18.11.21

Projeto trata da saúde oral para combater desigualdades. “Há pessoas que não arranjam trabalho devido à aparência. Outras não saem de casa”

Helena Bento, in Expresso

São dadas consultas “gratuita” ou a “preços simbólicos” a pessoas com “trajetórias sociais muito diversas e histórias de vida muito difíceis”, desempregados, vítimas de violência doméstica, migrantes, refugiados, sem-abrigo. Pessoas que já estão numa “situação de fragilidade e que sem acesso a cuidados de saúde oral ficam ainda pior”. Projeto da organização não-governamental Mundo a Sorrir, que já ajudou 8.570 pessoas e disponibilizou mais de 108 mil tratamentos, foi premiado recentemente pelo seu impacto social

Em quatro cidades do país há clínicas com dentistas e outros profissionais a prestar cuidados de saúde oral de forma “gratuita” ou a “preços simbólicos” a pessoas que estão em situação de “vulnerabilidade social”, seja porque perderam o emprego, seja devido a outros problemas. O projeto, da organização não-governamental Mundo a Sorrir, foi o vencedor da 9.ª edição do Prémio Maria José Nogueira Pinto, que distingue iniciativas com impacto social.

O projeto, que começou em 2009 no Porto e foi implementado depois nas cidades de Braga, Lisboa e Cascais, partiu de uma constatação que tem muitas implicações na prática: “Sabemos que a resposta no Serviço Nacional de Saúde não é suficiente. E há pessoas que estão excluídas do acesso aos cuidados de saúde oral”, explica ao Expresso Ana Simões, coordenadora técnica do projeto Centro de Apoio à Saúde Oral (C.A.S.O) no Porto. Essa exclusão tem consequências, desde logo ao nível do agravamento das desigualdades. “Há pessoas que nos dizem que têm vergonha de ir a uma entrevista de emprego porque têm os dentes estragados. Ou que não conseguem encontrar um trabalho devido à sua aparência. Outras dizem-nos que não saem de casa pela mesma razão. Olham-se ao espelho e não gostam do que veem.” Têm “pouca autoestima” e tudo isso faz com que se “isolem”, já para não falar das questões ligadas à própria saúde. “Não conseguem mastigar e não conseguem falar porque sentem que as palavras lhes fogem. É isso que nos descrevem. Também têm dores”, diz Ana Simões. “Às vezes não fazemos ideia do que é ter dentes bons ou não ter dentes bons.”

PROJETO APOIA PESSOAS COM “HISTÓRIAS DE VIDA MUITO DIFÍCEIS”

O projeto apoia pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconómica, com “trajetórias sociais muito diversas e histórias de vida muito difíceis”, nomeadamente desempregados, vítimas de violência doméstica, migrantes, refugiados, pessoas com problemas de adição de álcool e drogas, sem-abrigo e portadores de deficiência física ou intelectual. Pessoas que já estão numa situação de fragilidade” e ficam ainda sem acesso a cuidados de saúde oral.

São encaminhadas para as clínicas da organização por instituições sociais parceiras e juntas de freguesia e câmaras municipais. Recebem não só tratamento dentário como apoio psicossocial, de modo a garantir a continuidade do tratamento. Ana Simões explica: “Muitas vezes as pessoas precisam deste apoio porque têm muitos problemas dentários. Têm de comparecer a muitas consultas e algumas têm de colocar próteses para substituir os doentes que entretanto tiveram de extrair.” Essa “adaptação”, explica, “nem sempre é fácil”, daí ser necessário este reforço e este acompanhamento ao longo de todo o processo “para que as pessoas não desistam”.

Segundo o último Barómetro da Saúde Oral, cujos resultados foram divulgados em 2019, apenas 31% dos portugueses têm a dentição completa. Quase 30% não vão ao dentista ou só o fazem em caso de urgência. Destas, uma em cada cinco (22,8%) alega não ter capacidade financeira. Mais de um terço (35,7%) não vão a uma consulta há mais de um ano. São números que, por certo, não surpreendem Ana Simões. “A falta de cuidados dentários no SNS é um problema a nível nacional. Tem-se feito um grande esforço para promover a saúde oral mas as respostas que existem não conseguem efetivamente cobrir as necessidades de toda a população.”

Há centros de saúde “sem dentista” e os cheques-dentista “também têm limitações”, aponta, especificando: “São direcionados para públicos específicos, como crianças de diversas faixas etárias, portadores de HIV/sida, grávidas e idosos com subsídios. São públicos muito específicos e a população em geral acaba por ficar sem resposta”. Além disso, acrescenta, “o encaminhamento para dentistas no centro de saúde tem de ser feito via médico de família, quando esses dentistas existem, o que também causa transtornos”. “Se o Estado desse resposta a todas estas pessoas, a nossa organização não precisaria de existir.” Apesar disso, ressalva: “somos uma resposta complementar”. “Atuamos junto de pessoas que já esgotaram todas as alternativas que tinham. Isto é, não têm capacidade financeira para aceder ao sector privado e não têm uma resposta ao nível do sector público. Recorrem a nós quase como último recurso.”

PROJETO JÁ AJUDOU MAIS DE 8.500 PESSOAS

E são muitas as que o fizeram até ao momento. Desde 2009, o projeto já ajudou 8.570 pessoas e disponibilizou mais de 108 mil tratamentos. No Porto, onde foi distinguido com o Prémio Maria José Nogueira Pinto, foram mais de cinco mil pessoas e 37 mil tratamentos. O júri do prémio considerou que foi a “iniciativa que corresponde melhor ao conceito de ‘socialmente responsável na comunidade onde nos inserimos’, defendido por Maria José Nogueira Pinto, lê-se no site do prémio.

Além da área da assistência, onde se inclui este projeto, a organização trabalha nas áreas da prevenção e promoção da saúde, capacitação de profissionais de saúde e de áreas sociais e investigação, atuando em Portugal mas também em países como a Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.