21.11.22

“As instituições de encarceramento são racistas”


Cristina Roldão(texto) e Diana Tinoco(fotografia), in Público online

Angela Davis e Gina Dent visitaram a cadeia do Linhó, falaram para uma plateia em Lisboa, estiveram na Cova da Moura e foram entrevistadas pela académica Cristina Roldão, que é colunista do PÚBLICO.

Angela Davis e Gina Dent estiveram em Portugal a convite do Leffest — Lisbon & Sintra Film Festival, no qual na passada terça-feira, no Teatro Tivoli, falaram sobre abolicionismo penal para uma sala cheia e entusiasmada. Lá fora, a voz de ativistas abolicionistas e faixas de apoio ao caso de Danijoy, Daniel e Miguel lembravam a concretude do que se ia discutir naquela noite. Um dos seus panfletos chegaria às mãos de Angela Davis. Esta partilharia com a audiência a sua visita ao Estabelecimento Prisional do Linhó, onde a maioria dos homens presos é negra. Com eles discutiu o filme Killer of Sheep de Charles Burnett, que passou no festival na secção L.A. Rebellion.

Antes de voltar a casa, Angela Davis e Gina Dent estiveram num encontro com ativistas do movimento negro e antirracista, em solidariedade com Alice Santos (mãe de Danijoy Pontes) e Cláudia Simões, ambas presentes, e com Deisom Camará e Mamadou Ba. Numa semana marcada pelo debate sobre o discurso de ódio e discriminação na polícia, o tema da violência policial e carcerária trazido por Angela Davis e Gina Dent dificilmente poderia ter sido mais propício.

Enquanto cá estiveram, procuraram desnaturalizar a existência da prisão, mostrar o encadeamento entre o “complexo industrial prisional” e o capitalismo, o racismo e o patriarcado, rebater os argumentos de quem desconhece que o que enche as cadeias são pequenas infrações e não o crime violento. Explicar a diferença entre o que no seu mais recente livro, Abolition. Feminism. Now., consideram ser “reformas reformistas” e passos intermédios para a abolição. Inspiraram-nos a imaginar um mundo sem prisões.

Antes de entrarmos na questão abolicionista propriamente dita, ou talvez já entrando nela, e sabendo que esta é a vossa primeira visita a Portugal, perguntava-vos como é que este país, a sua história, as suas lutas políticas chegaram primeiramente até vocês?
Angela Davis — Existem inúmeras referências para mim que, claro, remontam aos movimentos de libertação africanos e à luta pela descolonização de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe. Essa foi a minha primeira grande referência sobre Portugal — Portugal enquanto um império colonial, contra o qual lutavam forças como o MPLA e o PAIGC. E quero enfatizar que, para o movimento negro nos EUA, a luta contra o colonialismo português foi sempre uma grande referência, mesmo ao nível da nossa organização local. Hoje, quando cheguei ao Bairro da Cova da Moura vi um mural maravilhoso do Amílcar Cabral, e no encontro em que lá participei alguém discutia o impacto do seu pensamento. Para mim, o que era especialmente impressionante era o modo como ele reconhecia a importância do envolvimento das mulheres na luta, a importância da sua liderança, muito antes de isso se ter tornado um tema político central. Eu sempre me senti atraída pelas suas ideias, pelos movimentos políticos em Cabo Verde, Guiné-Bissau, precisamente por causa disso.

Gina Dent — No meu caso, se calhar vou falar através de um outro ângulo, e que reporta à minha relação e da Angela com o Brasil. O meu primeiro entendimento sobre a colonização portuguesa e sobre a América Latina surge enquanto eu fazia Estudos Portugueses, sobretudo, Estudos Brasileiros, e aprendia português do Brasil. Foi assim que vim a perceber, através desse processo de aprendizagem, do estudo da língua, a forma como o racismo linguístico operava. Comecei ali a aprender, muito rapidamente, sobre o racismo português, através da racialização da língua, de como o português do Brasil é tratado de forma diferente. Aprendi muito sobre Portugal através do estudo da literatura brasileira. Vários anos depois, eu e a Angela começámos a viajar para lá e a ensinar lá. Foi no contexto desse mundo que começou o meu contacto com Portugal, com o lusotropicalismo, com a romantização do passado colonial. Aliás, esses estudos foram quase a minha introdução à análise do racismo, pois foram antes de enveredar pelos Estudos Negros dos EUA.

Angela Davis — E hoje não sei se posso dizer que tenho um conhecimento profundo sobre os movimentos em Portugal, mas, como é óbvio, ouvimos falar muito de Portugal durante a era do Occupy Wall Street. Os movimentos no Norte de África e em Portugal [Primavera Árabe e Que se Lixe a Troika] ajudaram a inspirar um envolvimento mais global com o anticapitalismo. E sei que há um movimento bastante evidente contra a violência policial, a violência policial racista. É uma questão que atravessa toda a Europa, todo o mundo. Eu e a Gina temos estado envolvidas em reuniões com movimentos semelhantes na Alemanha, em França e, há algum tempo, no Reino Unido. Mas eu não sei se poderia ter imaginado a vibração e a seriedade do tipo de questões que foram colocadas no encontro que tivemos esta noite com o movimento negro e antirracista, do qual tínhamos algumas informações e sabíamos de algumas pessoas através da Ruth Wilson Gilmore [investigadora e abolicionista penal norte-americana].

Uma das questões colocadas no encontro desta quinta-feira prendia-se com o facto de nem sempre ser fácil conjugar o abolicionismo e o combate ao racismo. Em Portugal, por exemplo, é difícil provar o crime de racismo. Do total de queixas que são feitas por discriminação racial perto de 80% são arquivadas e só uma percentagem muito residual leva a alguma condenação, normalmente uma pequena multa ou uma admoestação. Há um sentimento de impunidade que, em parte, mobiliza as pessoas.
Angela Davis — Eu costumava ficar impressionada com o facto de certas manifestações de racismo terem sido criminalizadas na Europa, como em França, por exemplo. Mas se olharmos agora para a França, podemo-nos perguntar se o facto de ter sido criminalizado trouxe alguma mudança. Eu acho que, provavelmente, não — o que não quer dizer que não queiramos eliminar o racismo. É a questão do papel da criminalização na eliminação do racismo, do patriarcado, a discriminação contra as pessoas transexuais, através da simples criminalização das expressões discriminatórias. Parece-me que se deixa a estrutura intacta e enquanto a estrutura for deixada intacta vamos continuar a ver manifestações de racismo. Isso significa que é preciso pensar noutras formas de garantir a eliminação do racismo, formas que não dependam da criminalização, que nunca funcionou realmente para nada. Nem sequer funciona para crimes como o homicídio e assim por diante. Então, porque se esperaria que funcionasse? Porque se esperaria que fosse um método para iniciar o processo de eliminação do racismo do nosso percurso histórico?

Gina Dent — Parte do problema é que a criminalização funciona ao nível da individualização da responsabilidade. Não dá resposta ao racismo estrutural que penetra todos os níveis do sistema jurídico penal e do sistema de punição e policiamento mais geral; assim como não dá resposta ao modo como a lógica carcerária se vai distribuindo por todo o lado, incluindo escolas e outros locais onde não esperamos encontrar a sua presença. Se nós imaginamos que a criminalização e penas mais pesadas podem ser equiparadas a justiça, temos dois problemas: destacar indivíduos específicos e reforçar o sistema que estamos a enfrentar. Obviamente que não será a primeira prioridade descriminalizar ou permitir que as pessoas que cometem formas racistas de violência não sejam presas. Mas precisamos de ter um movimento que compreenda simultaneamente que estamos a tentar “des-carcealizar” e que estamos também a reconhecer que nenhuma cura, nem uma dita “reabilitação” pode realmente acontecer dentro dessas estruturas. Então, como responsabilizamos aqueles que cometem este tipo de danos? Que poderiam eles fazer que seria construtivo para as comunidades que prejudicaram? E penso que isso nos leva a uma resposta diferente da do encarceramento.

Angela Davis — Tem havido muita discussão sobre a necessidade de outros métodos para alcançar a justiça, a justiça transformadora, ou, como algumas pessoas chamam, justiça restaurativa. Portanto, dizer que a criminalização não é o caminho a seguir não é o mesmo que argumentar que não é importante desenvolver estratégias para eliminar o racismo, mas antes que a criminalização de pessoas que são racistas irá, muito provavelmente, criar ainda mais racismo. As instituições de encarceramento são instituições completamente racistas. Essa é a sua própria natureza. Então, o que significa utilizar uma instituição racista para combater o racismo por parte de certos indivíduos? E penso que o facto de isso ser sempre apenas uma solução individual deixa de fora o nível ideológico. Não aborda a necessidade de uma educação profunda da população no que respeita ao racismo. Na verdade, isso começou a acontecer apenas no contexto das mobilizações em torno do assassinato de George Floyd. Aí estava-se a desenvolver uma espécie de educação popular em torno de questões como o racismo estrutural em oposição ao racismo individual e penso que estas serão provavelmente estratégias mais eficazes a longo prazo do que estratégias de curto alcance, como as que procuram pôr pessoas na prisão ou criminalizar pessoas por se envolverem em actos de racismo.

Gina Dent — É essa discussão que ajuda as pessoas a desenvolver estratégias que não são vingativas e que nos permitem afastar da lógica carcerária, que também está em nós — nós fazemos também parte dessa cultura. A violência de Estado acontece mais às pessoas das comunidades negras, mas há pessoas negras que pela sua posição privilegiada de classe vivem separadas das massas de pessoas pobres. Não é apenas um problema negro, é também um problema de pessoas pobres. Em reuniões como a desta noite [quinta-feira, na Cova da Moura], com a Alice Santos, mãe de Danijoy [que morreu em 2021 no Estabelecimento Prisional de Lisboa], e Cláudia Simões [agredida em 2020 na Amadora pelo agente da PSP Carlos Canha], interessa discutir como é que, a partir destes casos individuais, podemos desenvolver algo que seja uma estratégia mais libertadora para toda a gente e que funcione para o futuro. Portanto, não se trata nunca de ignorar estes danos particulares, este tipo de casos. É estar com as pessoas que foram prejudicadas e ao mesmo tempo garantir que as respostas também nos vão permitir construir o tipo de cultura em que queremos viver para não sentirmos necessidade do encarceramento, para que não dependamos da violência do Estado.

Angela Davis — Não devemos assumir que as estratégias já foram descobertas — devemos permitir a criatividade no movimento, a experimentação. Sabemos que a criminalização dificilmente tem levado a algum lugar, exceto encher as prisões e prisões com cada vez mais pessoas negras, pessoas racializadas. Porque não tentar descobrir outros métodos? Por exemplo, o método da verdade e reconciliação na África do Sul. É claro que tem havido muitas críticas a esse respeito, mas lembro-me do caso de uma mulher a quem um polícia havia matado o filho e o marido durante o regime do apartheid na África do Sul. Perante a comissão verdade e reconciliação, ela disse: “Destruíste tudo o que eu amava na minha vida e, por isso, o que eu gostava era que me visitasses de duas em duas semanas.” Ela estava a reconhecer que não a ia ajudar em nada pôr na prisão aquele terrível polícia branco. É difícil imaginar que ela não tenha inicialmente pensado em retaliação. Penso que, por vezes, temos de parar e seguir esses instintos. Estou também a pensar no caso de Linda Biehl e do marido que acabaram por adotar um dos rapazes que estiveram envolvidos no assassinato da sua filha na África do Sul. Acredito que devemos avançar numa direção em que possamos levar as pessoas a questionarem-se sobre a necessidade de vingança, que por vezes parece tão espontânea, e a reconhecer que a retaliação é precisamente aquilo contra que temos lutado. Esse é o trabalho do Estado, é como o Estado funciona, e acabamos por internalizar isso e por assumir que esse é o único caminho a seguir.

A ideia de que o movimento antirracista ignora as questões de classe e do capitalismo, que é “identitarista”, é frequentemente avançada no espaço público. Gostaria de vos ouvir falar um pouco sobre como a “tradição radical negra” e a ideia de “capital racial”, ambas noções de Cedric Robinson, refletem ou não, até bem antes do conceito de interseccionalidade, essa capacidade de articular múltiplas relações de poder.
Angela Davis — Acho que nunca devemos aceitar a interseccionalidade como o termo global e único para descrever o complexo processo de pensar as questões em termos da sua relacionalidade. Tal como o termo “diversidade”, a interseccionalidade por vezes tem-se tornado mais num sinal de que se é antirracista ou de que se é antissexista. Uma categoria que faz um bom trabalho em dada altura não o fará eternamente, é contextual e contingente. Se olharmos para a história dos esforços para pensar relacionalmente sobre raça, classe e género, isso tem vindo a acontecer desde o século XIX, não nos podemos limitar pelo conceito de interseccionalidade, nem de capitalismo racial, é preciso ir mais longe. O conceito de capitalismo racial pode ser um ponto de partida, particularmente agora, numa altura em que o movimento operário e os sindicatos estão em declínio e assim por diante. Mas também penso que pode ser uma forma de não fazer o trabalho analítico que nos permitirá avançar. Nomear simplesmente “capitalismo racial” ou “interseccionalidade” não nos leva muito longe.

Gina Dent — Mas isso é o que acontece com toda a linguagem. Luta-se pela linguagem, depois essa linguagem vem a significar algo diferente e precisamos de uma nova linguagem — é um problema constante. E, por isso, não penso que o termo “interseccionalidade” em particular seja o único que tenha sido usado dessa forma. A questão é que devemos reconhecer quando um termo já não faz o trabalho que deveria, e devemos ser capazes de analisar isso. Infelizmente, tanto no ativismo como na academia, tende-se a um apegamento a termos e à nossa linguagem como se elas fizessem o trabalho de pensar por nós. E não gastamos tempo suficiente a tentar realmente fazer o que diz a Mari Matsuda, teórica dos Estudos Críticos da Raça: “Faz a outra pergunta.” Se alguém já consegue compreender o racismo, então é preciso fazer a pergunta seguinte, sobre o género, por exemplo. Se já é possível pensar em termos de classe, então deve fazer uma pergunta sobre raça. A questão é que é preciso ter o hábito de fazer mais perguntas.

Com o conceito de “capital racial” aprendemos a dizer muito eficientemente o que Stuart Hall levou muitos anos a descrever. Ele dizia que “a raça é a modalidade através da qual a classe é vivida”, que é uma frase sua muito citada. Penso que ainda nos ajuda a compreender algumas coisas, mas não tudo. Hoje, quando as pessoas dizem “capitalismo racial”, a utilização dessa noção não dialoga especificamente com o trabalho do Cedric Robinson, nem parte de um envolvimento intenso com o marxismo que expulsou certos tipos de tradições e recusou certos tipos de questões. O capitalismo racial agora também pode soar como uma atribuição vazia, em vez de uma descrição de processos que compreendemos bem. Por isso, penso que a crítica que o Robinson trouxe, assim como o Stuart Hall, que ambos trouxeram para as correntes marxistas, são realmente importantes para nós. Não tanto para dizer que existe capitalismo racial, sabemos que ele existe, mas para pensar como funciona numa situação particular.

Aqui em Portugal, discutíamos esta noite [quinta-feira] na Cova da Moura sobre a destruição colonial, como isso fez com que as pessoas tivessem de emigrar. Mas depois não tiveram direito à nacionalidade portuguesa, nem a nenhum tipo de reparação em dinheiro ou em lugares para viver aqui. Mesmo que a violência colonial tenha sido imposta pelos colonos e que as geografias que os colonos impuseram estejam do outro lado do mundo, os espaços onde as pessoas negras vivem hoje nunca são regularizados e, como não são considerados parte oficial da cidade, se calhar há vários serviços que não entram lá, mas a polícia entra. Portanto, precisamos de usar uma compreensão do capitalismo racial para começar a “desempacotar” estas coisas.

É preciso pensar noutras formas de garantir a eliminação do racismo, formas que não dependam da criminalização, que nunca funcionou para nadaAngela Davis

Angela Davis — Talvez deva simplesmente salientar que à medida que o capitalismo se tornou mais poderoso e se insinuou em todos os aspetos das nossas vidas, há uma tendência para assumir que o capitalismo será o sistema económico permanente. E, claro, conhecemos o papel da ideologia. Marx escreveu sobre como o futuro do capitalismo está muito dependente da capacidade de a sua burguesia insistir que ele é o único sistema do futuro, que não há nenhuma história subjacente, que o capitalismo é o modo permanente de estruturação das relações económicas. Simultaneamente, tem havido um grande progresso na luta contra o racismo e, se tivéssemos tempo, poderia falar de como o movimento laboral e a luta contra o racismo se interligaram ao longo dos anos, por exemplo, com mulheres negras como a Claudia Jones, Lorraine Hansberry e Louise Patterson, a quem devemos reconhecer o papel que desempenharam.

Mas penso que este é um momento em que temos de insistir em incorporar uma compreensão do capitalismo nas nossas estratégias para derrotar o racismo — porque, caso contrário, acabamos por ficar com o capitalismo negro, acabamos nas exigências por um aumento da riqueza intergeracional dos negros. Ainda no outro dia conversávamos sobre como a reivindicação da necessidade da riqueza intergeracional se insinua tão facilmente no ativismo e exigências antirracistas, quando se trata apenas de um indivíduo e não se trata de mudar as instituições. Trata-se, basicamente, de dar mais dinheiro aos indivíduos. É preciso reconhecer, antes de mais, que as pessoas escravizadas foram a base para o desenvolvimento do capitalismo no mundo, não só em certas partes do mundo, mas em todo o mundo; e que o colonialismo e a escravatura andam de mãos dadas. Se nós mantivermos essas relações na nossa estratégia antirracista, então é quase certo que iremos reproduzir os próprios mecanismos que são responsáveis pelo racismo.

*Texto actualizado às 11h20 de 20 de Novembro com a informação de que a autora da entrevista, Cristina Roldão, é colunista do PÚBLICO; e às 19h15, substituindo a formulação “Em Portugal, por exemplo, o racismo não é considerado um crime” por “Em Portugal, por exemplo, é difícil provar o crime de racismo”.