Bruxelas. Portugal ainda não entra em recessão no ano que vem, mas leva com o maior balde de água fria: ritmo da economia é o que mais cai na Europa entre 2022 e 2023.
A crise da energia e a inflação estão a colocar a economia portuguesa num ponto perigoso: o país já é um dos mais afetados da Europa pelo risco de pobreza energética, indicou ontem a Comissão Europeia (CE).
Mas em cima disto há um problema latente e grave a formar-se: devido à incerteza global e a um fenómeno "específico" que afeta a Península Ibérica, a seca, Portugal pode sofrer "repercussões prolongadas no abastecimento alimentar", alerta a CE no capítulo dedicado à economia portuguesa.
Ontem, sexta-feira 11, a Comissão apresentou as novas previsões de outono e o quadro é mau, seja para Portugal, seja para os restantes países da União Europeia (UE).
O caso de Portugal, uma economia que se destacou até 2019 pelo forte crescimento, boa parte dele puxado por um setor turístico muito forte, depois interrompido pela pandemia, voltou a crescer muito em 2022, mas por um motivo menos bom: a inflação insuflou a faturação das empresas e a receita fiscal.
Mas em 2023 a maior parte desse efeito deve desaparecer, colocando a economia numa rota da estagnação.
Ontem, sobre Portugal, a CE ainda disse que se pode esperar uma retoma na segunda metade de 2023, mas que no ambiente atual de guerra, inflação e enorme incerteza, isso pode não se concretizar.
Para já, o cenário central é que Portugal, depois de um crescimento anómalo em pleno ano de crise energética (puxado num primeiro momento pela inflação muito alta), que a CE estima possa chegar a 6,6% (melhor até do que a estimativa do governo, que é de 6,5% de expansão real da economia em 2022), o país deve travar a fundo.
A previsão de crescimento avançada agora por Bruxelas relativa a 2023 é de 0,7%, quase metade do que diz o governo (1,3%) na proposta de Orçamento do Estado do ano que vem (OE2023).
O maior balde de água fria no crescimento
Cálculos do Dinheiro Vivo com base nas novas previsões da Comissão mostram que Portugal não entra ainda em recessão, mas terá o maior balde de água fria no crescimento: a taxa de expansão da economia é a que mais vai cair na Europa entre o valor obtido em 2022 e o previsto em 2023: é um arrefecimento de 5,9 pontos percentuais, o maior da UE.
Eslovénia, Hungria, Grécia e Croácia também vão sentir bastante a travagem das suas economias (um abatimento de 5 pontos percentuais na taxa de crescimento verificada este ano), mas não tanto quanto Portugal.
Fora estes cinco casos de arrefecimento súbito em 2023, há já países que devem entrar em recessão: é o caso da enorme Alemanha, a maior economia da UE, da Suécia e da Letónia.
Problemas de comida e pobreza na energia
Mas um dos pontos mais raros no diagnóstico divulgado ontem é mesmo a menção a problemas prolongados na oferta de produtos alimentares em Portugal, muito por causa da seca, algo que pode prejudicar ainda mais a economia a prazo.
"Os riscos para as perspetivas de crescimento de Portugal permanecem significativamente do lado negativo à luz do ambiente global incerto e dos riscos específicos do país relacionados com a grave seca na Península Ibérica, que podem ter repercussões prolongadas no abastecimento alimentar doméstico", atira a Comissão.
Ou seja, a seca que leva a maus anos agrícolas em Portugal e Espanha (país que fornece abundantemente Portugal com bens alimentares, por exemplo) pode conduzir a um aumento dos custos destes bens importados. Mais valor em importações significa menos PIB, logo, menos crescimento real. É essa a ideia.
Excerto da análise a Portugal nas previsões económicas de outono, 11/nov/2022
© Comissão Europeia
Em cima disto, um novo tipo de pobreza que foi relevado pela inflação e a guerra. Segundo um estudo incluído nas novas previsões, Bruxelas indica que Portugal está em quinto lugar no ranking do risco de pobreza energética. Piores do que Portugal estão Lituânia, Croácia, Letónia e Roménia.
A CE define risco de pobreza energética sempre que a fatura da luz e restantes formas de energia levam 30% ou mais do orçamento familiar, algo que se transforma num problema grave a partir do momento em que as famílias deixam de conseguir pagar as contas e começam a atrasar pagamentos. Que, como sabemos, pode levar a anulação de contratos.
Esse é o ponto crítico definido no estudo. Em Portugal, cerca de 10% da população já estará nesta situação limite de pobreza energética. É cerca de um milhão de pessoas, basicamente. A percentagem é a quinta maior da Europa.
A CE faz uma projeção das condições atuais e conclui que, se nada for feito ou se alterar, a inflação e a debilidade da economia podem empurrar mais 5% da população para uma situação limiar de pobreza energética.
A Lituânia, um dos países mais vulneráveis e dependentes da energia da Rússia (assim como muitos Estados do leste europeu), pode vir a ter 35% da população em risco de pobreza energética se a situação atual não desanuviar. É o pior caso projetado no estudo.
Pobreza energética em % da população que vive no limite financeiro para conseguir pagar as contas
© Comissão Europeia
A CE diz que o efeito do aumento dos preços da energia pode criar pobreza energética, que é quando "as famílias não têm acesso aos serviços energéticos essenciais", estando previsto um "aumento da pobreza energética como resultado do aumento do custo de vida". Ou seja, há famílias que estão ou vão sentir "um aumento da dificuldade financeira devido ao aumento dos preços da energia".
Sobre o caso português, o comissário europeu da Economia, Paolo Gentiloni, em resposta a uma pergunta da Lusa, disse reconhecer "o impacto substancial [dos apoios do governo a famílias e empresas] e penso que é importante abordar os riscos de pobreza energética, que, naturalmente, existem para vários Estados-membros".
"Não é fácil [acabar com apoios], mas é o nosso apelo", diz Gentiloni
Mas acrescentou logo que "o que sempre pedimos é que estas medidas sejam tão temporárias e direcionadas quanto possível; sabemos que não é fácil, mas é o nosso apelo", atirou o italiano.
A Comissão deixou ainda outros sinais. Por exemplo, a inflação prevista para este ano e o próximo em Portugal vai ser claramente mais elevada do que dizem governo e ministro das Finanças no OE2023.
Ou seja, a destruição do poder de compra das famílias portuguesas deve ser mais agressiva do que se anda a dizer, na leitura da CE.
O agravamento dos preços (inflação) deste ano deve disparar até uns históricos 8% e no ano que vem a inflação ainda se mantém muito elevada, suavizando apenas para 5,8%. Fernando Medina, no OE2023 entregue há cerca de um mês, previu uma inflação de 7,4% em 2022 e de apenas 4% em 2023.
Além disso, há a sombra da subida dos juros. Bruxelas teme que a inflação possa chegar a 6,1% em 2023, ou seja, mais do triplo do objetivo do BCE (2%), o que deve acelerar ainda mais as taxas de juro.