18.11.21

A pobreza dos ricos

António Mega Ferreira, in Jornal de Letras

"O que faz dos países ricos países ricos é precisamente comportarem-se por vezes como se fossem pobres". António Mega Ferreira, em sua crónica Antes que o mês acabe

Poucos dias antes das eleições que puseram fim ao longo consulado da democracia-cristã na Alemanha, li no El País um artigo surpreendente sobre o atraso da “locomotiva da Europa” em relação à chamada “transição digital”. Segundo a articulista (Elena G. Sevillano), que, para a sua investigação, se apoiou em dados de agências e instituições oficiais alemãs, insuspeitas portanto, “na Alemanha, primeira economia europeia, a internet é demasiado lenta”. Porquê? Certamente porque a rede de fibra ótica apenas cobre 16% das empresas e famílias, enquanto em Portugal atinge 87%, segundo informação da Associação de Operadores de Comunicações Electrónicas (APRITEL), divulgada no mesmo dia em que o artigo em apreço saiu no jornal espanhol.

O atraso tecnológico alemão mede-se em indicadores que nos parecem anedóticos. A Alemanha ocupa hoje um dos últimos postos no ranking europeu da Administração digital, ao nível da Bulgária e da Hungria. O fax, imagine-se, continua a ser o meio privilegiado de comunicação entre serviços (há mais de 900 aparelhos ainda em funcionamento nos diversos ministérios!). É certo que o fax não é utilizado nos serviços da Chancelaria; mas isso é apenas porque ali se usa um meio ainda mais antigo: a comunicação processa-se em papel transportado por tubo pneumático…2.400 vezes por mês.

A dispersão e autonomia em matéria digital dos 16 Estados federados é considerada a principal razão para este atraso, que coloca o país na cauda da Europa-em-processo-de-digitalização. Enquanto a fibra ótica já chega a 70% dos habitantes de Colónia, Munique ou Hamburgo, apenas 3% dos residentes de Frankfurt (!) ou Estugarda estão cobertos e Berlim, a capital do país, exibe uns magros 5% de cobertura. Mas, apesar dos potenciais benefícios (na educação, na saúde, nos negócios) do aumento da velocidade de circulação e descarga de conteúdos digitais, só na legislatura que agora se inicia se projeta um investimento substancial em infraestruturas, a muito falada mas sempre adiada Digitalisierung (digitalização).

As revelações do artigo deixaram-me perplexo. Durante as últimas duas décadas, o discurso dominante nas sociedades industrializadas tendeu a inocular-nos a ideia de que sem digitalização não há futuro para as economias desenvolvidas. A “transição digital” tornou-se um slogan político de primeira grandeza, ao qual vieram juntar-se, recentemente, a transição energética e a transição climática. E, no entanto, aí está a Alemanha, motor da Europa e uma das primeiras economias exportadoras do mundo, que, na sua ronceirice prussiana, continua a ignorar em larga medida os benefícios das tecnologias de informação. Aparentemente, os alemães acreditam mais nas coisas físicas do que na desmaterialização; privilegiam a indústria em relação às tecnologias soft; acreditam que a força da exportação está na qualidade e fiabilidade dos seus produtos, não na rapidez do envio das faturas. E, fiéis ao seu modelo de desenvolvimento, continuam a crescer, a crescer, a crescer…para desespero de muitos de nós.

O que isto demonstra não é que a digitalização seja um mau caminho; mas apenas que não é o único para um desenvolvimento sustentado das sociedades humanas. Se compararmos o grau de digitalização atual da sociedade portuguesa com o da alemã, somos tentados a perguntar, como na anedota: então, porque é que a nossa economia não é mais bonita? Talvez porque o aumento exponencial da velocidade de circulação da informação é por nós aproveitado mais para o entretenimento e atividades de lazer do que para as atividades economicamente produtivas (há exceções, claro, e algumas delas de muito bom uso foram durante os confinamentos). Normalmente, somos impacientemente juvenis, demasiado rápidos, a acolher as diversas inovações tecnológicas (telemóvel, multibanco, via verde, fibra ótica), mas pouco inclinados a tirar o melhor partido delas.

Há, além disso, um efeito perverso neste processo de digitalização acelerada da sociedade. Uma espécie de “darwinismo tecnológico” instalou-se nos níveis superiores da sociedade, tendendo a ignorar a grande massa dos que não conseguem acompanhar o ritmo das inovações: uma espécie de seleção natural acabará por deixar para trás os milhões de deserdados da revolução digital. Há uns meses, em pleno processo de vacinação, um canal de televisão passou uma reportagem perturbante: numa freguesia do distrito de Vila Real residem 70 pessoas com mais de 80 anos de idade, cerca de 7% da população. Mas o motivo da reportagem era outro: é que, destes 70 anciãos, apenas sete têm telemóvel! Sendo assim, como é que os outros 63 iam ser chamados para a vacinação? E, já agora, como é que preenchem as declarações de IRS ou os numerosos formulários online que são, hoje em dia, praticamente a única forma de contactar com “os serviços”? O que mais me impressiona nesta situação é o que ela revela sobre a assustadora distância entre o “admirável mundo novo” anunciado pelas grandes cidades e o “pobre mundo velho” com que ainda deparamos, dentro ou fora dos perímetros urbanos e geracionais.

E uma reflexão subsidiária que não pode deixar de surgir: será porque investe muito menos no digital do que países mais pobres que a Alemanha é o mais rico dos países europeus? Recentemente, um familiar meu queixava-se das péssimas instalações nos teatros de Dublin, capital da afluentíssima Irlanda. Mas os irlandeses, que continuam a considerar-se um país pobre apesar de mais de mil multinacionais terem ali as suas sedes, são “agarrados” quando se trata de investimentos, como pode comprovar-se pela fraca qualidade da rede viária que cruza a ilha. O que faz dos países ricos países ricos é precisamente comportarem-se por vezes como se fossem pobres. Só os países pobres costumam esbanjar dinheiro – quer o tenham quer não.