15.11.22

Sem-abrigo: “Não sou um rato que gosta de viver num buraco”

André Borges Vieira, Cristiana Faria Moreira (Texto), Rui Oliveira e Nuno Ferreira Santos, in Público online

São empurrados para a rua pelo álcool e pela droga, pela falta de saúde mental, pela violência, pela precariedade. Em Lisboa e no Porto, surgem novos sem-abrigo e a procura por alimentação dispara.

As tendas alinham-se debaixo do viaduto de Santa Apolónia. Entre algumas, forma-se uma espécie de sala de estar. Com cadeiras em roda, uma mesa ao meio, mantas, móveis e outras bugigangas encontradas pela rua e que podem dar jeito ou algum dinheiro. Há um pinheiro de Natal e um presépio. Os vasos de suculentas adornam a entrada de casa. É uma noite fria, desconfortável, de Novembro. Chove torrencialmente. Passa da meia-noite e Tânia e Márcio ainda não dormem, apesar de a hora do despertar ser dali a poucas horas.

Sentam-se em duas cadeiras, encasacados e cobertos por uma manta, quando a equipa da Comunidade Vida e Paz lhes vem deixar dois sacos de ceias. A vida deste casal de brasileiros nem sempre foi esta. Arrendavam um T0 na Amora, na margem Sul. Trabalhavam. A vida estava encaminhada. Até que um dia, de passeio pelo Cais do Sodré, foram abordados por um casal que lhes fez uma proposta que pareceu irrecusável: ganhar 80 euros por dia nas vindimas durante alguns meses.

Procuravam pessoas brasileiras, porque era gente de trabalho. Foi para isso que Márcio André, de 42 anos, imigrou para Portugal há mais de uma década. E que Tânia Melo, de 48, também o fez há quase dois anos. Queriam uma vida melhor. Por isso, a oportunidade que estava ali à frente deles pareceu caída do céu: podiam juntar dinheiro e ter uma vida mais desafogada.

“Deixámos tudo.” Deixaram o trabalho e a casa. Entraram numa carrinha com mais trabalhadores, quase todos imigrantes mexicanos, indianos, paquistaneses e bengalis, até Belmonte. Era ali que ficariam hospedados numa quinta, que depressa se transformou num lugar de “escravidão”. “Chegámos lá e era um serviço escravo”, recorda Tânia. “A gente levantava às três horas da manhã porque o trabalho era a uns 300 quilómetros de distância. Às dez para as quatro, a carrinha pegava a gente.”

Chegavam pelas sete da manhã, saíam pelas 17h e regressavam a Belmonte já perto das 20h. “Ele só dava pão para a gente comer e a gente trabalhava as oito horas nessa colheita de uva”, conta Tânia.

Ficaram por lá dois meses. Foram comendo com as poupanças que tinham. Eram dos poucos que tinham telemóvel. A proposta de ganhar 80 euros por dia passou a 300 euros por mês, para depois passar a nada. “A gente não recebeu nada. Nem um cêntimo.”

Não lhes restou senão vir embora. “Tinha 50 euros no meu cartão. Os bilhetes de comboio para Lisboa eram a 19 euros cada um”, recorda Márcio. Chegaram a Santa Apolónia com pouco mais de dez euros no bolso. “Se não fosse esse empecilho, estava tudo bem. Gastámos a nossa reserva e voltámos sem nada. A gente só tinha dinheiro para chegar até aqui.”

Não lhes restou senão a rua. É por isso que Márcio se indigna. Imigrante há 12 anos, pedreiro de profissão, já ajudou a construir muitas cidades. “Viemos para cá para descobrir a rua.” Nunca se tinham visto nessa situação.

Ainda não têm dinheiro para arrendar uma casa ou um quarto porque lhes pedem duas e três rendas de uma vez. Por agora, vivem na rua, mas acreditam que a vida se está a compor. Ambos estão a trabalhar, ela como costureira, ele como pedreiro numa obra. Levantam-se às 6h30 todos os dias. Comem com o apoio de instituições. Tomam banho noutra associação, onde há poucas vagas para tal. Têm um garrafão de água para pelo menos Márcio tirar a poeira do corpo quando chega do trabalho.
Mais pessoas nas ruas

“As pessoas com quem interagimos têm condições muito diferentes. Há pessoas que estão em apartamentos, há pessoas em casas ocupadas e outras que estão na rua”, diz Tiago Ribeiro, coordenador da volta C da Comunidade Vida e Paz, talvez a que mais cidade percorre — dos Olivais ao Oriente, passando por Santa Apolónia e pela Baixa.

Tânia e Márcio estão ali há cerca de três meses e fazem parte do número de pessoas em situação de sem-abrigo da capital, que as estatísticas ainda não incluem. Olhando para os dados do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo de 2021, a população nesta condição em Lisboa parece ter diminuído: passou de 447, em 2020, para as 307 pessoas sem tecto, ou seja, na rua, e das 3333 para as 3021 pessoas sem casa, isto é, que estão alojadas em albergues, casas de transição e outros lugares de acolhimento.

No Porto, a câmara também não nota grandes alterações. O contexto nacional, porém, diz outra coisa. Há três semanas, a ministra da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, avançou que existem em Portugal 9000 pessoas “que não têm casa”, das quais “cerca de 4000 pessoas estão em situação de não terem de todo um tecto”. O que significa que, de 2020 para 2021, mais 791 pessoas chegaram à rua.

No fio da navalha

Durante a noite ou durante o dia, é visível no Porto e em Lisboa a ocupação de novas posições por pessoas em situação de sem-abrigo. Atrás de cartões, dentro de tendas ou de carros, há quem esteja a chegar às ruas pela primeira vez e em idades cada vez mais baixas, como relata quem já está há mais tempo.

“Há aqui várias questões, desde os empregos precários, à questão também de consumos de substâncias. Há muitas pessoas jovens que estão a consumir, há problemas familiares que os levam a ir parar à rua”, enquadra Renata Alves. Como um jovem de 21 anos, que encontrámos no Oriente, a viver na rua há quatro meses. “Chateei-me com a minha mãe e acabei por vir para a rua. Tem sido difícil, mas vamos vivendo. Faço umas horas de trabalho”, resumiu, sem querer mais conversas.

No Porto, Filipe, nome fictício, chegou à rua há pouco mais de 15 dias. Aos 40 anos, ficou sem sítio onde morar, depois de ficar desempregado e de um relacionamento que não correu bem. Já procurou ajuda de instituições, mas o que até agora conseguiu não é o suficiente para poder voltar à situação em que estava ainda há pouco tempo.

Agora, começa a dar o primeiro passo no sentido contrário ao que agora segue. Começou a trabalhar num restaurante há três dias. “Estou a ver se me consigo restabelecer.”

Pouco antes das 22h, na Boavista, Rui, nome fictício, é uma das pessoas que se aproximam de duas carrinhas da Casa, estacionadas perto do local onde tem dormido nos últimos meses, debaixo de um prédio, para recolher o seu jantar.

“Só preciso de um tecto porque trabalho depois eu consigo arranjar”, diz o homem, que até há cerca de um ano e meio vivia numa casa e tinha um emprego. Hoje, não teria sequer o que comer se não contasse com a ajuda de instituições.

Aos 47 anos, ficou desempregado. Na mesma altura, teve “uma recaída”. Voltou a ser consumido pela dependência das drogas. Deixou de conseguir pagar a renda. E caiu na rua. Não é sítio onde queira ficar por muito tempo. Acredita que, se voltar a estar empregado, conseguirá reerguer-se. Só que, para isso, considera fundamental ter um tecto. “Assim, eu não consigo dormir, não consigo descansar. Tenho de ter a minha mente direita, correcta, tomar um banho…”, sublinha.

Já pediu para ser colocado nos Albergues do Porto. Mas dizem-lhe que não há vagas. “Não há vagas porquê? Porque há pessoas que já lá estão há bastante tempo e não tomam a decisão de saírem. Depois enche e não há vagas para os outros. Acho que o albergue é para três meses ou seis e depois é dar o salto”, desabafa. Os albergues têm capacidade para perto de uma centena de pessoas, entre o pólo da rua Mártires da Liberdade e Campanhã. O tempo máximo de estadia é de seis meses. Porém, há utentes que já lá estão há vários anos.

Para Rui, esta seria a solução mais imediata, mas não a ideal. “Há pelo menos três tipos de sem-abrigo: os adictos à droga, os adictos à rua e há os que vieram para a rua por um azar, mas que querem voltar à sociedade”, atira. Por isso, acredita que deveriam ser criadas soluções mais adequadas, de acordo com a especificidade de cada caso: “Diferentes respostas para casos diferentes. Tem de funcionar como um hospital, que está dividido por secções.”
Número de refeições servidas triplicou

Não há ainda dados para a realidade de 2022, mas nas ruas notam-se já os efeitos da inflação, pois têm aparecido cada vez mais famílias que, não estando sem abrigo, pedem ajuda para comer. No Porto, a Associação Casa, que, além do trabalho de rua, também gere os três restaurantes solidários da cidade, tem vindo a verificar um aumento consistente do número de pessoas em situação de sem-abrigo nas ruas, incluindo um aumento da proporção das pessoas sem tecto em relação às pessoas sem casa.

Ao mesmo tempo, adianta, também têm aumentado os “pedidos de ajuda de famílias”. “Muitas” das pessoas em situação de sem-abrigo “são estrangeiras”, e, na maioria dos casos, “têm documentos”. O número de refeições distribuídas aumentou para o triplo desde a pandemia e tem vindo a agravar-se este ano. “Estamos a distribuir refeições a pessoas em situação de sem-abrigo, mas também a famílias que não têm meios de subsistirem sozinhas. Neste momento, estamos a distribuir uma média de 150 refeições diárias apenas no projecto de equipas de rua. Fazemos ronda em locais da cidade não servidos pelos restaurantes solidários. Em alguns pontos da Boavista, o aumento mais do que triplicou”, refere a associação. A câmara diz, contudo, que nos restaurantes solidários não houve alteração no número de refeições servidas em relação a 2021. Nos três que a Casa gere, são distribuídas 550 refeições por dia.

Sem perspectiva de um cenário optimista a curto prazo, está António, que espera pela sua vez numa fila com várias dezenas de pessoas por uma embalagem com o jantar daquela noite. Tem 32 anos e nasceu no Algarve, mas já está no Porto há vários anos. Desempregado, mora num carro há cerca de meio ano. Não tem suporte familiar. Depende do dinheiro do RSI e da ajuda de instituições. Nunca tentou candidatar-se a um lugar num albergue. “Não é ambiente para mim.” Os motivos são os mesmos apresentados por Rui. “Preferia um quarto ou uma casa num bairro social.” Diz já se ter candidatado duas vezes, mas sem qualquer sucesso. Continua a aguardar, enquanto procura um emprego.

Na mesma fila está Sofia, de 32 anos. Actualmente, tem um tecto, mas teme poder vir a perdê-lo a curto prazo. Durante a pandemia, infectada com covid, sem poder trabalhar, ficou sem emprego. Nunca mais conseguiu outro. Tinha trocado Lisboa pelo Porto há pouco tempo. Sem qualquer suporte familiar, encontra-se numa situação financeira que a obriga a depender de instituições como a Casa para poder fazer as suas refeições.
Famílias pedem ajuda

Em Lisboa, os voluntários da volta C levam na carrinha 140 ceias, com duas sandes, um iogurte, uns queijinhos ou um doce. São estes voluntários, na estrada todos os dias (embora com diferentes equipas), que notam logo as dinâmicas do que acontece na rua. “Há dias em que se vê um aumento, outros dias diminui. As voltas são dinâmicas”, acrescenta Eliana Ludovico, voluntária há vários anos, que relembra o grupo “de 30 ou 40 pessoas” que encontrou há um mês na zona da Sé, e que veio a perceber que eram os timorenses que chegaram a Portugal com falsas promessas de trabalho e ficaram sem abrigo.

No Oriente, por exemplo, é onde notam maior procura por pessoas com dificuldades em comprar bens alimentares. São sobretudo famílias com filhos, que pedem reforços.

Do início do ano e até Agosto, “houve uma estabilização, mas com esta crise financeira tem vindo a aumentar o número de pessoas que estão em situação de sem-abrigo”, observa Renata Alves, directora-geral da Comunidade Vida e Paz.

“Em termos de famílias em situação de vulnerabilidade, temos assistido efectivamente a um aumento de pessoas, de famílias que estão muito vulneráveis e vão ao encontro das nossas carrinhas. Estávamos a distribuir 426 ceias por noite. Neste momento, estamos na ordem das 480, 500”, enquadra a responsável.

Mais jovens na rua

Todas as noites são diferentes. Vão adicionando e tirando paragens. Às vezes, deixam a ceia à porta, às, vezes trocam umas palavras. Eliana abre a porta de um carro e deixa um saco no banco do pendura. Aquele carro é a casa de alguém. Chegam a sítios sem ninguém. Decoram-lhes as histórias e as peculiaridades. Os que querem ser acordados quando recebem o saco, os que não suportam ser tratados por “dona” ou que se usem diminutivos.

Quando a carrinha chega a Xabregas, Daniel já a espera. Chove bastante e ele convida a entrar na casa que fez por uns tempos sua. Subimos por umas escadas íngremes, às escuras. É fria e húmida, respira-se um ar pesado. Lá em cima, no seu quarto-sala, Daniel liga a luz do candeeiro. Descobriu recentemente que a casa ainda tinha ligação eléctrica. “Parece um milagre, uma luz que vem do céu.”

“Esta é a minha realidade.” Daniel Moreira Correia, de 46 anos, veio de Cabo Verde para Portugal há quase três décadas. Vivia em Forte da Casa, com a mulher e o filho, que nasceu em 2014. Trabalhou 15 anos como mecânico na Rodoviária de Lisboa. Até que teve um problema nas costas e esteve vários anos de baixa. O rendimento da família diminuiu. Ele acabaria por se separar da mulher e do filho e a vida deu uma gigantesca reviravolta. “Sabe o que é ter um filho desde pequenino, mudar-lhe fralda, levar para a creche, brincar, abraçar, jogar à bola, e, de repente, ficar sem isso?

A mulher acusou-o de ser violento; ele garante que nunca o foi. Foi gastando as poupanças que tinha. Começou a beber. “Só queria estar no escuro.” Até que chegou a um ponto em que teve de deixar a casa e viu-se sozinho na rua. Esteve cinco meses no centro de acolhimento do Beato. “É muita gente lá dentro. Os quartos são pequenos para tanta gente.”

Até que um dia viu uma porta aberta, num prédio aparentemente abandonado, e entrou. Era uma casa cheia de entulho. “Tinha seringas por todo o lado.” Arranjou umas luvas como usava na oficina para não se picar e limpou tudo. “Aqui não chove.” Arrumou-a ao seu jeito. É ali que vive há três meses, que tem as suas poucas coisas, os seus livros.

“O Daniel é um caso que não tem nenhum vício. Foi mesmo uma circunstância da vida. Digo muitas vezes às pessoas que a diferença entre estares ou não na rua é teres um seio familiar, uma estrutura”, repara Eliana Ludovico.

Por agora, Daniel diz estar a sentir-se melhor e à procura de trabalho. Sabe que um dia terá de sair dali. “Eu não sou um rato que gosta de viver num buraco.”