18.11.21

Covid-19: estudo encontrou o medo e a solidão em oito milhões de chamadas telefónicas

Andrea Cunha Freitas, in Público on-line

Investigação sobre saúde mental conclui que as chamadas para linhas de apoio atingiram o pico seis semanas após o surto inicial da pandemia, excedendo os níveis pré-pandémicos em 35%.

Cientistas analisaram oito milhões de chamadas recebidas em 23 linhas de apoio de 14 países europeus, incluindo Portugal, e ainda os EUA, China, Hong Kong, Israel e Líbano.,Cientistas analisaram oito milhões de chamadas recebidas em 23 linhas de apoio de 14 países europeus, incluindo Portugal, e ainda os EUA, China, Hong Kong, Israel e Líbano. 

O trabalho publicado esta quarta-feira na revista Nature envolveu a análise de oito milhões de chamadas recebidas em 23 linhas de apoio de 14 países europeus, incluindo a SOS Voz Amiga, em Portugal, e ainda os EUA, China, Hong Kong, Israel e Líbano. Os investigadores confirmaram um aumento das chamadas logo após a primeira onda da covid-19 e concluíram que esta sobrecarga de pedidos de ajuda foi motivada sobretudo pelo medo (incluindo o medo da infecção) e pela solidão. Mais do que exacerbar velhas ansiedades e angústias, a pandemia substituiu-as.

Concluir que houve um aumento de chamadas para as linhas de apoio durante a pandemia é algo que parece pouco surpreendente, mas os investigadores do artigo publicado agora na Nature foram um pouco mais longe do que isso. Tentaram perceber o que é que este aumento e, mais precisamente, o que é que estas chamadas diziam sobre a saúde mental pública durante a crise que mexeu com o mundo todo.

“As chamadas da linha de ajuda aumentaram durante a pandemia, e este aumento foi motivado principalmente por preocupações ligadas à pandemia (como o medo de infecção e a solidão). Em contrapartida, em média, a quota de chamadas devido a outras formas de angústia, incluindo suicídio, violência e dependência, diminuiu”, constatam.

Os problemas de relacionamento, problemas económicos, violência e a ideação de suicídio não desapareceram, mas eram menos prevalecentes do que antes da pandemia. E o padrão, dizem ainda os autores do trabalho, surgiu durante a primeira onda da pandemia, mas continuou durante as subsequentes ondas de covid-19. Um novo anormal.

O alívio no apoio financeiro

Numa análise ainda mais fina, os investigadores também viram que temas directamente ligados à pandemia terão substituído, em vez de exacerbar, as ansiedades que existiam antes. Mais: o número de chamadas relacionadas com o suicídio aumentou em momentos em que foram adoptadas medidas de isolamento mais rigorosas.

A esta improvável coincidência soma-se ainda o facto de os pedidos de ajuda diminuírem quando eram anunciadas medidas de apoio financeiro. “Isto sugere que o alívio financeiro pode aliviar o sofrimento desencadeado por medidas de lockdown”, concluem os autores que nas conclusões do artigo esclarecem ainda que “pagamentos de compensação a trabalhadores e empresas afectados economicamente pela covid-19, que eram concebidos para preservar a procura e a capacidade produtiva, têm benefícios em aliviar a angústia e as preocupações com a saúde mental”.

Os cientistas que analisaram mais de oito milhões de chamadas para linhas de apoio justificam que esta análise aos dados das linhas de apoio são um complemento importante para juntar às “abordagens empíricas existentes”, baseadas em inquéritos, administrativos e clínicos, bem como em outro tipo de informações como estatísticas de suicídios, admissões em centros de tratamento ou mesmo o rasto das pesquisas realizadas na Internet. A equipa garante ainda que “a estrutura do painel de dados permitiu estimar modelos multivariados” que fazem com que seja possível separar os efeitos da própria pandemia dos do rigor das medidas restritivas e das medidas políticas de apoio aos rendimentos da população.

A investigação não oferece nenhuma análise específica sobre o local de origem das chamadas, nem faz nenhum tipo de comparação entre os vários países que fazem parte do trabalho. Refere-se apenas que foram analisadas 23 linhas de apoio de 14 países europeus e ainda os EUA, China, Hong Kong, Israel e Líbano. Nos agradecimentos é possível perceber que, entre outras linhas de outras nações, foram usados os dados da linha SOS Voz Amiga, em Portugal.

“Os dados de SOS Voz Amiga estão incluídos apenas na análise subjacente sobre o volume de chamadas. Embora também registem alguns detalhes sobre as características e questões da pessoa que faz a chamada, a cobertura não foi suficientemente consistente para ser incluída nas outras análises”, refere ao PÚBLICO Valentin Klotzbücher, um dos autores do artigo.

Forças e limitações

“Baseámo-nos em dados de chamadas para linhas de apoio internacionais para lançar luz sobre uma estatística desconhecida da política pandémica: preocupações de saúde mental e angústia da população”, resumem os investigadores.

Mas se, por um lado, apresentam as vantagens desta relevante fonte de informação que se deve juntar a outros dados para a análise da saúde mental pública, por outro, os autores também reconhecem as suas limitações. “A contagem das chamadas pode ser influenciada não só pela procura, mas também pela oferta, uma vez que as limitações de capacidade de resposta podem levar os operadores a deixar algumas chamadas não atendidas”, referem. Ou seja, o registo de um menor número de chamadas atendidas pode não reflectir uma redução do número de chamadas realizadas.

Ainda assim, isso não afectaria as conclusões a retirar sobre os motivos que levam as pessoas a procurar ajuda, argumentam os investigadores. “Como as chamadas não são pré-seleccionadas, é pouco provável que as limitações afectem as análises da composição das chamadas em termos de assuntos ou características das pessoas que faz a chamada”, sustentam.

Valentin Klotzbücher acrescenta que o trabalho inclui alguns detalhes “sobre a composição das pessoas que telefonam para as linhas de ajuda” e exemplifica: “Para as pessoas com menos de 30 anos, encontramos um aumento das chamadas relacionadas com a saúde física e – para as mulheres jovens – também com a violência.”


Outra das limitações do estudo será deixar de fora uma população muito frágil que também pode terá sido afectada pela pandemia e que não recorre a estas linhas de apoio: as crianças. Confrontado com essa lacuna e questionado sobre os próximos passos da investigação, Valentin Klotzbücher dá uma só resposta para as duas questões: “No futuro, estamos de facto a planear olhar mais de perto para o efeito de medidas específicas (tais como o encerramento de escolas) nas crianças. A linha alemã de ajuda às crianças e jovens Nummer gegen Kummer oferece informação particularmente rica sobre este grupo, no entanto ainda estamos a analisar os dados e não posso dizer-vos mais nada ainda.”

Este estudo na Nature pode ainda abrir a porta para uma arriscada extrapolação de algumas conclusões sobre o estado da saúde mental pública a partir de um grupo de pessoas que não é possível caracterizar em termos de estatuto sociodemográfico, saúde, profissão, nacionalidade e outros factores. Porém, mesmo admitindo espaço para essas reservas, os cientistas argumentam que os trabalhadores destas linhas de apoio confirmam que a população que normalmente faz estas chamadas “inclui os membros mais vulneráveis da sociedade”. E são esses, sublinham, que representam “a população de maior interesse num estudo sobre a angústia e as preocupações com a saúde mental”.

Linhas de Apoio e de Prevenção do Suicídio em Portugal

SOS Voz Amiga
(entre as 16 e as 24h00)
21 354 45 45
91 280 26 69
96 352 46 60

Telefone da Amizade
22 832 35 35

Escutar - Voz de Apoio – Gaia
22 550 60 70

SOS Estudante
(20h00 à 1h00)
969 554 545

Vozes Amigas de Esperança
(20h00 às 23h00)
22 208 07 07

Centro Internet Segura
800 21 90 90

Conversa Amiga
808 237 327
210 027 159

Telefone da Esperança
222 030 707