Inflação, taxas de juro a subir. Para a jurista da Defesa do Consumidor (DECO), Natália Nunes, 2023 "é uma incógnita a todos os níveis" e o país vai "continuar a ter, nomeadamente aquelas famílias que recebem o salário mínimo ou até inferior ao salário mínimo, grandes, grandes dificuldades". Prova disso é que as insolvências dos particulares dispararam e "representam mais de 70% do valor total". E o pior ainda pode estar para vir: "não são estas subidas que nos preocupam, são aquelas que vêm aí".
Trabalha há décadas como jurista na DECO e coordena o Gabinete de Proteção Financeira onde nas crises de 2008 e 2012 lidou com "situações de famílias que tiveram de abandonar as casas". Nessa altura "foi dramático" e a "esperança é que não se volte a passar aquilo que surgiu nessa altura". Se o Estado português deveria fazer alguma coisa? Natália Nunes é taxativa: "Não deveria, tem mesmo de fazer".
Nas últimas crises, o anterior presidente do BCE, Mario Draghi, conseguiu segurar as taxas de juro, coisa em que Christine Lagarde é completamente diferente. É possível fazer e o poder político europeu, e até em Portugal, podia fazer força ou não para que a política europeia também fosse outra?
Falando em nome de quem está todos os dias a apoiar as famílias, claro que era desejável que assim fosse, mas também era desejável que nós não tivéssemos estes níveis de inflação. E a verdade é que se espera que toda esta estratégia que está a ser adoptada pelo BCE venha a dar o resultado no sentido de diminuir o valor da inflação. Não está a ser tão rápido como todos esperávamos ou como era desejável. Se me perguntar se estas medidas do BCE vão dar ou não os resultados que seriam desejáveis, não sabemos.
2023 é uma incógnita?
É uma incógnita a todos os níveis.
É esperar o melhor e preparar para o pior?
Eu diria que nós famílias, de uma forma geral, acho que vamos ter (principalmente as famílias de menores rendimentos com taxas de esforço elevadas) mesmo de nos preparar para um ano de muitas dificuldades, até porque a inflação vai continuar elevada, além dos 2%. E, por outro lado, também se perspetiva que a Euribor vá subir e já se fala que vai ultrapassar os 3% durante o próximo ano. Isto são sinais muito complicados para as famílias. Se o Estado português deveria fazer alguma coisa? Eu diria que não deveria, tem mesmo de fazer alguma coisa em termos internos que é aquilo que o Governo controla e pode efectivamente fazer. E claro que em termos de diplomacia, em termos europeus, também tem de salvaguardar os interesses das famílias portuguesas.
O que a preocupa mais: o aumento das taxas de juro, o preço da energia, dos combustíveis, a inflação?
É tudo porque essas coisas acabam por estar todas ligadas. A inflação é muito preocupante para as famílias de baixos rendimentos, porque nós sabemos que é nos produtos de alimentação e na fatura de energia que ela se verifica mais. E isso tem um grande peso nos orçamentos das famílias que têm menores rendimentos. Portanto, mesmo que a inflação venha a reduzir, vamos continuar a ter, nomeadamente aquelas famílias que recebem o salário mínimo ou até inferior ao salário mínimo, grandes, grandes dificuldades no próximo ano. Ligada à inflação temos a subida da Euribor. Também sabemos que ela está a subir muito para controlar a inflação, portanto, acaba por estar tudo relacionado. Claro que as duas questões, a inflação e a subida da Euribor. Sim, são dois aspectos que podem gerar grandes rupturas em termos financeiros por parte das famílias.
A DECO também tem recebido muitos pedidos de informação sobre preços da energia e mudança de contratos?
Também, até porque houve a possibilidade, nomeadamente no caso do gás, de se mudar para o mercado regulado com forma de conter os preços e claro que sim. Se nós formos olhar para os nossos orçamentos familiares, verificamos que a fatura da electricidade, do gás e mesmo da água e das telecomunicações têm um grande peso. A electricidade e o gás têm vindo a ocupar um espaço ainda maior do que aquilo que já tinham. As famílias também estão muito preocupadas e estão já a adoptar todos aqueles comportamentos que nós vimos ao longo dos anos a falar para reduzirem o valor da sua factura. Uma forma de reduzir a fatura, nomeadamente do gás, é mudarem para o mercado regulado e é isso que estão a fazer e muitas vezes estão a pedir-nos informação de como é que o podem fazer, mas sobretudo como é que podem gastar menos.
O primeiro-ministro, no debate da generalidade da proposta de Orçamento do Estado, dizia que a pobreza em Portugal não está a aumentar. É essa a informação que chega à DECO? Há números sobre isso?
Nós não temos esses números, até porque nós acabamos por não trabalhar a questão da pobreza, mas lidamos com muitas famílias nessa situação e aquilo que eu posso dizer é que este ano demonstrou-nos, pelo menos a nós na DECO, que as famílias com menores rendimentos eram aquelas que estavam a ser mais afectadas com toda esta situação, mas entretanto entraram muitas famílias que até há uns tempos tinham rendimentos que se podia dizer que estavam na classe média, porque foram confrontadas, nomeadamente no período da pandemia, com situações como o 'lay-off' e não conseguiram recuperar, tendo neste momento rendimentos muito inferiores àqueles que tinham há dois, três anos.
O que é que o que acontece às famílias que, no limite, não conseguem de todo pagar os seus créditos? Há situações conhecidas pela DECO de pessoas, por exemplo, que passaram para uma situação de sem-abrigo?
São situações muito extremas. Ainda não estamos nesse ponto. Entre 2008 e 2012 nós vimos essas situações de famílias que tiveram de abandonar as casas. E foi dramático. A nossa esperança é que não se volte a passar aquilo que surgiu nessa altura. De qualquer forma, temos já famílias com situações muito complicadas, porque têm baixos rendimentos e porque as prestações estão a subir e, portanto, estão na iminência de virem a ser confrontadas com essas situações.Mas antes de serem confrontadas com isso, e eu pensava que era essa a pergunta que iria fazer., elas são confrontadas com acções de execução, com a penhora dos seus bens, dos seus bens. Ou então até as próprias famílias tomam a decisão de avançar para o processo de insolvência.
Já há casos desses?
Eles começam novamente a aumentar. Se nós fomos ver os dados do Ministério da Justiça relativamente as insolvências, vemos que as insolvências dos particulares representam mais de 70% do valor total.
É um número que subiu?
É um número que subiu, sim, embora eu não tenha presentes os valores em concreto. Mas não são estas subidas que nos preocupam, são aquelas que vêm aí, até porque as famílias que estão agora a ter dificuldades começam a tentar encontrar mecanismos para sair delas daqui a uns tempos. Não é quando começam a ter as primeiras dificuldades, que as famílias vão a tribunal pedir a sua declaração de insolvência. Muitas vezes, só depois de esgotarem todas as soluções e de entrarem em situação de incumprimento é que vêm pedir pedir ajuda.
Esta semana assinalou-se o dia da Poupança. Como é que estão as poupanças dos portugueses? Durante a pandemia tivemos notícias de um certo alívio e até da criação de almofadas financeiras...
[A pandemia] Deu-nos algum alento porque vimos que as famílias conseguiam poupar, mas o cenário era completamente diferente do que temos hoje. As poupanças que as famílias conseguiram fazer durante estes dois anos foram essenciais ou têm sido essenciais agora, em 2022, porque têm sido utilizadas para apagar o aumento do custo de vida e para pagar a prestação do crédito à habitação. Mas a verdade é que essa poupança não vai esticar muito mais e vai chegar a altura em que ela termina. Aí vão aumentar as dificuldades. E se olharmos para os dados, verificamos que as famílias neste momento não têm grande capacidade de poupança, mas é importante que privilegiem no seu orçamento familiar, desde que tenham essa capacidade, a questão da poupança. Vai ser extremamente difícil, nomeadamente para as famílias de menores rendimentos.