Fábio Monteiro, in RR
Nos últimos dias, vários ativistas decidiram começar a servir ações de protesto "à la carte" – em obras de arte. “É suposto incomodar. Sabendo o que nós sabemos hoje, não é possível ir a um museu ver peças como se não estivesse nada a acontecer ao nível da emergência climática”, diz Sinan Eden, ativista do Climáximo. Pedro Pedrosa, CEO da Gaia Education, diz que a receção jocosa às ações dos ativistas é sintoma de um “elitismo mascarado” e de uma “moralidade política superior”. Estratégia adotada pelos ativistas pode "voltar-se contra uma causa que não só é justíssima como urgente”, alerta Joaquim Oliveira Caetano, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga.
Dentro ou fora dos museus, os ativistas prometem lutar pelo planeta
A receita para a confeção de um protesto, salvo ingredientes secretos de cada chef, não varia muito: tudo começa por bater uma causa como claras em castelo e adicionar ativistas. De seguida, acrescentar o fermento de algum problema social/político ou ambiental, misturar tudo até obter uma massa homogénea e espalhar numa forma. Depois, resta meter no forno e esperar. Assim que estiver cozido, é polvilhar com revolta q.b.
O problema deste tipo de pastelaria, contudo, é que nem sempre é fácil de servir. Ou de engolir. Afinal, quem é que, com uma guerra na Ucrânia a decorrer e na ressaca ainda de uma pandemia, quer trincar uma fatia de discussão sobre combustíveis fósseis?
Nas últimas duas semanas, vários ativistas decidiram começar a servir ações de protesto "à la carte" - em obras de arte. E, com algum sucesso, obrigaram meio mundo a mastigar verdades inconvenientes. Primeiro, foi uma sopa de tomate atirada ao famoso quadro “Girassóis”, de Van Gogh, na National Gallery, em Londres, por ativistas do movimento Just Stop Oil.
“O que vale mais, a arte ou a vida? Estão mais preocupados com a proteção de uma obra do que com a do planeta e das pessoas?”, perguntaram as ativistas do grupo que pretende que o Reino Unido pare de emitir licenças para exploração de combustíveis fósseis. “Milhões de famílias com fome e frio não podem pagar petróleo, não conseguem sequer aquecer uma lata de sopa”, disseram ainda.
Passados poucos dias, membros do grupo de ação climática Letze Generation (Última Geração, em português), arremessaram puré de batata a um Monet, no Museu Barberini, de Potsdam, na Alemanha. E já esta segunda-feira, os ativistas do movimento Just Stop Oil voltaram a atacar: esparramaram tartes de chocolate na estátua de cera do Rei Carlos III, no museu Madame Tussauds, em Londres.
Este tipo de protesto não é novidade. Na realidade, faz parte da ementa há muito tempo, lembra Sinan Eden, ativista do coletivo português Climáximo, à Renascença. Foi já nos finais do século XIX, com a luta das sufragistas norte-americanas, que este tipo de intervenção se tornou comum.
“[Atirar comida a obras de arte] faz parte de um grande tipo de ações. Vive no mesmo universo da última intervenção que foi feita no Tour de França [um grupo de ativistas, amarrados entre si, bloqueou a passagem dos ciclistas], assim como antes aconteceu na Fórmula 1. No século passado, as sufragistas costumavam interromper corridas de cavalos”, recorda o ativista.
A lógica por detrás deste tipo de ações é “incomodar”, provocar uma quebra na normalidade da vida. O foco, é evidente, não está na opção gastronómica. “Não se pode continuar como se fosse tudo normal. A nossa casa está a arder. Nós estamos numa emergência climática e temos de agir como se estivéssemos numa emergência”, diz Sinan.
“É suposto incomodar, porque é mesmo grave. Sabendo o que sabemos hoje, não é possível ir a um museu ver peças como se não estivesse nada a acontecer, viver uma normalidade como há 30 anos”, atira ainda.
Mas é a melhor estratégia?
Nem todos os ativistas estão do mesmo lado da barricada. Por exemplo, Vítor Nascimento tem dúvidas.
O jovem de 26 anos, doutorando em Relações Internacionais, com foco nos movimentos ambientalistas no Brasil e no Norte Global, apoia a causa, mas questiona a estratégia adotada.
“O que estão a fazer, ao entrar num espaço como um museu e a atirar uma torta na cara do Príncipe Carlos, é um crime, no final de contas. Não podem fazer isso definitivamente. É um tipo de depredação com a arte. Mas é também uma forma de chamar à atenção”, diz.
Segundo Vítor, não é necessário “danificar” alguma coisa para chamar à atenção. “Quando nos desfiles de moda, os ativistas da Extinction Rebellion entram e interrompem, deixam uma pergunta no ar.”
Por oposição, o Just Stop Oil é “um movimento mais de combate, gostam de fazer este tipo de ação, acham que só assim vão conseguir. Só isto tem um problema: cai no campo da ridicularização. Ficam vistos como movimentos agressivos, um campo perigoso.”
Portugal, note-se, não tem um histórico de ações ativistas (de qualquer causa) dentro de museus. Em 2016, uma turista esbarrou numa estátua barroca no Museu Nacional de Arte Antiga e destruiu-a – mas foi um acidente.
À Renascença, Joaquim Oliveira Caetano, diretor da instituição, conta não ter memória de incidentes com ativistas, salvo alguns happenings (acontecimentos), “pessoas que se tentaram despir dentro do museu, por exemplo, para filmarem esses momentos e propagarem na internet”.
Conforme muitos portugueses, o diretor do Museu Nacional de Arte Antiga tem vindo a acompanhar as várias ações dos ativistas ambientais. Na génese, frisa, “está um problema universal”. “Obviamente é algo que nos deve preocupar a todos e que deve ter consequências a curto-prazo, se não estaremos todos condenados.”
Joaquim Oliveira Caetano vê, porém, riscos neste tipo de ações. Danificar – mesmo que sem querer - uma obra. “É um gesto de agora, mas é um gesto que se reflete nessa obra de arte que deixa de ser visível como tal para as gerações futuras. Ou seja, estamos a arranjar um meio de pressão que é também um meio de impossibilitar a fruição de obras por gerações futuras”, explica.
Tendo o entendimento que os “museus são por definição uma instituição democrática” e que os bens ali guardados “são pertença da comunidade presente e futura”, Joaquim Caetano diz que o método de intervenção escolhido pelos ativistas é errado. “Tende a voltar-se contra uma causa que não só é justíssima como urgente.”
“Acho que o método é mal escolhido. Pode fornecer numa primeira fase um eco enorme, porque as notícias se espalham com grande rapidez. Mas são ações que a longo-prazo creio que se voltarão contra e irão por da parte contrária muitas pessoas”, explica.
O ridículo e o elitismo
Inusitadas à primeira vista, as recentes ações dos ativistas pró-ambiente foram recebidas, em Portugal, como objeto de piada de muitos comentadores e humoristas. Ricardo Araújo Pereira tanto zombou da estratégia adotada no Programa Cujo Nome Estamos Publicamente Impedidos de Dizer, emitido na SIC, assim como no seu espaço de crónica no semanário “Expresso”.
Ora, após ser detida pela polícia, uma das ativistas que atirou sopa para o quadro de Van Gogh reconheceu que foi “algo ridículo”. Mas também foi algo necessário. Para Sinan Eden o debate sobre estas intervenções nunca esteve no campo ridículo, mas no “nível do negacionismo climático”. Por outras palavras, serviu de teste do algodão: quem aceita ou não “que a nossa casa está a arder”.
“A reação psicológica [de ridicularizar] vem desse sítio. Não vem de um sítio de ignorância ou negligência. Esta não é uma tarefa delegável à Galp, EDP ou diferentes Governos. Já delegamos aos Governos e eles passaram 27 anos a não fazer nada”, diz o ativista da Climáximo.
Pedro Pedrosa, CEO da organização não-governamental Gaia Education, faz parte do grupo de pessoas que acredita no valor deste tipo de intervenções que, no dicionário dos ativistas, são conhecidas como “ação direta”. O propósito “não é substituir a proteção da arte pela proteção do clima ou políticas climáticas”, diz logo à partida.
Para justificar a importância deste tipo de protestos, o CEO da Gaia Education refere o trabalho do académico George Lakey, autor do livro “How We Win” (não editado em Portugal) - um guia para ação direta não-violenta. Pedrosa acredita, assim como Lakey, que as manifestações clássicas, salvo aquelas que mobilizam muitas pessoas, deixaram de ter impacto.
“Para uma manifestação normal de rua, aquelas tradicionais, ter um impacto político precisamos de uma percentagem da população. No caso português, seriam 200 mil pessoas. Como nos podemos recordar, desde o tempo da troika que já não vemos centenas de milhares de pessoas a manifestarem-se. E, se nos formos lembrar do impacto que tiveram essas manifestações... politicamente tiveram zero impacto. É isso que os ativistas sentem: não adianta ir para a rua, não adianta fazer petições. Os ativistas dependem cada vez mais de fazer ações diretas e muitas vezes ações de desobediência civil, que de facto tenham um impacto maior”, explica Pedro.
Portugal tem, diga-se, um histórico de ações disruptivas semelhantes. Ainda durante o período do Estado Novo, o capitão Paul Watson, fundador da Greenpeace, afundou dois baleeiros na costa portuguesa. “Não estou a dizer que é correto ou errado. Existem várias formas de fazer ativismo, todas elas têm os seus méritos. É preciso, de facto, que as ações incomodem as pessoas. Se não incomodarem as pessoas, não vão levar a lado nenhum”, diz.
Segundo o ativista, a receção jocosa às ações dos ativistas é sintoma de um “elitismo mascarado”. “Estas obras de arte de que estamos a falar são obras de arte que estão apenas acessíveis a parte da população. A maior parte dos portugueses nunca viram um Van Gogh. Muitos tiveram sorte de ver um Miró, no início da sua carreira, no Porto. Nem todos os portugueses têm acesso à arte.”
E também de uma “moralidade política superior”: “Existe um certo gozo para aquilo que é utópico, para aquilo que é idealista. As pessoas que criticam são aqueles que não fazem. Que estão no conforto do seu sofá. Estão remediados e estão bem.” Porventura, têm receitas mais doces ao seu dispor.