Sónia Calheiros, in Visão
A pobreza afeta mais de um em cada cinco portugueses, um rácio muito próximo da prevalência de problemas de Saúde Psicológica, afirma Tiago Pereira, da Ordem dos Psicólogos Portugueses e responsável pelo projeto “.Final à Pobreza”
Porque são as pessoas carenciadas mais vulneráveis e propensas a sofrer de doença mental?
As dificuldades sociais e económicas e a vivência em situação de pobreza influenciam a maneira como as pessoas pensam, sentem e agem e produzem efeitos que se estendem ao longo da vida, condicionando as possibilidades de desenvolvimento.
Viver em situação de pobreza implica uma situação de escassez crónica que obriga à concentração de todos os recursos na resposta a urgências – por exemplo, comprar comida, pagar uma renda ou contas atrasadas –, impossibilitando a reflexão, o planeamento e o investimento numa ideia de futuro.
Grande reportagem: Vidas de trabalho sem saírem da miséria
A ciência tem apoiado de forma cada vez mais sólida a compreensão de que a escassez diminui o auto-controlo, aumenta a impulsividade e reduz a capacidade para pensar de forma lógica e a longo prazo, resolver novos problemas, avaliar opções e tomar boas decisões.
As pessoas que vivem situações de pobreza, especialmente no início da vida ou por longos períodos, são mais vulneráveis a uma série de resultados adversos de saúde, sendo a pobreza, hoje, um dos principais determinantes da saúde. Estas pessoas têm menos condições para viver uma vida digna, para viver mais tempo e com maior qualidade, para aceder a oportunidades de educação, emprego, cultura e lazer. Estão também mais expostas a ambientes hostis e a situações de desigualdade, discriminação e estigma. Em períodos de crise, as condições de vida destas pessoas tendem a agravar-se, tornando-as ainda mais vulneráveis a problemas de saúde física e psicológica que, por sua vez, agravam o risco de desigualdade e exclusão.
Quais os principais efeitos e sentimentos associados à pobreza?
Além do impacto cognitivo, a experiência da pobreza tem outros efeitos emocionais, motivacionais e comportamentais. As situações de pobreza têm sido associadas a sentimentos de infelicidade, stresse e desconfiança, bem como a processos de estigmatização e exclusão social – as pessoas mais pobres são frequentemente vistas como fracas, desmotivadas, incompetentes, incapazes de trabalhar – e ainda a um efeito de auto-estereotipagem. As representações sociais negativas sobre a pobreza vão sendo internalizadas, passando a ser parte integrante da auto-imagem de quem vive em situação de pobreza. Neste contexto, não pode ser ignorado o papel da pertença a diferentes categorias sociais e a sua tradução em experiências cumulativas de discriminação (em função do género, da classe ou da pertença comunitária, por exemplo).
Os mais pobres são uma das maiores fatias de pessoas com doença mental?
Até chegar à vida adulta e durante todo o ciclo de vida, as pessoas em situação de pobreza enfrentam vários obstáculos que podem agravar a sua situação económica, social e de saúde. A pobreza associa-se, efetivamente, a uma elevada prevalência de diversos problemas de Saúde Psicológica existindo um ciclo de forte associação entre a precariedade, exclusão e pobreza e problemas de saúde psicológica com o stresse, a ansiedade e a depressão. Associa-se, ainda, ao consumo de substâncias ou ao suicídio.
Um dado curioso e preocupante: atualmente, a pobreza afeta mais de um em cada cinco portugueses, um rácio muito próximo da prevalência de problemas de Saúde Psicológica, dado que se estima que um cada cinco portugueses viva com um problema de Saúde Psicológica. Dados num País onde existem carências significativas no acesso e na equidade de acesso a cuidados de saúde mental, onde persistem dos mais elevados níveis de desigualdade de rendimentos da União Europeia e da OCDE e onde é mais difícil sair de uma situação de pobreza.
De que forma as condições socio-económicas podem interferir na causa para desenvolver uma doença mental?
É determinante em todo o ciclo de vida. O desenvolvimento dos bebés e crianças é influenciado pela maior probabilidade de exposição ao stresse e adversidade em famílias em situação de pobreza – má alimentação, casas com poucas condições, bairros com poucos serviços disponíveis ou maior exposição a níveis elevados de violência ou poluição, por exemplo.
Quando as famílias têm condições de rendimento mínimas, a pressão sobre os cuidadores é, em termos médios, menor, o que se espelha nos seus comportamentos parentais, nomeadamente, a falta de disponibilidade para a parentalidade que a pobreza e a escassez impõe. As famílias em situação de pobreza estão também em maior risco de interações sociais marcadas por níveis elevados de conflito.
Todos estes fatores impactam e prejudicam o desenvolvimento das crianças em situação de pobreza, limitando o seu desenvolvimento socio-emocional, físico, cognitivo e académico. Ficam em maior risco de problemas de comportamento e de Saúde Psicológica na infância e na adolescência – dificuldades de auto-regulação, consumo de álcool e drogas, depressão, gravidez na adolescência, por exemplo.
Estas situações, por sua vez, constituem fatores de risco para a pobreza e problemas de Saúde Psicológica na idade adulta, reduzindo a sua capacidade para o trabalho, uma das principais estratégias para quebrar o ciclo de pobreza.
Frequentemente, são os jovens de famílias em situação de pobreza que têm maiores níveis de ansiedade e tristeza, bem como auto-imagens mais negativas. Já as pessoas mais velhas, acumulando os efeitos de desigualdades sentidas ao longo da vida, experienciam um processo de envelhecimento mais precoce, menos saudável e com menor qualidade de vida. Atingem esta fase do ciclo de vida com mais problemas de saúde física e psicológica e com maiores privações materiais que afetam a manutenção da saúde e bem-estar – dificuldades na compra de medicamentos, no acesso a cuidados de saúde ou na manutenção de uma habitação condigna
O stresse e a adversidade são o rastilho?
Sabemos que quem vive em situação de pobreza está em maior risco de desenvolver problemas de Saúde Psicológica e doença mental. São, efetivamente, testemunhas e vítimas de condições adversas com os múltiplos impactos daí decorrentes, nomeadamente no que ao stresse diz respeito. Mas são, também, testemunhas e vítimas de mais conflitos, mais violência, são mais expostas a situações potencialmente traumáticas, a mais estigma e discriminação ao mesmo tempo que têm mais dificuldades de acesso a serviços de saúde e de saúde mental.
Mas, o inverso também é verdadeiro: as pessoas com problemas de Saúde Psicológica ou de doença mental correm maior risco de viverem mais e por períodos mais prolongados situações de pobreza. São menos produtivas no trabalho, têm maiores dificuldades em manter os seus empregos, enfrentam situações de estigma e discriminação e enfrentam custos de saúde mais elevados.
Assim, a relação entre pobreza e problemas de Saúde Psicológica é uma relação bidirecional e complexa, podendo ambos atuar como causa ou consequência. A pobreza pode conduzir ao desenvolvimento e agravamento de problemas de Saúde Psicológica, enquanto estes podem dificultar que os indivíduos saiam da pobreza.
Como se pode quebrar essa relação bidirecional entre pobreza e doença mental?
É importante lembrar que qualquer pessoa pode, a dado momento da vida, passar por uma experiência de pobreza da qual pode não conseguir recuperar. A pobreza e as desigualdades persistem uma vez que radicam em causas profundas e estruturais – como o desemprego ou emprego precário, más condições habitacionais, a desigualdade e as iniquidades, problemas de saúde (física e psicológica) ou baixa escolaridade, entre outros.
Mas, a pobreza não está relacionada apenas com dinheiro, emprego, habitação, educação ou saúde. Está relacionada também com a forma como as pessoas pensam, sentem e se comportam em situações de escassez e com os recursos (internos e externos) que têm ao seu dispor para se adaptarem nestas situações. Os estudos indicam que a situação económica das pessoas e das famílias pode melhorar na sequência de melhorias no seu estado de saúde psicológica e, por sua vez, que este apresenta melhorias à medida que a situação económica das pessoas melhora. Por isso, a erradicação da pobreza depende de uma resposta multidimensional, de abordagens individuais e sociais, do desenvolvimento do capital financeiro, humano, social e de saúde, bem como da construção de políticas públicas que atentem aos aspetos psicológicos da pobreza.
É necessário promover a inclusão, a coesão social e a cidadania ativa, promover a resiliência e as competências transversais de vida, promover o acesso à habitação e ao emprego, promover a literacia em saúde psicológica e em saúde financeira ou apoiar a parentalidade e a infância.