18.11.21

Abuso sexual: nos últimos cinco anos, a APAV ajudou 1599 menores, 173 familiares e amigos em 197 dos 308 concelhos de Portugal

Raquel Moleiro, in Expresso

Campanha do Dia Europeu da Proteção das Crianças contra a Exploração e o Abuso Sexual alerta para crime dentro do círculo de confiança. E apela à denúncia: "Quebre o silêncio, seja a voz das vítimas"

Basta uma pesquisa rápida por notícias no Google sobre o tema para lhe medir a dimensão. Escreve-se “crianças + abuso sexual”, carrega-se no search e as entradas são infindáveis. Mesmo que se restrinja a localização a Portugal, mesmo que se anule os artigos que repetem a mesma notícia.

A menina de 13 anos que, no Alentejo, deu à luz um bebé, fruto da violação do padrasto.

Um professor de Vila Real condenado a pena suspensa por 15 crimes de abuso sexual sobre duas alunas, de nove e 12 anos, e que continuou a dar aulas.

Um homem detido em Estarreja por aliciar online e abusar de raparigas entre os 12 e os 16.

Um ex-presidente de junta de Carrazeda de Ansiães julgado por dois crimes de abuso sexual de crianças e dois crimes de atos com adolescentes.

Um capelão da Ordem de Malta investigado por enviar mensagens de cariz sexual a um rapaz de 14 anos.

Um treinador de futebol de Anadia condenado por pornografia e aliciamento de crianças.

Um homem de Lisboa detido por abusar das filhas desde que tinham 4 e 3 anos.

Um homem de Loulé detido por crimes sexuais contra uma filha e duas sobrinhas, em casa da avó.

Tudo isto no exato espaço de um mês.

Muitas destas vítimas acabam por passar pela rede Care, da Associação de Apoio à Vítima (APAV), criada em 2016 para apoiar de forma especializada crianças e jovens vítimas de violência sexual. E aqui a dimensão ganha contornos mais definidos.

No espaço exato de um mês são abertos 27 novos processos e realizados 365 atendimentos. Nos últimos cinco anos foram ajudados 1599 menores, 173 familiares e amigos, residentes em 197 dos 308 concelhos de Portugal, o que expressa a abrangência da ajuda mas também a ausência de fronteiras do crime.

E todos os anos os números superam o anterior. "E 2021 não vai ser exceção. Mesmo não estando fechado, posso garantir que segue a mesma tendência de crescimento de novos processos de apoio iniciados", atesta Carla Ferreira, coordenadora da rede Care.

Em 2020, ano do primeiro grande confinamento ditado pela pandemia, a subida foi mais discreta, mas nem assim parou.

Os menores chegam à rede Care principalmente por contacto direto, a maioria depois de um telefonema para a linha de apoio à vítima, mas também o fazem por escrito, nas mensagens privadas das redes sociais onde a associação está presente, ou mesmo por email.

"Todos os canais são válidos. O que interessa é que consigam chegar até nós, para que possam ser ajudadas. E quando não conseguem, nós deslocamo-nos onde for, na certeza de que não deixamos nenhuma vítima sem apoio esteja onde estiver e pelo tempo que for necessário", garante a técnica.

Muitos casos são já encaminhados após referenciação da Polícia Judiciária e do Ministério Público, entidades parceiras da APAV, "o que é muito importante, porque retira à vítima o onus de ter de procurar ajuda", explica Carla Ferreira.

Quase 15% das vítimas, porém, ainda surgem nos gabinetes sem denúncia feita às autoridades.

As vítimas são predominantemente do sexo feminino (79, 8%) e à data do primeiro contacto com a APAV têm, na sua maioria, entre 8 e 17 anos. Mas têm vindo a crescer os pedidos de ajuda de adultos abusados em criança, e que só agora o denunciam, perfazendo já um quarto do total dos processos em 2020.

Os agressores são em 90,5% dos casos homens e o crime continua a ser, na sua maioria (51%), intrafamiliar, praticado pelo pai (em maior número), padrasto, avô, tio, irmão ou outro parente, e de forma continuada (57%), com o abuso sexual de crianças a dominar de longe (59,8%) a lista dos crimes sofridos pelas vítimas que procuraram ajuda. "Há mais casos de abuso que ocorrem com recurso a plataformas digitais, partilha de fotos, aliciamento para atos de violência sexual, mas continua a ser um crime que ocorre principalmente em contexto familiar, o que dificulta a sua desocultação, pela superioridade da pessoa adulta em quem a vítima confia ou perceciona como positiva. Muitas vezes a vítima tem também medo de desintegrar a família se falar, ou da família perder o suporte financeiro", esclarece a coordenadora da rede Care.

Campanha da APAV


TORNAR O CÍRCULO DE CONFIANÇA SEGURO

São estes últimos dados, em relação à ligação familiar ou de proximidade entre agressor e vítima - que são nacionais mas expressam uma realidade mundial -, que dão o mote à campanha lançada esta quinta-feira pela Comissão Nacional de Promoção de Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) para assinalar o Dia Europeu da Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual, criado pelo Conselho da Europa em 2015.

O tema central da edição de 2021 é “Tornar o círculo de confiança verdadeiramente seguro para as crianças”, de forma a alertar “a sociedade civil para este problema grave e de ampla dimensão, transversal a todas as classes sociais”, em que a maioria dos abusos sexuais são cometidos “por pessoas que as crianças conhecem e com quem convivem”, explica a CNPDPCJ.

No video da campanha, é revelado que mais de metade dos crimes sexuais cometidos em Portugal são contra crianças e jovens e apela-se à denúncia: "Quebre o silêncio, seja a voz das vítimas".

Em 2020, foram comunicadas às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens 712 situações de perigo relativas a casos de abuso sexual, praticamente o mesmo número do ano anterior. De acordo com o relatório anual, trata-se de crianças, na sua maioria, entre os 11 e os 14 anos e os 15 e os 17, principalmente vítimas de violação, abuso e aliciamento sexual. Mas houve também quatro casos de prostituição e 11 de pornografia infantil. “A exploração sexual e o abuso sexual das crianças podem ocorrer online, por telefone, nas ruas ou através de uma webcam, em casa ou na escola. E pode causar danos físicos e mentais que duram uma vida inteira”, acrescenta a Comissão Nacional.

Campanha do Conselho da Europa
MEDIDAS PARA PREVENIR O ABUSO

“Quando a pessoa agressora é alguém que a criança conhece, admira, em quem confia e até que ama, as vítimas têm particular dificuldade em revelar e superar o abuso. Durante os confinamentos impostos para conter a propagação de Covid-19, as crianças fechadas com as pessoas que delas abusavam tinham ainda menos hipóteses de procurar ajuda. Quando o abuso no círculo de confiança da criança é relatado, a vítima e a família passam frequentemente por dificuldades resultantes de alguma falta de preparação e de coordenação ainda existentes ao nível da justiça e dos serviços sociais nesta matéria.

Mas isto não é uma fatalidade: há muitas medidas que podem ser tomadas para prevenir abusos no círculo de confiança e muitas outras que se têm revelado eficientes na proteção das suas vítimas”, lê-se no folheto da campanha, apoiada pelo Conselho da Europa.

A edição de 2021 do Dia Europeu centra-se na promoção de tais medidas, tais como a prevenção junto de todos os grupos de crianças, em particular ao nível da educação (desde o pré-escolar) e do desporto; o desenvolvimento de materiais para sensibilizá-las e encorajá-las a falar sobre o assunto; a identificação de protocolos e técnicas de formação para detetar o abuso sexual de menores; um maior rastreio das pessoas em contacto direto com crianças; o reforço da educação sexual e relacional para crianças e jovens; a necessidade urgente de apoiar crianças que apresentam comportamentos sexuais nocivos ou o desenvolvimento de materiais de formação para forças policiais e magistrados.

De acordo com o Conselho da Europa, uma em cada cinco crianças na Europa é vítima de alguma forma de violência ou exploração sexual. A violência sexual contra as crianças pode assumir várias formas: abuso sexual no círculo familiar ou fora dele, pornografia e prostituição infantil, corrupção e solicitação sexual ou aliciamento sexual via internet.

Em 2020, a Linha Internet Segura recebeu 544 chamadas telefónicas especificamente por causa de conteúdos ilegais na internet relacionados com abusos sexuais de menores. De acordo com o último relatório da linha, que resulta de um consórcio internacional que envolve a APAV, o Centro Nacional de Cibersegurança e entidades europeias, foi possível categorizar 1773 imagens e, em cinco casos, denunciar conteúdos de abuso sexual de menores alojados em território nacional.

Segundo os dados do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), em 2020 foram detidas 119 pessoas pelo crime de abuso sexual de crianças e outras 33 por pornografia de menores, entre outros crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual.


Onde pedir ajuda

-Linha de Apoio à Vítima: 116006 (gratuita, dias úteis, das 8h às 22h) ou mensagem privada nas redes sociais da APAV

- Rede CARE APAV: care@apav.pt

-Linha Crianças em Perigo (CNPDPCJ): 961231111

-Linha Internet Segura: 800 219 090 (dias úteis, 08h00-22h00).