Joana Gorjão Henriques, in Público
Alto Comissariado para as Migrações atendeu 561 este ano, no ano passado apenas 17. Casa Brasil e associação Crescer registam também subida. Dificuldade de apoios a quem fica sem documentos preocupa.Quando veio para Portugal, em Outubro do ano passado, o brasileiro José Maria queria arranjar trabalho e casa. “Todo o mundo tem sonhos.” Não conseguiu nem uma coisa nem outra até agora. Acabou a viver na rua, em Sacavém, durante 20 dias, depois de o dinheiro para duas semanas de hotel ter terminado. “Não passei fome, mas passei frio”, lembra.
Ainda viveu durante uns tempos numa república, mas, sem rendimentos, acabou num dos vários abrigos de emergência social por onde passou desde então. Agora, está albergado num deles na Linha de Sintra. Não tem autorização de residência, mas tem o seu processo em espera no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Continua a ser um sem-abrigo. Mas tem comida, tem apoio. “No Brasil, não há trabalho.”
Ao longo do ano, foi conseguindo biscates aqui e ali na construção civil. Só que “as portas estão fechadas”, diz, sentado perto do Rossio, onde o encontramos, este homem de 56 anos, de Minas Gerais, pai de quatro filhos já adultos. José Maria pôs um anúncio no OLX a oferecer os seus serviços. “Preciso de arrumar trabalho. Viver em abrigo não é vida”, continua, com uma garrafa de água na mão.
Não há dados oficiais actualizados do número de sem-abrigo, mas várias entidades que trabalham com esta população registam um aumento significativo de imigrantes que ficaram sem casa nos últimos tempos. No Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que atende apenas estrangeiros, os dados mostram que dispararam: foram 17 em 2021 e 561 só este ano, revela aquela instituição. Estas 561 situações de pessoas sem-abrigo distribuíram-se assim: 136 nos centros de apoio ao imigrante em Lisboa, Porto, Algarve e Beja a cidadãos da Argélia, Brasil, Marrocos e Timor-Leste; e 425 atendimentos móveis: 25 em Odivelas a indianos, cerca de 100 em Lisboa e cerca de 300 em Beja – nestas duas últimas cidades, trata-se de timorenses, situação já reportada pelo PÚBLICO.
Também a associação Crescer, que apoia sem-abrigo em Lisboa, registou um aumento do número de contactos com imigrantes. Este ano, nos primeiros seis meses, das 467 pessoas sem-abrigo com que contactaram, cerca de 25% eram estrangeiras, quando, no ano passado, em período homólogo, eram 14% de um total de 442. Nenhum destes dados inclui timorenses.
Igualmente, a Casa do Brasil, que representa a maior comunidade imigrante em Portugal, com 250 mil pessoas regularizadas, tem sentido uma subida dos pedidos de ajuda de brasileiros que ficaram sem casa: recebem agora uma média de dois semanais por e-mail, desde Agosto, atenderam presencialmente 18 casos desde Julho. Isto é algo que, segundo a presidente Cyntia de Paula, foge ao padrão dos últimos anos.
No programa de apoio ao retorno voluntário da Organização Internacional para as Migrações, têm-se registado algumas situações de sem-abrigo. Em 2021, das 113 pessoas retornadas, a percentagem de quem disse estar em situação de sem-abrigo era de 14,6%; em 2022, a percentagem do primeiro trimestre do ano – 12,5% – é mais baixa, mas até ao final de Setembro regressaram 220 pessoas, um aumento para mais do dobro. Na grande maioria, foram apoios ao regresso para o Brasil, revela a OIM.
Em 2021, existiam 9000 pessoas sem-abrigo, das quais “cerca de 4000 pessoas em situação de não terem de todo um tecto”, segundo a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), Ana Mendes Godinho. A Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA) não deu dados mais recentes, e o coordenador, Henrique Joaquim, não respondeu a questões do PÚBLICO sobre o número de estrangeiros que ficaram sem casa nos últimos tempos. O inquérito de caracterização das pessoas em situação de sem-abrigo de Dezembro de 2021 sinalizou 10% de estrangeiros.
Mais e mais barreiras
Segundo a Crescer, a maioria dos imigrantes que contactaram e que ficaram sem casa é do Sudoeste asiático, sobretudo homens (da Índia, Nepal ou Bangladesh). “São jovens entre os 20 e 25 anos, com alguns consumos de substâncias psicoactivas e muitos deles em situação irregular. É uma população mais jovem do que as pessoas que costumamos apoiar”, contextualiza Américo Nave, dirigente da associação.
Esta questão da regularização traz consigo outros problemas: “Quem quiser fazer tratamentos não consegue, também não consegue ser atendido pela Santa Casa da Misericórdia, o que faz com que neste momento só consigamos encaminhar para o quartel de Santa Bárbara.” Ou seja, se não há vagas em centros de acolhimento para “a maior parte das pessoas”, para quem está em situação irregular as dificuldades são acrescidas, sublinha.
Esta é uma realidade que “não é nova”, mas tem crescido. “Apoiamos duas mil pessoas por ano. Sentimos que cada vez há mais pedidos de ajuda, pessoas em situação de pobreza, pessoas a pedir apoio porque vão ser despejadas e muitos mais pedidos de comida. Está a crescer de forma muito rápida”, afirma. Aos contactos que costumam ter na rua, junta-se agora a subida dos por e-mail, “pessoas que tinham alguma capacidade, mas que por variados motivos se encontram em maiores dificuldades”.
Para Américo Nave, esta subida tem que ver “com esta crise”, em que as rendas, a gasolina, os bens alimentares aumentam. Isso “tem impacto na vida das pessoas”.
Solange Ascensão, coordenadora do grupo de Lisboa ocidental da Crescer, conta que “as histórias são variadas, mas uma boa fatia veio da agricultura ou restauração”. Algumas pessoas já tiveram autorização de residência, mas ficaram sem ela por abandonarem o trabalho porque as condições não eram as esperadas, ou por serem expostas a substâncias prejudiciais à saúde.
“Como estão sem rede de suporte, não conseguem regularizar-se, o que agrava o acesso a outras respostas. Isso vai condicionando o acesso a respostas de alojamento de emergência, que são atribuídas a quem tem um gestor de caso [acompanhamento técnico]. Gera-se um ciclo de exclusão que perpetua e aumenta os graus de vulnerabilidade. Por isso, as pessoas que já estão marginalizadas acabam por ficar ainda mais, com os acessos às respostas a terem cada vez mais barreiras, como se se criassem cada vez mais degraus”, continua. “Os estudos mostram que, quando a pessoa tem acesso a uma casa, consegue organizar-se noutras esferas da sua vida, mas, quando está na rua, é muito difícil que as outras questões possam ser resolvidas.”
O relato de Cyntia de Paula vai no sentido de a Casa do Brasil se estar a deparar com um fenómeno novo, pois têm recebido pessoas que chegaram há pouco tempo e não conseguem arrendar casa ou quarto, nem “pagar hostel”. Teme a crise que se adivinha. “Percebemos que muita gente vem iludida, acha que vai chegar e arranjar trabalho, casa, não tem noção da dificuldade.”
Ressalvando que os números de sem-abrigo são “difíceis” de obter, a Cáritas diz que tem apoiado timorenses que ficaram sem casa. Os serviços têm sentido pressão no atendimento, com vários estrangeiros na fila, nomeadamente do Brasil, Paquistão e Timor-Leste. “Tentamos arranjar soluções”, refere Rita Valadas, a presidente.
Segundo o ACM, “sempre que tem conhecimento de um migrante em situação de sem-abrigo, ou potencial situação de sem-abrigo, activa os procedimentos estabelecidos com as várias entidades competentes, nomeadamente o Instituto de Segurança Social e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, articulando a sinalização e o encaminhamento para respostas de emergência, através do ISS, da Unidade de Atendimento à Pessoa em Situação de Sem-Abrigo e da Linha Nacional de Emergência Social da Segurança Social”.
Questionado sobre que medidas pretende tomar relativamente a esta subida e o que tenciona fazer para apoiar estes sem-abrigo estrangeiros, além dos timorenses, o gabinete da secretária de Estado para as Migrações repetiu o que já disse antes e de que o PÚBLICO tem dado nota: o “trabalho em desenvolvimento já permitiu o realojamento de 579 cidadãos timorenses e a integração no mercado de trabalho de outros 161”.
Acrescentou “que o Governo continua empenhado na melhoria das medidas de acolhimento e integração de todos os migrantes, privilegiando uma actuação concertada das entidades públicas com competência nesta matéria, que vise não só o realojamento de cidadãos identificados em situação de vulnerabilidade, como também o apoio na procura de emprego e em medidas de integração activa na sociedade, tendo em vista a redução de vulnerabilidades identificadas”.