João Manuel Rocha, in Jornal Público
Juan Somavia reclama compatibilidade entre economias competitivas, capazes de gerar riqueza, e necessidade de assegurar direitos e salários dos trabalhadores
A globalização "agudizou" os problemas que se colocam ao mundo do trabalho e, por isso, é necessária uma "globalização justa," ou todos serão afectados. A ideia é defendida por Juan Somavia, um chileno de 66 anos que desde 1998 dirige a Organização Internacional do Trabalho (OIT), numa entrevista realizada durante os trabalhos do Fórum sobre o Trabalho Digno para Uma Globalização Justa que ontem terminou em Lisboa.
O conceito de trabalho digno é recente. Há hoje mais necessidade de defender o trabalho digno?
A necessidade não é recente. É o motivo pelo qual a OIT foi criada: as pessoas querem ser respeitadas no trabalho, ter dignidade no trabalho. E a OIT foi fundada para promover os acordos necessários para que isso aconteça. A formulação "trabalho digno" vem das pessoas. O trabalho digno é composto por quatro elementos: respeito dos direitos no trabalho; desenvolvimento da protecção social na medida das possibilidades de cada país; criação de emprego e promoção empresarial; e diálogo social como instrumento de resolução de conflitos no interior das empresas e como maneira de contribuir para a formulação de políticas nacionais.
Há uma relação entre o conceito e a globalização económica?
A globalização agudizou o problema. Hoje temos problemas estruturais herdados, em algumas economias, e inseguranças e instabilidade do processo da globalização, em todas as economias. As pessoas olham para a globalização e vêem aspectos de que gostam - produtos mais baratos, possibilidade de comunicar mais rapidamente -, mas politicamente analisam-na segundo o seu efeito no trabalho, onde há uma maior sensação de insegurança. É essa a explicação para a reacção negativa à globalização. Tem aspectos positivos mas estão mal distribuídos.
Acredita numa globalização social?
Creio que tem que haver uma globalização justa, uma globalização que reconheça que o mundo precisa de avançar para um desenvolvimento sustentável e que esse desenvolvimento tem um fundamento económico, social e ambiental. A agenda do trabalho digno insere-se nessa lógica: precisamos dar à globalização uma dimensão social, ambiental.
Onde é que o trabalho é menos digno, onde é que a situação é mais grave?
Esse não é o tema. O tema é: toda a sociedade tem um desafio na promoção do trabalho digno. O primeiro-ministro [José Sócrates], quando inaugurou este fórum, disse que a agenda do trabalho digno é muito importante para a Europa, porque não é possível haver tantas crianças pobres na Europa. A agenda do trabalho digno é importante para os Estados Unidos, onde há 50 milhões de pessoas que não têm acesso à saúde. Toda a sociedade tem o seu próprio desafio em matéria de trabalho digno.
Quais são os desafios concretos para os países mais desenvolvidos?
Eu diria que é indispensável que haja um sistema comercial mais justo, e isso depende muito da Europa e dos Estados Unidos. Necessitamos de uma regulação adequada à enorme expansão das operações financeiras. Hoje em dia está-se a produzir um distanciamento entre as operações das private equities [capitais de risco] e a economia real. Os países desenvolvidos têm responsabilidade nas regras da globalização. E as regras do jogo comercial e financeiro só vão melhorar se os países desenvolvidos contribuírem para uma globalização mais justa.
Há disponibilidade desses países para a mudança?
Há mais consciência da situação. Durante muito tempo o grande debate era entre a defesa da globalização tal como está e a necessidade de parar a globalização. A OIT organizou uma comissão sobre a dimensão social da globalização em que se disse: "Esta globalização não é moralmente defensável nem politicamente sustentável. Mas é possível construir uma globalização justa." Creio que está a crescer a consciência de que, se deixarmos a globalização como está, isso afectará os interesses de toda a gente.
Há riscos de que nos países mais desenvolvidos seja feito um nivelamento por baixo em matéria de direitos laborais, até por uma questão de concorrência entre economias.
Sem dúvida. Esse é um dos nossos problemas centrais. Não há dúvida de que uma economia tem que ser competitiva, eficaz, de gerar riqueza. Queremos empresas e economias produtivas. Ao mesmo tempo essa produtividade e essa competitividade estão fundadas no facto de a parte do trabalhador estar cada vez mais limitada nos seus direitos ou nos seus salários, o esquema não funciona. E as pessoas estão a dar-se conta disso: que com este modelo de globalização a parte do produto nacional bruto que vai para o trabalho diminui e a parte que vai para o capital expande-se. Se essa tendência se mantiver, isso é um elemento de instabilidade. Não há motivo nenhum para que nas democracias isso se considere razoável.
Flexi-segurança
Modelo tem que se adaptar a cada país
Como vê a flexi-segurança, que está na ordem do dia na Europa?
É uma das maneiras de procurar abordar o problema [de conjugar a necessidade de economias competitivas com os direitos dos trabalhadores]. Saúdo o facto de os representantes dos empresários e dos trabalhadores europeus terem nesta presidência portuguesa avançado no sentido de um entendimento sobre quais os principais problemas do mercado de trabalho europeu. Isso é muito interessante. Um dos temas europeus é justamente como equilibrar a adaptabilidade das empresas e a segurança necessária aos trabalhadores.
É o bom caminho?
Não há "o" bom caminho, "o" modelo, "a" forma. É uma maneira que pode ser adequada ao nível europeu, porque requer um nível elevado de impostos. O modelo nasceu na Dinamarca e a Dinamarca pode fazer o equilíbrio entre flexibilidade e segurança porque tem recursos para fazer políticas públicas que garantam segurança. Agora se me pergunta se o Lesoto pode seguir o modelo dinamarquês, claro que não pode. O conceito é importante, mas tem que se ver a forma como pode ser aplicado a diferentes países. Eu diria que o tema principal é o seguinte: uma sociedade está, ou não está, de acordo que a dignidade no trabalho, o respeito pelo valor do trabalho, é um dos valores centrais do pacto democrático. Se estamos de acordo, então temos que ver como organizamos a sociedade para que isso seja respeitado. E se me dizem que não se pode por causa do mercado... então alguma coisa está mal na maneira como funciona o mercado, porque o mercado funciona de acordo com as regras que tem. Não existe "o mercado", existe o mercado de uma sociedade concreta, com as regras que essa sociedade criou para o funcionamento do mercado. Se não opera de maneira que respeita dos trabalhadores, há um problema com a organização democrática das sociedades.
O "trabalho digno"
O conceito "trabalho digno" - a expressão é frequentemente substituída por "trabalho decente" - foi difundido por Juan Somavia no relatório que apresentou em 1999 à 87.ª sessão da Conferência Internacional do Trabalho. Desde essa altura, a OIT, uma agência "tripartida" das Nações Unidas, cujas políticas são definidas em conjunto por representantes dos governos, empregadores e trabalhadores, tem vindo a desenvolver uma agenda para o trabalho digno em que o trabalho surge como fonte de rendimentos e instrumento para o progresso social e económico. O conceito procura incorporar as aspirações das pessoas nas suas vidas profissionais, designadamente oportunidade para realizar trabalho produtivo com remuneração justa, segurança no trabalho e protecção social das famílias.