12.11.07

João quer ser um sucateiro "com muito mais pinta"

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Projecto criado para assinalar aniversário da empresa promove o acesso ao crédito e presta apoio técnico aos candidatos


A Bateu no fundo do poço. Hoje vai entrar de cabeça erguida na Casa da Música para assistir à celebração dos 25 anos da Lipor - Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto. João Silva é um dos convidados de honra. O seu projecto de microempresa foi aprovado pelo programa Criar - O futuro nasce aqui, iniciativa da Lipor apoiada pela Associação Nacional de Direito ao Crédito.

João circula numa moto preta com um bidão cinza e um atrelado banco. Procura "coisas - frigoríficos, máquinas de lavar, tudo o que possa ser aproveitado para extrair alumínio, chumbo, cobre". Trabalha numa oficina/barraca das 7h30 às 22h00. Só não trabalha mais por não ter luz, por ter de usar um gerador, aparelho que produz barulho e incomoda os vizinhos. Quando desperta às 4h00, não fica a remoer, pega na bicicleta e pedala até à marginal de Matosinhos, dá duas voltas ao Parque da Cidade e regressa a Azevedo de Campanhã.

Sobra-lhe passado para remoer. Teve "uma infância terrível". O pai "era extremamente violento", a família habitava uma barraca sem água canalizada nem casa de banho. Completou o 9.º ano, trabalhou nos Correios, "nas forças especiais". Saiu perdido de amores. Por "falar de mais naquela república" - Azevedo de Campanhã "tem leis próprias", garante -, cultivou inimigos. Acha que lhe armaram uma cilada. A namorada "caiu na droga". De repente, ele também.

Esteve cinco anos naquilo. Separado, sem rumo, pagava os seus consumos com dinheiro ganho com sucata. Quando se livrou do vício, primeiro resgatou trabalho nos Correios, depois tornou-se "empresário em nome individual" - fazia entregas de moto. "Como ela viu que eu estava a crescer, quis vir para a minha beira. Fez tudo para me destruir. Pela segunda vez, influenciaram-na para ela me pisar", remói.
Acusa a mulher de ter convencido o médico a prescrever-lhe "fortíssima" medicação: "Queria andar de moto e não conseguia, tinha acidentes. Perdi os reflexos, o negócio ficou parado". A sua vida conjugal atingiu o extremo: "De chegar ao ponto de ela chamar os ciganos para me porem fora de casa. Fui ameaçado de morte. Fiquei com uma depressão profunda e prolongada. Naquela zona não há solidariedade. Fizeram-me a cova, só faltava deitar a terra em cima".

João tornou a cair na extrema pobreza, mas "o pior sofrimento é o da alma". "Não queria fazer nada, só queria morrer, desaparecer desta sociedade". Sem trabalho, ficou "a zeros". Como ele não trazia receita e dava despesa, os pais não conseguiam suportar a renda da casa. Mudaram-se os três para uma barraca - "sem portas, sem janelas, sem água, sem luz". Uma assistente social da Obra Diocesana levou-o ao Hospital de São João. Ainda esteve internado, antes de ingressar na Comunidade Emaús. Ao lema "trabalhar, agir e denunciar" acrescentou "estudar". "Trabalhava todo o dia e estudava à noite - tive oportunidade de estudar, porque estive responsável pelos livros da comunidade; li livros que me sensibilizaram muito", recorda. Lia electrónica, geometria, mas também filosofia, literatura. "Um livro é uma alma aberta."

Esteve lá oito meses, não ficou mais "por causa dos filhos" de 15 e oito anos. Saiu em Março deste ano com a auto-estima em alta. A estadia ajudou-o "bastante a reflectir, a meditar". Percebeu que pode "ter qualidade de vida vivendo à margem: o desperdício desta sociedade pode ser recuperado e vendido na sucata". Percebeu que, "por mais cansada que uma pessoa esteja, tem sempre mais para dar".
Agora quer "crescer na vida, apoiar os filhos". Encontrou ajuda na Junta de Freguesia de Campanhã. A equipa técnica dos serviços sociais mediou uma renda apoiada para os pais com quem tornou a viver, regularizou-lhe o seguro da motorizada, o rendimento social de inserção, arranjou-lhe um sítio para almoçar, promoveu-lhe a candidatura ao Criar. Só falta o assistente social José António Pinto andar com ele ao colo.

Hoje, pela primeira vez na vida, entra na Casa da Música. Ali recebe o "diploma" - o documento comprovativo de que o seu projecto foi aprovado pelo programa Criar, destinado a pessoas com "iniciativas empresariais viáveis" e "dificuldades de acesso a crédito". "Estou a trabalhar, se eles me ajudarem posso crescer mais depressa".
A Lipor começará pelo plano de negócio a apresentar ao banco. O homem, de 38 anos, já está a tirar a carta de condução de categoria B. Vai usar os sete mil euros para comprar uma carrinha de caixa aberta. Será um sucateiro "com muito mais pinta".

Empréstimo pode ir já até sete mil euros

Apoio técnico no lançamento e consolidação do negócio será uma marca distintiva do programa

O programa Criar - O futuro nasce aqui presta apoio a dois níveis: o técnico e o financeiro.

A vertente técnica inclui a elaboração do plano de negócio a apresentar à instituição bancária, o acompanhamento no lançamento e consolidação do negócio, a formação específica em áreas da especialidade da Lipor, o apoio na montagem contabilística/fiscal. A vertente financeira prevê uma oferta de 935,35 euros (para consultoria e investimento em materiais de divulgação e promoção do negócio) e um empréstimo concedido por um banco mediante uma proposta feita pela Associação Nacional de Direito ao Crédito - sete mil euros no máximo no primeiro ano, dez mil a partir do segundo, "mediante avaliação positiva do andamento do projecto".