pessoas não fazem logo a ligação entre o que estão a sentir e a parte psíquica." Falam simplesmente de dores no peito, dificuldades em respirar. "Acabamos por pedir exames para eliminar hipóteses, até porque, em utentes de meia-idade, não é óbvio descartá-las e existe sempre preocupação", explica.

António Soure, médico de família nas Caldas da Rainha, ajuda a compor a ficha clínica que agora é mais habitual. Quando os resultados não mostram nada, muitas vezes as dúvidas permanecem. Alguma iliteracia dos utentes ou dúvidas que surgem depois de pesquisar sintomas na internet tornam o processo mais complexo. "As pessoas em geral não percebem que uma dor de cabeça pode ser provocada por uma contractura muscular por andarem tensas." Por vezes, o médico prescreve uma TAC só para os tranquilizar: "Escrevo na requisição: TAC terapêutica. Não se encontra nada, mas enquanto não virem o resultado não descansam."

Num balanço do que mudou nos últimos três anos, os médicos não hesitam em apontar a ansiedade e a depressão relacionada com o trabalho e o dinheiro como o diagnóstico que se tornou mais presente nas suas listas de utentes. Famílias separadas pela emigração, divórcios litigiosos, reformados a partilhar o rendimento e a casa com os filhos desempregados, a incerteza sobre o futuro e um crescendo de situações de assédio moral são algumas "comorbilidades", para usar o jargão médico, que entraram no consultório dos médicos de família.

Embora tenham poucos casos de fome, admitem que a carência alimentar é uma peça crucial na sinalização de carências que por vezes passam despercebidas, mais que não seja porque as pessoas continuam a apresentar-se como antes nas consultas. "Andam com as mesmas roupas, isso não perderam", conta Baptista Pereira. Hoje, contudo, o rosto da pobreza tem outras formas. "A fome já não é a subnutrição que víamos no passado", avisa André Biscaia, médico da USF Marginal, no concelho de Cascais. A maioria dos utentes com carências alimentares da sua lista tem excesso de peso: "Uma cola sem ser de marca no supermercado é mais barata do que água."

Problema transversal Os problemas físicos continuam a dominar as consultas, mas o que acontece em casa ou no trabalho também passou a fazer parte das queixas que se ouvem no gabinete do médico. "Todos os dias abordo questões sociais. É muito difícil que não apareça alguém a falar de um filho desempregado ou do marido", diz António Pimenta Marinho, da USF +Carandá, no centro de Braga.

Por regra chegam à consulta com um sintoma físico, mas a conversa depressa revela angústias maiores. Do Minho a Lisboa, apenas mudam os contextos. Ana Isabel Almeida, médica de família em Vila Verde, aponta a estagnação da construção civil, que deixou muitos dos seus utentes desempregados e levou outros a emigrar, como a raiz de muitos dos desabafos que lhe chegam. "Os que vão melhoram, arranjam trabalho. O pior é os que ficam", diz a médica, que ainda não sente melhorias na economia local. "É uma frustração, até porque se vão acentuando as diferenças entre os que têm e os que não têm."

A sobrecarga nas fábricas que restam, com a pressão para fazer horas extraordinárias mal pagas, é um dos fios que puxam da meada das noites sem dormir de que lhes falam os utentes. Outro são as dificuldades de lidar com o trabalho precário e os filhos adolescentes quando os pais tiveram de ir para França, Angola ou Moçambique. "As famílias ressentem-se com a ausência da figura parental." Aparecem também mais vezes a privação e a revolta, sempre com sintomas físicos muito semelhantes, a maioria perturbações de sono. "Chegam-nos aqui pessoas que estão dependentes de um rendimento mínimo e outras que, como têm casa própria porque no passado a puderam comprar, não têm direito a outros apoios. Como se pudessem comer as portas", desabafa a médica.

Baptista Pereira, de Paredes, diz notar ainda um aumento dos divórcios e mais casos de alcoolismo, que depois se manifestam em violência: "Nunca vivi uma altura como estas em que as situações sociais tivessem tanta repercussão na saúde das pessoas. Acima de tudo estão desesperadas." Antigamente, conta o médico, os seus utentes perdiam um emprego, podia demorar algum tempo mas tinham esperança de arranjar outro. Hoje sabem que não vão arranjar ou será difícil, sobretudo quando são de meia-idade: "Não têm qualquer esperança. Ainda resistem a pedir ajuda durante algum tempo mas depois vêm ter connosco."

Solidão. António Alvim, da USF Rodrigues Miguéis no Centro de Saúde de Benfica, sente que, de há um ano para cá, surgem menos problemas de ansiedade ligados a desemprego. Mas permanece a solidão nos mais velhos, que são uma maioria na sua lista de utentes. A distância das famílias parece ter aumentado e, no seu dia-a-dia, tornou-se habitual ir visitar idosos a casa, mesmo quando não existe uma indicação clínica clara: "Tenho muitos com mais de 90 anos e alguma dificuldade de mobilidade. De dia têm companhia mas à noite ficam sozinhos."

André Biscaia, médico da USF Marginal, do concelho de Cascais, diz que o que mais o tem impressionado nesta onda de ansiedade ligada ao trabalho é o crescendo de situações de assédio moral. Funcionários forçados sistematicamente a mudar de posto, gastando nas deslocações quase todo o vencimento, ou obrigados a usar carros velhos, computadores estragados, escrivaninhas isoladas do resto dos colegas, são alguns dos estratagemas usados para levar à demissão por exaustão, o que quase sempre funciona, diz o médico.

De todos os casos, apenas lembra uma situação em que a pessoa despedida conseguiu lutar e foi readmitida. A maioria fica de baixa enquanto pode e por fim despede-se: "Quem o faz não imagina o efeito destrutivo que isso tem nas pessoas. Já três vezes tive utentes que me pediram ajuda para não fazerem uma loucura. Estas situações deixam marcas para a vida. Tive um utente que perdeu 15 quilos em dois anos por causa do stresse. Custa muito ver uma pessoa que conhecemos bem chorar por uma situação destas no nosso consultório."

Fazer mais domicílios quando as famílias aparentam sinais de carências ou não conseguem pagar os transportes é uma das soluções apontadas pelos médicos. Em casos mais extremos de desespero e esgotamento, Biscaia sublinha que a baixa tem de ser a primeira resposta. Seguem--se os medicamentos para ajudar a dormir. "Qualquer pessoa que passe duas ou três noites em branco corre um risco maior de psicose, é um dos problemas mais graves para o bem-estar." Só então é possível começar a procurar um plano de tratamento que vá à raiz do problema, que muitas vezes implica psicoterapia, diz o médico. No seu agrupamento de centros de saúde há psicólogos, mas atingiu--se um ponto em que não são suficientes, admite: "Dantes conseguia dizer quantos doentes tinha referenciado para o psicólogo num ano, hoje tenho um caso por semana ou mais."

Mas há outros centros de saúde que, apesar das promessas, ainda não têm estes profissionais, lamentam os médicos. E também existem directivas e indicadores para que se prescrevam menos ansiolíticos e antidepressivos. António Soure está numa unidade sem psicólogos, o que diz ser um contra-senso quando três em dez consultas são dessa natureza.

A agravar a situação, qualquer pedido de uma consulta de psiquiatria no hospital da sua zona demora mais de três meses: "É cada vez mais difícil conseguirmos referenciar em tempo útil." Ou se está perante um caso de psicose e o utente é internado ou, se é uma depressão reactiva, a solução passa por ser o médico de família a fazer o acompanhamento: "Os médicos que têm paciência para isso têm de ser os psicólogos, os padres ou muitas vezes substituir os pais. Nos últimos anos tornámo-nos um muro das lamentações." Também Baptista Pereira tem de ser o psicólogo, já que a alternativa seria enviar para o privado. "Passámos por tantas situações que nos vamos adaptando e conseguimos, às vezes com poucas palavras, marcando consultas com intervalos mais curtos, satisfazer a necessidade das pessoas."

A medicina dá-lhes a formação, mas a experiência é que acaba por ser útil na forma como lidam com os casos, todos diferentes. Este é o entendimento de Ana Isabel Almeida, que assume ter muito mais utentes a chorar no consultório mas que procura que saiam com algum alento e pistas para maior resiliência. "Acaba por ser uma conversa muitas vezes de homem para homem ou de pai para pai", concorda Baptista Pereira.

Prescrever mais actividades ao ar livre, ajudar na definição de objectivos e a sugestão de voluntariado são algumas das estratégias. Mesmo que por vezes o primeiro impulso seja ajudar com dinheiro. "Choca-me saber que neste momento há pais que não jantam para os filhos terem comida na mesa. Choca-me ver pessoas que viviam bem irem com vergonha à Cruz Vermelha buscar arroz, massa, leite", lamenta António Soure. "São pessoas que, olhamos para elas, sobretudo idosos, e continuam vestidas, arranjadas. Procuram continuar cuidadas, mas a gente não vê o que se passa lá dentro. Mas assumi que se ajudava um, teria de os ajudar a todos e não me posso substituir ao Estado."

Com o aumento dos casos sociais, criaram ligas de amigos e aumentaram as sinergias com os serviços sociais e associações locais. Todo esse trabalho adicional, porém, vai ficando entalado num dia que não estica e tem, como mandam as regras, consultas agendadas de 15 em 15 minutos. "Não me privo nunca de dar uma palavra às pessoas, privo-me é muitas vezes de almoçar", conta António Soure. Acontece o mesmo com muitos colegas. Já Baptista Pereira criou momentos fora das consultas para os utentes que precisam mais de conversar.

Muitas vezes só explicar que os medicamentos não vão ajudar a resolver o problema leva mais que os 15 minutos. "Não sou muito favorável a medicar mas é muito difícil por vezes demover as pessoas", explica Pimenta Marinho. Também porque há outro sintoma da crise nestas conversas: os nãos passaram a ser associados à mão da troika e do governo. "As pessoas associam quase tudo à troika. Se não se pede a citologia vaginal, que tem indicação para ser feita dois anos seguidos e depois de três em três anos, perguntam logo se não é por causa da troika. Mas as pessoas têm isso interiorizado, que tudo o que dizemos tem a ver com os cortes, e custa mais perceber que existe também evolução do conhecimento médico e política de saúde."

António Soure sente a mesma descarga emocional. "Antes, quando os serviços não davam resposta, por exemplo na marcação de uma consulta no hospital, era mais fácil porque ligávamos para os colegas e agilizávamos. Hoje podemos fazer pouco, já que é tudo informatizado e a triagem é feita nos hospitais. Se era mal ou bem não sei, mas pelo justo paga o pecador e as coisas estão mais desumanizadas." Perante a ausência de resposta, o pessoal do centro de saúde vira saco de boxe. "Porque as pessoas andam enervadas, desabafam onde podem. Qualquer coisa é motivo para gritarem."

Se todos concordam que o dia-a-dia se tornou mais exigente e nunca trabalharam tanto, negam só agora estar a incorporar o verdadeiro papel de médicos de família. As pessoas é que talvez agora os reconheçam mais como tal. "Antes dizíamos que era a nossa missão e que a preparação era para isso, mas os doentes não nos viam com esse pendor. Hoje sentimo--nos mais importantes. Quando conseguimos fazê-los entender que as queixas físicas podem resultar do que se passa na sua vida passam a falar connosco como amigos", diz Baptista Pereira.

Se esse reconhecimento do médico de família é uma boa notícia, os programas informáticos sempre a encravar que roubam tempo de consulta, as burocracias que tornam obrigatório consultar as normas clínicas para justificar cada prescrição ou mesmo a falta de algum material são dores de cabeça permanentes.

António Soure dá um exemplo do que diria ser impensável: há algumas semanas, as batas que as senhoras vestiam nas consultas de planeamento familiar foram substituídas por calças e camisa como a usada nos blocos operatórios. "As calças, como é lógico, não usamos e então a solução era fazer-se um corte na camisa atrás para ficar mais comprida, ainda assim a parecer uma mini-saia. Tive de pedir às utentes que viessem a essas consultas de saia", lamenta o médico. "Há dois anos quando ouvia as notícias da Grécia sobre a falta de material pensava que quando isso algum dia me acontecesse deixava de ser médico mas agora sinto que tenho de continuar precisamente por isso. Vou fazer 61 anos e só ainda não pedi a reforma por causa dos meus doentes, que ficavam abandonados."

Todos sentem que a pressão aumentou e a resposta nem sempre chega. Ainda assim, Soure não tem dúvidas de que quem tem médico de família esteve menos desamparado na crise, o que além de ser mau para os muitos que não têm, implica que há colegas com um trabalho ainda mais esgotante. Para o SNS estar à altura deste embate, André Biscaia defende que a colocação de novos médicos de família devia estar a passar por formar a um ritmo muito maior Unidades de Saúde Familiar, unidades que garantem que todos os utentes terão não só médico de família mas uma equipa que tem outros profissionais e um acompanhamento ao longo do tempo. "Em vez disso, opta-se por abrir consultas de recurso para utentes sem médico", lamenta. Mais do que nunca, para estes novos casos com que têm de lidar, o encontro ocasional com um médico que não se conhece não funciona, diz.

Mas tal como não é só a doença que destrói, não é só a medicina que cura. "O SNS teve cortes mas o mesmo se passou na Segurança Social, tanto nos apoios como nos técnicos disponíveis. A maior parte das situações não as podemos resolver sem uma boa rede desse lado."
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