Andreia Friaças (Texto), Daniel Rocha, Paulo Pimenta, Nuno Ferreira Santos e Rui Gaudêncio (Fotografias), in Público online
A inflação traz novas dificuldades — mas para quem vive sozinho, o embate é maior. “Sinto-me sem esperança. Vejo-me a aproximar dos 30 anos e penso: o que é que estou aqui a fazer?”
Na viragem do século, Ana Gariso deixou a sua terra, Leiria, para estudar em Lisboa, na Faculdade de Letras. Chegou sem grandes planos; queria apenas aproveitar os espectáculos, os museus e as galerias de arte da cidade. Mas vinha, acima de tudo, com outro desejo. “Viver sozinha e ser livre”, diz. No entanto, seguiram-se duas décadas de obstáculos.
Saltou entre vários empregos precários — desde fazer traduções a ser guia turística —, mudou de casa oito vezes e teve mais de 30 colegas de casa. Aos 44 anos, já partilhou morada com namorados, amigos e desconhecidos. “Com desconhecidos foi o pior. Tinha quase 40 anos e não me sentia bem em ir para casa, porque estavam lá pessoas com quem não me dava bem e não queria encontrar”, recorda.
Há dois anos, surgiu uma oportunidade. Ana conseguiu uma bolsa de doutoramento em Ciências da Comunicação, que lhe garante um ordenado fixo durante quatro anos – conseguindo, finalmente, arrendar uma casa sozinha. No entanto, é incerto até quando. “Viver sozinha torna-se cada vez mais pesado e começo, novamente, a ter dificuldade em pagar tudo.”
O cenário é mais do que conhecido: o valor das rendas continua a disparar de ano para ano e os salários não crescem ao mesmo ritmo. Ao mesmo tempo, as dificuldades acrescem com a inflação — e para quem está sozinho, a carga é maior.
“Esta inflação é especialmente má para pessoas que vivem sozinhas”, afirma Susana Peralta, professora de Economia na Nova SBE. Como a inflação está concentrada, por exemplo, nos gastos da casa — como a conta da electricidade — ou no combustível, estas despesas acabam por pesar menos, quando se divide uma habitação. “Ultimamente, viver sozinho tornou-se quase um luxo. Mas, na realidade, devia ser um direito”, conclui Ana.
Quando viver é um “quebra-cabeças”
Nos últimos anos, Ana Gariso nota que a vida está cada vez mais cara. Basta olhar para as rendas: em cinco anos, as rendas em Lisboa aumentaram cerca de 50%, empurrando as pessoas com salários mais baixos para as periferias. “Eu pago 500 euros de renda, que para os dias de hoje é bastante acessível. Mas o meu contrato é renovado todos os anos e em qualquer altura pode acabar”, receia Ana, que viu recentemente o apartamento do andar de cima, com a planta igual à da sua casa, ser arrendado a 900 euros. “Um dia que tenha de sair desta casa, provavelmente tenho de sair de Lisboa. Neste momento não há aqui casas que se consigam arrendar com um salário médio.”
“Sei que só consigo viver sozinho porque estou numa cidade pequena”, começa por dizer Élson Teles, de 30 anos. É natural da ilha da Madeira, mas vive em Rio Maior há cinco anos. Foi nesta pequena cidade no distrito de Santarém que conseguiu vaga para ser professor de Educação Física.
Com pouco mais de 800 euros por mês, consegue viver sozinho num pequeno T1, mas ultimamente a vida tem sido um “quebra-cabeças”. “É uma luta diária tentar perceber onde é que devo gastar menos”, lamenta Élson, que nota diferença, desde logo, nas idas ao supermercado. “A minha alimentação mudou. Tudo aquilo que fica entre refeições, sejam bolachas ou outros snacks, já não compro como gostava. E a proteína… antes escolhia a carne de que gostava, agora é a que estiver mais barata.”
No seu caso, Ana também organiza as suas idas ao supermercado em torno das promoções e já não comete as “extravagâncias” de comprar alimentos como bacalhau ou salmão. Ainda assim, o dinheiro que resta ao final do mês não chega para amparar os imprevistos. “A minha máquina de lavar deixou de funcionar e tive de pedir uma máquina nova aos meus pais”, diz Ana, de 44 anos.
Por outro lado, os momentos de lazer deixaram de entrar na equação. Há seis anos que Ana não faz férias, nem mesmo dentro do país. “Não é fácil para a saúde mental”, afirma. Já Élson visita a Madeira todos os verões, mas apenas porque os pais pagam a viagem. “A última vez que viajei para fora foi há 11 anos, no meu primeiro ano de faculdade”, recorda.
Hoje em dia, mesmo em curtas distâncias, Élson pensa “duas vezes” antes de fazer alguma coisa que implique gastar dinheiro em gasolina. “Já não vou ter com os amigos ou passear só porque me apetece”, explica. Há um ano que descobriu o gosto pelo padel, mas também pratica cada vez menos. “Sempre que vou fico com o sentimento de que não devia ter gastado o dinheiro na gasolina ou no campo”, diz. “Mas é a única coisa que faço fora da rotina casa-trabalho.”
Entre os tombos e a sorte
Rita Umbelino considera-se um dos “casos de sorte”. Conseguiu comprar casa há quatro anos — e se antes era difícil dar este passo, agora reconhece que o cenário é “praticamente impossível”, admite Rita, de 34 anos.
Em 2006, deixou a sua casa na Chamusca, uma vila no distrito de Santarém, e mudou-se para Lisboa para estudar marketing, publicidade e relações públicas. Já na altura, passava os dias a correr: tinha de conciliar as aulas com dois empregos em part-time, em call centers, para pagar as contas. Desde então, passaram-se mais de dez anos “aos tombos”: acumulou vários empregos precários, muitas vezes a recibos verdes, e sempre a fazer uma “ginástica” para o dinheiro chegar ao final do mês.
Ao longo de três anos, enquanto partilhou casa com o seu namorado, conseguiu o apoio da Porta 65, um subsídio de arrendamento jovem. No entanto, em 2018, quando a relação terminou, perdeu este apoio e começou o “pesadelo” de voltar a procurar casa. Os preços em Lisboa já eram “impossíveis” para Rita, que teve de se mudar para Sacavém. Na altura, queria deixar de viver ao sabor das vontades dos senhorios e fugir da instabilidade do mercado de arrendamento e conseguiu, finalmente, comprar casa, depois de pedir um empréstimo ao banco. “Sei que só consegui porque tive a ajuda do meu pai. Se não, não sei o que teria feito.”
Comprar casa: a importância da família
O estudo de Novembro de 2019 da Fundação Calouste Gulbenkian, intitulado Habitação Própria em Portugal, mostra que a habitação própria tem sido fundamental para analisar a situação das desigualdades sociais. Neste caso, a família é uma das principais fontes de apoio financeiro para que os jovens consigam comprar casa. Ainda assim, entre os jovens abaixo dos 30 anos que são titulares de alojamento, apenas 24% são donos de habitação própria — nos outros casos são arrendatários ou têm habitações cedidas.
Finalmente, este ano, Rita viu a sua situação a melhorar. Conseguiu um novo emprego — em produção de conteúdos — que lhe permite chegar ao final do mês com menos preocupações. Mas, ao mesmo tempo, com o fim da pandemia, a guerra na Ucrânia e a inflação, volta a sentir o cerco a apertar-se. “A vida voltou a estar mais cara, mais difícil. Fico revoltada, porque parece que a minha geração nunca consegue estar mesmo descansada.”
Não é “capricho”. É liberdade
Ao contrário de Rita, para muitos jovens, comprar ou arrendar casa sozinho continua a ser uma luta — e um caminho espinhoso. É o caso de Marco Pereira, de 29 anos, natural de Castelo Branco. “Gostava de ter direito ao meu espaço e à minha privacidade, mas essa ideia já saiu do meu imaginário”, diz Marco, que salta de quarto em quarto, em Lisboa, há dez anos.
Além da subida do valor das rendas, o seu principal obstáculo é a precariedade laboral. Depois de se licenciar em Ciências da Comunicação, rodopiou por várias áreas — desde a restauração à farmacêutica —, com contratos instáveis e muitas vezes recebendo pouco mais do que ordenado mínimo. “Estar constantemente a mudar de área dá uma sensação de estar sempre a começar do zero. Isso dificulta a emancipação, porque nunca consegui sequer juntar um pé-de-meia”, diz Marco, que continua a receber ajuda dos pais todos os meses.
Raquel de Lima partilha uma história semelhante. Também tem 29 anos e mudou-se em 2012 de Albufeira para o Porto para estudar Teatro. “Gostava muito de viver sozinha, mas a minha vida é tão instável que no máximo só penso até ao mês seguinte”, diz Raquel, que, na companhia da sua gata, continua a partilhar casa com outras pessoas.
“Nos próximos anos, não penso ter casa, nem filhos, enquanto esta for a minha situação”, diz Raquel, que aguarda, este mês, pelos resultados dos concursos abertos pela Direcção-Geral das Artes, para saber que trabalho terá no próximo ano.
Embora o custo de vida das cidades seja cada vez mais difícil de acompanhar, Raquel não pensa em sair do Porto. “É aqui que tenho a minha rede, os meus amigos. Preocupa-me um dia ter de sair da cidade”, admite. Também Marco lamenta que Lisboa tenha sido “tomada de assalto”, onde “só pessoas ricas” possam viver. Ainda assim, não quer voltar para Castelo Branco. “Foi em Lisboa que saí do armário, foi aqui que eu nasci de certa forma. Conheci as pessoas e ambientes que me permitiram ser eu e deixar de viver em personagem”, diz Marco. “Para mim, não é um capricho viver aqui. É liberdade.”
Programas “insuficientes”
Para estes jovens, é evidente a falta de apoio no arrendamento e compra de casa. No mês passado, por exemplo, o Governo apresentou um pacote de medidas para reduzir o impacto da inflação com o lema “Famílias Primeiro”. “E para os jovens? E para quem vive sozinho?”, questiona Rita Umbelino.
Em casa dos pais
Desde 1974 que o direito à habitação integra a Constituição da República Portuguesa. Se nos anos 80 se assistiu à emergência de políticas de incentivo à compra de habitação, principalmente para jovens, hoje em dia o cenário é muito diferente. Basta olhar para os dados: segundo o estudo Habitação Própria em Portugal, cerca de 69,8% dos jovens actualmente entre os 18 e 34 anos permanece na casa dos pais. Feitas as contas, Portugal é o terceiro país da União Europeia com mais jovens a morar na casa dos pais — apenas ultrapassado por Itália e Grécia.
Como explica a economista Susana Maximiano, professora no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, actualmente não existem apoios de arrendamento destinados a quem vive sozinho, embora quem esteja nesta situação se possa candidatar aos programas de arrendamento já existentes — como o Porta 65, destinados a jovens, ou o arrendamento acessível, destinado a todas as pessoas. “O problema é que estes programas são insuficientes e não chegam a toda a gente”, acrescenta Susana Peralta.
No que diz respeito a estes apoios, é fundamental saber “se existe uma proporção igual de tipologias de casas para pessoas singulares ou a viver em conjunto, para que haja igualdade no acesso à medida”, corrobora a economista Sandra Maximiamo, acrescentando que, em geral, pessoas casadas ou em união de facto “pagam em média menos imposto do que o imposto de uma pessoa singular”.
“Eu pago mais de renda e de despesas estando sozinha e não sinto que existam apoios a pensar nesta situação”, exemplifica Ana. “As taxas que são aplicadas aos vencimentos, os descontos… não existe muita diferença entre aqueles que são casados ou solteiros. Isso acaba por nos prejudicar”, corrobora Élson. “E, quando se pensa em comprar casa, sabemos que é mais fácil, se for um casal”, acrescenta Raquel, alertando para os novos obstáculos no acesso aos créditos a habitação, depois de terem sido impostos novos limites sobre o prazo.
“A sociedade está feita para casais”
Se olharmos à volta, a falta de apoios é apenas um exemplo. “Toda a sociedade está feita para casais. Não se pensa que há pessoas que simplesmente querem e gostam de viver sozinhas”, afirma Rita.
Ana Gariso e Raquel também sentem esta pressão social. “As pessoas não deviam ter de viver a vida a pares para serem independentes”, lamenta Raquel. “Se vives sozinho, és visto como uma pessoa incompleta, é como se te faltasse algo”, acrescenta Ana. “Mas é preciso aceitar que estar sozinho é uma escolha como outra qualquer.”
Na opinião da economista Sandra Maximiano, a sociedade portuguesa sempre esteve, de alguma forma, direccionada para o “emparelhamento”. Se antigamente pesavam mais os motivos religiosos, agora as sociedades ocidentais “vivem a pressão da sustentabilidade demográfica”. “É natural que se criem incentivos que promovam a natalidade e que dessa forma sejam dirigidos a famílias não singulares”, considera.
Mas, não obstante ao facto de existir “uma opção política de beneficiar as famílias mais tradicionais e com filhos”, a economista também considera necessário haver apoio para quem vive noutra situação. “Seria importante possibilitar um crédito bonificado para quem quer adquirir casa sozinho. No que respeita a apoios concretos na conjuntura actual inflacionista, a medida de 125 euros, por exemplo, poderia ter sido ajustada para o caso de pessoas singulares”, exemplifica.
Medo do futuro
A luta por uma casa, pela privacidade e estabilidade é exaustiva — e influencia a saúde mental. “Tem impacto na minha vontade de acordar para ir trabalhar”, confessa Élson. “Trabalho com crianças, mas é difícil continuar alegre nas aulas, quando passo os meses ansioso. Chego à segunda semana do mês à rasca. É uma preocupação que não desaparece, nem quando vou dormir”, conta.
“Há uma sensação de perda de qualidade de vida gigante, de retrocesso. Tenho episódios depressivos, de falta de esperança. Parece que há uma nuvem que faz com que não seja fácil fazer planos a longo prazo”, acrescenta Ana.
Já para Marco, é angustiante lidar com o fosso que se formou entre aquilo que idealizou para a sua vida e o seu dia-a-dia. “Sinto que a nossa geração foi completamente iludida com um discurso de que se tivéssemos uma licenciatura teríamos uma vida digna e autónoma”, afirma. “Tudo isto nos deixa num lugar de tristeza em que queremos dar um passo em frente e não conseguimos”, diz Marco que, nos últimos anos, tem sessões de psicoterapia todas as semanas.
Por outro lado, esta instabilidade faz adiar outros planos. Ana sempre teve o sonho de adoptar uma criança, mas não consegue sustentar uma família. “Sei que nunca vou poder adoptar. Não estando em casal, não tendo uma situação estável, não é possível.”
Também Élson olha com medo para o futuro. “Tenho medo de não poder criar família, de não ter uma casa minha. Se continuar a ser professor, as minhas expectativas são muito baixas.” No futuro, pensa em mudar de área e dedicar-se à informática, mas, por enquanto, com a inflação a apertar cada vez mais, quer encontrar um part-time, para conciliar com as aulas. “Tenho receio de ficar numa situação em que tenha de voltar a dividir casa.”
“Sinto-me sem esperança. Vejo-me a aproximar dos 30 anos e penso: o que é que estou aqui a fazer?”, diz Marco, que tem pensado cada vez mais em emigrar. “Só não o faço já porque a solidão assusta-me”, garante. Independentemente de onde esteja, para o futuro, ainda guarda um sonho. “Poder relaxar. Deixar de passar os meses a contar tostões.”
Ana Gariso também quer manter a esperança, mas não é fácil. “Tenho medo de ter de agarrar na tralha toda e não saber para onde ir, de envelhecer sozinha num sítio onde não conheço ninguém. Sinto muito mais vezes uma solidão que antes não sentia.” No seu caso, quando terminar a bolsa de doutoramento, com 46 anos, não terá direito ao subsídio de desemprego. “Não sei como será a minha vida. Mas tento não ir abaixo”, diz. “Penso: se tiver de voltar a dividir casa, divido. Tenho de me aguentar.”