Pedro Gomes Sanches, opinião, in Expresso
Expresso | As pessoas não são objectos que se compram num bazar
As pessoas não são objectos que se compram num bazar
O Sebastião não era o "preto", o João não era o "maricas", e a Maria não era a "puta". Onde uns vêem objectos de exclusão os outros vêem objectos de inclusão. E a palavra a reter aqui é: objectos. As pessoas não são medalhas de diversidade para ostentar ante a turba politicamente correcta
Um homem branco, heterossexual, tatuado e carregado de pregos e alfinetes no corpo disse há dias ao Expresso: "Se eu disser que sou uma pessoa inclusiva e só tiver à minha volta pessoas brancas, heterossexuais e de uma certa idade alguma coisa não está a correr tão bem no meu processo de inclusão".
Exagerei no absurdo? Foi de propósito, para expor a exiguidade do seu, chamemos-lhe assim, "pensamento" sobre a inclusão. Acrescento: chama-se Bernardo, é filho da Helena e do Paulo e é mais conhecido por Agir. É casado com a Catarina e começam agora a pensar ter filhos.
O Bernardo é, na verdade, uma pessoa como tantas que se cruzam connosco no comboio, no autocarro, no café e na rua, repleto de singularidades que o tornam único. Como o Sebastião, o João e a Maria.
O Sebastião era o miúdo mais inteligente do bairro e tinha grande apetência pela matemática. Nos poucos dias de férias de que gozava, na Lousã, gostava de nadar no rio, ao pôr-do-sol, sobretudo naqueles dias em que o dia persiste em ser maior do que a noite. Sempre que podia, ajudava os vizinhos mais idosos a transportar as compras para casa, e aos Domingos ia à missa. Era do Sporting. O Sebastião era irmão da Emília.
O João arregalava os olhos sempre que os avós lhe diziam que o levariam ao monte, lá no Alentejo, onde podia ser tudo sem que ninguém o visse nem censurasse. A viver nos subúrbios sujos da grande cidade, ali num concelho onde se prometeram muitos amanhãs cantantes, mas onde só se ofereceram hojes lamacentos, João lia. Lia sempre. Lia sobre o mundo aberto, para lá do rio. Gostava de castanhas no Outono. E de dormir até tarde. O João era neto da Alice e do Joaquim.
A Maria subia a calçada, como a Luísa, carregada de sacos e de sonhos por cumprir. Pobre e maltratada por quem lhe prometeu que a amaria e respeitaria até que a morte os separasse, protegia os filhos com um amor e um querer maiores do que aqueles com que, até, alguma vez sonhou um futuro feliz para si. Maria gostava de pastéis de nata e de café sem açúcar. E de filmes românticos. A Maria era mãe da Margarida e do Ruben.
Sebastião vivia na Amadora, João no Seixal e Maria em Odivelas. Sebastião foi agredido até à morte, num "dia da raça", porque era negro, João suícidou-se porque era homossexual e porque lhe faltou a rede que o protegesse, e Maria foi mais uma trágica vítima da violência doméstica porque era mulher e estava casada com um animal ciumento.
O Sebastião não era o "preto", o João não era o "maricas", e a Maria não era a "puta". Mas o afunilamento cerebral dos canalhas que lhes ceifaram as vidas - ou contribuíram para isso - não os viu como eram, mas como uma simplória e violenta simplificação do que eles lhes pareciam ao seu grotesco olhar. Usaram, os biltres assassinos, um olhar redutor, desumanizador, para verem aquelas pessoas, não como pessoas, mas como objectos de exclusão.
Usar, em sentido contrário, ainda que movidos pela vontade de "inclusão" ou por um "amor" à diferença, uma lei de atracção por força dessas mesmas características é usar exactamente a mesma lógica dos assassinos: desumanizadora, coisificadora da pessoa humana, redutora da complexidade do ser a um traço de identidade. Digo a mesma lógica, porque onde uns vêem objectos de exclusão os outros vêem objectos de inclusão. E a palavra a reter aqui é: objectos.
As relações humanas, de afecto, não são um mosaico feito de peças adquiridas num bazar qualquer para satisfazer uma multicromática e polifórmica necessidade de exibição de virtude. E as pessoas não são medalhas de diversidade para ostentar ante a turba politicamente correcta.
Seria hipócrita não reconhecer que traços particulares de identidade são activadores de homofilia - leia-se: proximidade motivada por traços de similitude - e potenciadores de relacionamento. Mas, e então? Qual é o erro nisso? É verdade que as relações humanas, de afecto, resultam disso, claro, de homofilias, mas resultam também de curiosidades pelo desconhecido e pelo diferente. E de outras tantas insondáveis coisas que nos tocam, nos interpelam.
Já erro é considerar que a busca activa do diferente, objectivado em traços isolados de identidade, entrelaçados num patchwork simbólico, deve ser um fim em si mesmo e um garante de virtude. Voz amiga, a propósito das declarações do Agir, diz-me que este, para além de inclusivo, tem de ser muito metódico, já que arruma os amigos por cores. Coisa que eu, lamentavelmente, não consigo fazer, sequer, com as gravatas.
Concluo. Há uma tragédia neste debate, uma tragédia que une os do ódio aos deste tipo de "inclusão": olharem para as pessoas não como pessoas, mas como objectos, para uns de exclusão, para outros de inclusão. Uns para eliminar, outros para coleccionar. Nisto, passando ao lado do essencial. O que é o essencial? Santo Agostinho esclarece: "Na essência somos iguais, nas diferenças nos respeitamos." Lição de que, parece, estamos cada vez mais esquecidos.
* O Sebastião, o João e a Maria nunca existiram, mas representam demasiados que ainda hoje existem por aí.