16.11.21

Pobres: os que não têm casa, dinheiro para os medicamentos, mas também os que poupam

Ana Catarina André, in RR

O trabalho, a família, a saúde e o meio em que cada pessoa vive determinam o quotidiano. E se, entre os pobres, há quem construa uma barraca para abrigar os filhos, também há quem tenha um emprego fixo e quem consiga juntar dinheiro

Dois pães oferecidos pela Cáritas para o pequeno-almoço, uma sopa quente, a meio do dia, dada pela Santa Casa da Misericórdia, um café pago por “um dos conhecidos da terra”, durante a tarde, e uma refeição quente para o jantar, proporcionada pela Refood. É assim que Maria (nome fictício), de 63 anos, se alimenta todos os dias. Desde que ficou desempregada, há mais de cinco anos (trabalhava como auxiliar, num lar), sem rendimentos e sem o apoio da família, tornou-se sem abrigo.

Perdida, sem casa e sem dinheiro, Maria procurou refúgio no álcool. “Comecei a beber ainda mais, quando passei a dormir na rua. Ia ao supermercado buscar um pacote de vinho para me aquecer e para me esquecer daquela situação”, conta a mulher que, depois de vários anos em Londres, onde trabalhou em hotéis e restaurantes, se mudou para Vila Real. “Num dia muito frio, estava a dormir junto ao prédio da esquadra da polícia, aqui em Vila Real, e uma senhora aproximou-se. Tapou-me com uma manta e ofereceu-me uma canjinha quente.”
Dois milhões de pobres em Portugal

Segundo dados do INE, referentes a 2019, em Portugal 16,2% da população vive abaixo do limiar da pobreza, ou seja, tem um rendimento inferior a 540 euros por mês. De acordo com dados de 2020 do Eurostat, 20% dos portugueses estão risco de pobreza ou exclusão social, o que equivale a cerca de dois milhões de pessoas.

Atualmente, Maria recebe o rendimento social de inserção (RSI): 189 euros por mês. Como paga 200 euros pelo quarto (mora numa pensão), ainda fica a dever 20 euros, pagos mensalmente pela Segurança Social. Não tem nem mais um cêntimo ao longo do mês. As suas dificuldades, porém, não são só financeiras. “Com a pandemia fiquei ainda mais sozinha. Tenho dois filhos, mas não falo com eles. Agora voltei a fazer atividades na Cáritas e com a ajuda das técnicas estou a fazer um tratamento para o álcool.”

Maria alimenta-se diariamente graças ao apoio de associações de solidariedade. Foto: Lusa

“Ser pobre não é somente ter poucos recursos. É também estar excluído de uma vida digna e ser carenciado de direitos de cidadania”, afirma o professor universitário Carlos Farinha Rodrigues que desenvolve há anos investigação sobre o tema. “A pobreza em Portugal é hoje muito diversificada. Abrange uma multiplicidade de situações que exigem também políticas diferenciadas”, considera o especialista.
"Nunca tivemos uma estratégia de sucesso em relação às crianças. Na minha opinião, qualquer Estratégia de Combate à Pobreza tem de começar por elas, porque têm uma situação mais grave do que o resto da população."

Uma heterogeneidade que, muitas vezes, não se reflete nos indicadores usados para analisar o fenómeno. A própria definição de limiar da pobreza assenta exclusivamente no rendimento das famílias. “Não temos neste indicador qualquer relação entre níveis de rendimento e níveis de consumo básicos. É evidente que se eu tiver duas famílias com o mesmo rendimento, mas uma tem duas ou três pessoas deficientes, as necessidades são completamente diferentes”, assegura o investigador, membro da comissão que elaborou recentemente a proposta de Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030.

Uma das faixas etárias a que a proposta pretende dar resposta é a dos menores. “Infelizmente nunca tivemos uma estratégia de sucesso em relação às crianças. Na minha opinião, qualquer Estratégia de Combate à Pobreza tem de começar por elas, porque têm uma situação mais grave do que o resto da população e são um foco de reprodução intergeracional da pobreza.” E explica: “Uma política para retirar as crianças da pobreza implica medidas para as crianças, mas também para a família.”


Viver numa barraca sem água e sem luz

Verónica tem três filhos menores: uma rapariga de 16 anos e dois rapazes, um de 9 e outro de 2. Vivem numa barraca clandestina, no concelho de Loures, onde vez de quando aparecem também ratos e pulgas. Não têm água e dependem da boa vontade de uma vizinha para encher os reservatórios que têm à porta. A luz, uma “puxada” feita a partir da rede de eletricidade pública, também falha na maior parte dos dias.

“Tentei encontrar um sítio para viver com os meus três filhos e o meu marido, mas não tínhamos dinheiro para pagar a renda. Ele também está desempregado. Então fizemos esta barraca”, conta a cabo-verdiana de 34 anos, que recorre ao Banco Alimentar para alimentar a família. “Não é fácil viver no meio do mato. Às vezes, estou quatro dias sem luz. Carrego o telefone e lavo a roupa em casa de um primo. Na barraca, há muitos bichos e, como os meus filhos são alérgicos às picadas de inseto, ficam com o corpo todo picado, em ferida.”

Verónica e o marido vivem ambos do RSI. Com a pandemia, encontrar emprego tornou-se ainda mais difícil. “Quero trabalhar, mas preciso de uma creche para o meu filho mais pequeno. Só há vaga para os meninos que têm pais com contrato de trabalho, mas se não tenho onde deixá-lo, como é que vou fazer?”

Em 2010, quando Verónica deixou o emprego de secretária, em Cabo Verde, e aterrou em Lisboa para começar uma nova vida, acreditava que tinha acabado de chegar ao “paraíso”. “Era tudo ilusão.” Esteve ilegal no país durante dois anos. Trabalhou como empregada doméstica e na restauração, sem que os patrões lhe dessem, na maioria das vezes, um contrato de trabalho. Morou sempre em habitações com condições precárias – na última casa que arrendou, chovia no interior e a humidade era tanta que cheirava mal.

Construção de barracas regressa à Grande Lisboa. "Não podia ir para a rua com as crianças"

Trabalham, mas são pobres

Nem sempre é a inexistência de um sustento que explica a carência em que vive um quinto da população. De acordo com o estudo “A Pobreza em Portugal: Trajetos e Quotidianos”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em abril deste ano, 13% das pessoas em situação de pobreza estão desempregadas, um número que dispara quando comparado com o grupo dos que têm vínculo laboral. Um terço (32,9%) das pessoas que vivem em situação de pobreza em Portugal são trabalhadores, a maioria das quais com vínculos estáveis e salários certos ao fim do mês.

“A estrutura produtiva portuguesa está assente em sectores de atividade, onde por regra se paga mal e os trabalhos são precários, como o turismo, a construção civil, a agricultura e pescas e mesmo alguma indústria”, explica o coordenador da pesquisa, o sociólogo e professor da Universidade dos Açores, Fernando Diogo. “Para mudar esta situação de base, é preciso alterar a especialização produtiva da economia portuguesa.”

Manuela (nome fictício), moçambicana de 60 anos a viver em Portugal há mais de 10, nunca esteve desempregada, mas também nunca ganhou mais do que o salário mínimo. “A minha filha teve um acidente e viemos para cá ao abrigo dos acórdãos entre os dois países, para que ela pudesse ser assistida”, conta a africana, que começou por encontrar sustento como auxiliar, num lar de idosos, e agora trabalha como vigilante.

“Pago 395 euros de renda, e mais ou menos 79 euros em água, luz e telefone. Como a minha filha é deficiente, tivemos de pôr um elevador na escada do prédio, para que ela possa entrar sozinha com a cadeira de rodas. Este aparelho tem manutenção mensal de 86 euros mensais. Pagas as contas, fico com os bolsos vazios. Não sobra nada para a alimentação, nem para os medicamentos dela.”

Graças ao apoio da Junta de Freguesia de Mem Martins, que lhe dá um cabaz com géneros alimentícios, Manuela consegue preparar as refeições. “Só tenho de saber gerir o que me dão. Faço muitas sopas passadas e tento diversificar para não ficarmos cansadas. Dão-nos o básico e recebemos com muita, muita honra. Não ficamos com fome”, garante.

Foi, também, através do mesmo organismo autárquico que soube da existência do programa Abem, da associação Dignitude, que permite que pessoas em situação de carência económica possam aceder aos medicamentos. “Foi uma salvação. Só em farmácia são 85 euros. Onde é que os ia arranjar com as despesas que já tenho?” Antes de conseguir este apoio, a filha de Manuela, já com 39 anos, tinha crises sucessivas. “Dava-lhe os comprimidos que conseguia comprar com o dinheiro que tinha, mesmo sabendo que ela precisava de tomar aqueles remédios todos”, lamenta a mãe.

Segundo os estudos mais recentes, um em cada dez portugueses não compra os medicamentos prescritos pelo médico por não ter dinheiro para os pagar. “Se os estudos feitos a nível universitário apontam para cerca de um milhão de pessoas com dificuldade em comprar medicamentos, não vamos pensar que os dois milhões de pobres em Portugal têm folga para comprar medicamentos, sobretudo quando são caros do ponto de vista relativo. Entidades como a Dignitude fazem um bocadinho, mas é preciso mais”, alerta Maria de Belém Roseira, antiga ministra e embaixadora da associação Dignitude que desenvolveu o programa Rede Solidária do Medicamento.

“Vivemos num país em que a carga de doença nas pessoas com mais de 65 anos é muito mais elevada do que noutros países da Europa. Somos mais pobres, temos condições de trabalho menos protegidas, casas sem condições, vidas muito sacrificadas”, acrescenta.

Reformas baixas: um mundo de mundos

De acordo com o estudo “A Pobreza em Portugal: Trajetos e Quotidianos”, 27,5% das pessoas com rendimentos insuficientes são reformados. É o caso de Paulo, de 57 anos, que luta há mais de duas décadas contra o cancro. Foi diagnosticado com um tumor na face, que obrigou os médicos a amputarem-lhe o nariz e o olho esquerdo, e mais recentemente, teve um linfoma. “Se pudesse, trabalhava, mas ninguém dá emprego a uma pessoa na minha situação”, constata o antigo empregado de mesa, reformado por invalidez.
“Se pudesse, trabalhava, mas ninguém dá emprego a uma pessoa na minha situação.”

“Recebo cerca de 400 euros por mês. Metade uso para pagar a renda da casa que divido com a minha companheira, também ela doente e com um rendimento de 98 euros. O que sobra gastamos no supermercado. Felizmente recebemos ajuda da igreja do Catujal [concelho de Loures] há 7 anos. De lá trazemos congelados, fruta, massa e outros produtos.” Fome, felizmente, nunca passaram. “O padre Mário e os voluntários que trabalham com ele disseram-nos várias vezes para falarmos com eles, caso haja alguma falha ao longo do mês.”

Com um rendimento semelhante, António, de 82 anos, tem um quotidiano completamente distinto. Vive numa república sénior, uma solução habitacional destinada a idosos funcionais criada pelo Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios, em Lisboa. Desde que se mudou, em 2015, não ganhou só novos colegas de casa, mas uma “vida nova”. Tem cama, comida e roupa lavada. “Antes, vivia em quartos alugados à mercê de senhorios”, conta o português, que fez carreira na área do imobiliário.

A reforma de apenas de 400 euros (tão baixa, porque não fez os devidos descontos para a Segurança Social) chega para pagar o apoio que recebe e para os medicamentos. Mesmo passando muitos dias sozinho (aproveita para ler), e tendo ficado cego do olho esquerdo durante a pandemia (o atraso nas consultas impediu que o problema fosse detetado a tempo), António mantém a esperança. “Esta viragem na minha vida tem sido muito positiva no campo espiritual.”

Poupar com uma reforma de 300 euros

Um dos fatores que continua a ter mais impacto na situação de vida dos mais carenciados é o meio onde estão inseridos. Como explica o investigador Carlos Farinha Rodrigues, “nas grandes cidades a pobreza é fortemente determinada pelo desemprego”. “No campo as pessoas não estão tão dependentes de um salário, tem as suas próprias terras, as suas hortas e, portanto, têm alguns fatores de compensação”.

À porta de casa, numa aldeia do concelho de Alenquer, Rita Barata prepara-se para passar a tarde a limpar o terreno que circunda a pequena moradia onde mora. Aos 85 anos, continua a trabalhar no campo todos os dias.

“Semeio batatas, cebolas, couves, feijão-verde, morangos. Tenho galinhas que vão dando uns ovinhos. Assim, não preciso de comprar. É uma ajuda”, conta a idosa, que recebe uma pensão de 325 euros e ainda consegue juntar dinheiro.

“Como é que se poupa? Não estragando”, afirma, com prontidão. “Esta casa onde moro era do meu sogro. Fui eu que piquei as paredes e fui juntando para as obras”, diz, contando que, desde cedo, aprendeu a usar a enxada e a “ter cabecinha para governar a vida.”

“Se quero comprar um fogão novo, ponho de parte algum dinheiro todos os meses. Roupa não compro – tenho muita. Onde gasto mais dinheiro é em chinelos e batas.” É uma questão de otimismo e perspetiva, assegura a octogenária. “O dinheiro é pouco, mas sabemos que no passado era ainda menos.”