8.11.21

“Vamos lutar por um salário mínimo decente em todos os 27”

Pedro Cordeiro, in Expresso

Clément Beaune esteve em Portugal quinta-feira, numa visita rápida e, segundo o próprio, “amigável”. Em semana de crise política no nosso país, conferência climática em Glasgow e polémica com pescadores britânicos — deu a entrevista ao Expresso pouco depois de ter conversado com o representante do Reino Unido para o ‘Brexit’, David Frost, um dia depois de uma traineira inglesa ter sido libertada após dias de detenção, acusada de ter pescado ilegalmente em águas francesas —, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus francês reafirmou as prioridades da presidência da UE, que cabe a Paris no primeiro semestre de 2022. Beaune tem 40 anos e é apoiante de Emmanuel Macron. Ambos trabalharam no Governo durante a presidência do socialista François Hollande. No ano passado o secretário de Estado saiu do partido do Presidente, o liberal República em Marcha, para formar o Territórios de Progresso, mais à esquerda, onde também está o ministro dos Negócios Estrangeiros e da Europa, Jean-Yves Le Drian, a quem reporta.

Como correu a conversa com Frost?

Foi útil e positiva. Não é o fim da discussão, mas permitiu retomar o diálogo interrompido sobre um assunto importante. Embora a questão das pescas fosse a mais urgente, Frost mencionou outros assuntos, como o protocolo irlandês. São problemas europeus para resolver em solidariedade e unidade. Seguir-se-ão conversas entre Frost e o comissário europeu responsável pelo ‘Brexit’, Maros Sefcovic [vice-presidente da Comissão Europeia para as Relações Interinstitucionais]. Espero que a nossa posição tenha sido compreendida. Não pedimos nada de novo, só a aplicação do acordo das pescas. E precisamos de resposta rápida do lado britânico.

Londres está disposta a cumprir?

Fica-se com a impressão de que o Reino Unido quer aplicar as partes do acordo que lhe agradam e esquecer as outras. Quero ser otimista, mas não se pode ser ingénuo. Fizemos pressão forte e os britânicos voltaram ao diálogo.

Com que objetivo visita agora Portugal?

É uma visita amigável. Inclui um encontro com a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, com quem trabalhei muito nos últimos anos, sobretudo durante a presidência portuguesa da UE. Foi com as restrições da covid, mas permitiu discutir assuntos como o passe sanitário. Venho reforçar a convergência de prioridades a menos de 60 dias da presidência francesa. Há um diálogo a três entre Portugal, Espanha e França, um formato muito bom para coordenar posições, aliás próximas na maioria dos dossiês: clima, regulação digital, reforma do mercado da energia. Há tempos recomendei que se evitassem visitas turísticas a Portugal por causa da pandemia, e isso foi um pouco mal entendido. Vir cá agora transmite uma mensagem de amizade. Há poucos países na UE tão próximos como os nossos.

Aterra no meio de uma crise política. Preocupa-o uma possível mudança de Governo em Portugal?

Não me cabe comentar nem escolher, mas tenho duas convicções. Aconteça o que acontecer, trabalharemos muito bem. As posições de todos os partidos portugueses são claras. Portugal é um parceiro precioso. Há uma ligação forte entre o Presidente Emmanuel Macron e o primeiro-ministro António Costa e o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Vim mostrar que a cooperação está para lá de qualquer episódio político ou eleitoral. A segunda ideia é que temos projetos comuns que prosseguirão. Cancelar esta viagem transmitiria um sinal de distância que não quero dar. O nosso desejo é que haja novo Governo o mais depressa possível, durante a presidência francesa, para os projetos comuns poderem avançar.


O nosso desejo é que haja novo governo em Portugal o mais depressa possível, para os projetos comuns avançarem


Que objetivos geoestratégicos persegue Paris no rescaldo do acordo AUKUS entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos?

Temos várias metas em duas dimensões. Primeiro, autonomia estratégica — assunto que aproxima Portugal e França —, não contra ninguém, mas em prol de autonomia, produção industrial, política comercial mais forte e defesa europeia mais organizada. Passamos demasiado tempo a discutir conceitos sem avançar objetivos concretos. No Sahel, França e muitos outros países europeus estão a defender a Europa do terrorismo de forma concreta. Outro ponto é a cibersegurança, com metas precisas para um debate geopolítico. Quanto a parcerias essenciais, transatlântica e outras, queremos reforçá-las. Exemplo disso é a reunião entre a UE e a União Africana.

Herda a polémica sobre a decisão do Tribunal Constitucional polaco. Como se reconcilia a soberania com os tratados europeus?

Esse é um mau debate, que confunde conceitos e práticas. Cada país da UE é soberano, o que significa que a soberania permanece nacional. Cada país escolhe ser ou não membro da UE, como mostra o exemplo do ‘Brexit’. Eu acho-o infeliz, mas foi uma opção democrática. Quem é membro participa em decisões, com direitos e deveres. Ninguém é vítima da soberania coletiva, nem é de repente que se descobre que o direito comunitário prevalece sobre a soberania. Não se trata de um delírio federalista, mas de uma condição para que uma união de direitos sobreviva. Se os dirigentes acordarem uma diretiva e cada país escolher se e como aplicá-la, deixa de haver regras comuns, deixa de haver orçamento, deixa de haver UE. Em cada país os juízes aplicam o direito europeu, por vezes as suas interpretações não são iguais às do Tribunal de Justiça da UE. É complicado, mas resolve-se. No caso polaco, há o problema de as instituições europeias não considerarem o Tribunal Constitucional independente. E esse tribunal diz que artigos fundamentais, até o 1º, devem ser questionados ou a jurisprudência a esse respeito afastada. É grave. Defendemos a primazia do direito europeu e a independência da justiça.

O respeito pelo Estado de direito deve ser condição para receber fundos europeus?

Sim, há uma ligação. No Conselho Europeu de julho de 2020, por unanimidade, os chefes de Estado e de Governo adotaram um regulamento que associa o orçamento da UE e os planos de relançamento ao respeito pelo Estado de direito. É uma proteção suplementar do Estado de direito, um último recurso. Sanções orçamentais contra um Estado-membro não são desejáveis num clube político como a UE, mas são uma ferramenta útil.

Partilha uma certa desilusão com a conferência climática que decorre em Glasgow?

É cedo para estar desiludido. Seria resignar-me, prefiro lutar até ao fim. Há compromissos de descarbonização e países a melhorar as metas climáticas, como a China. São sinais políticos positivos. Neste combate, a UE é pioneira, foi a primeira a definir 2050 como prazo para a neutralidade carbónica e 2030 para uma redução de 55% nos gases com efeito de estufa. Não basta definir objetivos, há que adotar textos legislativos sector por sector. É um dos nossos principais desafios. Também precisamos de um mecanismo de ajustamento carbónico nas fronteiras, para os nossos esforços não serem postos em causa por exportadores que não respeitem as metas. Temos de ser exigentes com quem quer vender no nosso mercado.

Outro assunto da semana é a controvérsia sobre o Facebook. Ora, a regulamentação das plataformas digitais é prioridade de Paris para 2022...

É uma de três, com o clima e a Europa social, lançada pela presidência portuguesa. Queremos regras públicas comuns para os espaços digitais. Os algoritmos devem estar enquadrados, não devemos deixar vender e difundir produtos na UE sem regras nem responsabilidade. A Lei de Serviços Digitais e a Lei de Mercados Digitais vão ser votadas e aprovadas durante a presidência francesa.

E valerá a pena, quando nos Estados Unidos, sede das gigantes tecnológicas, há um mercado muito menos regulado?

O ideal seria haver regulamentos alinhados, mas não podemos esperar por isso para começar a trabalhar. A escala da UE é boa, um mercado de quase 500 milhões que interessa a muitas plataformas americanas. Imponhamos regras de responsabilidade jurídica e concorrência e talvez, como no passado, elas se tornem mundiais. Veja o exemplo da proteção de dados pessoais. Para muitas empresas o regulamento europeu é agora regra. A UE mostrou o caminho e pode voltar a fazê-lo. Temos é de atuar depressa, para proteger o mercado interno do poder excessivo de algumas plataformas.

Reforçar os direitos sociais na UE e impor a todos um salário mínimo será utópico?

Não, é possível e vamos fazê-lo. Há anos que França e Portugal trabalham por uma Europa social, que não pode ser apenas um slogan. Não faremos tudo de uma vez, mas podemos adotar textos e proteções concretas. A cimeira do Porto [2020] permitiu relançar o debate. Vamos lutar por uma diretiva que obrigue todos os 27 a terem um salário mínimo decente, não igual para todos, claro, já que as economias são diferentes. Já há uma proposta, Espanha e Itália estão connosco, podemos conseguir isto durante a presidência francesa.

A meio do semestre há presidenciais em França. Preocupa-o o risco de instabilidade? E a ascensão de um protocandidato de extrema-direita, como Éric Zemmour?

A extrema-direita é sempre ameaça ao país e à democracia, seja qual for o seu rosto. Fora isso, claro que é um desafio organizar uma presidência da UE com eleições pelo meio, mas já aconteceu em outros Estados e até em França, em 1995. Agendámos muitas iniciativas para o começo do semestre, mas durante as eleições a presidência prossegue. Haverá regras de comunicação precisas para os governantes, mas continuaremos a negociar.