Autores da “Carta da Habitação” debatem na Renascença “tema fulcral da vida das pessoas”, porque “o Evangelho não é uma coisa abstrata”. Uma conversa com frei Rui Grácio, da Comissão Justiça, Paz e Ecologia da Confederação dos Institutos Religiosos de Portugal; o arquiteto Daniel Lobo, que acompanhou o processo de realojamento do bairro da Torre, em Camarate; e Fernanda Reis, da Pastoral dos Ciganos do Patriarcado de Lisboa.
A “Carta da Habitação”, divulgada há dias, pede medidas urgentes para resolver a crise no setor, denunciando a “realidade desconcertante” que atinge boa parte da população portuguesa, com “situações inaceitáveis” ao nível dos processos de realojamento e da reabilitação das casas, para além dos preços incomportáveis do arrendamento, que as sucessivas crises que atravessamos têm feito disparar.
O documento foi elaborado por iniciativa da Comissão Justiça, Paz e Ecologia (CJPE), da Confederação dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP), com o contributo e a experiência partilhada por quem está no terreno, junto dos bairros sociais e das comunidades mais desfavorecidas.
Frei Rui Grácio, da CJPE, lembra na Renascença que este “é um dos temas fundamentais de justiça e paz” e é “fulcral na vida das pessoas”, por isso fez todo o sentido refletirem sobre ele na comissão, onde “há gente a trabalhar nas periferias”.
“Queríamos ter uma posição como religiosos e religiosas, leigos e leigas que trabalham connosco, porque acreditamos que o Evangelho não é uma coisa abstrata, é concreto e tem de tratar de questões reais da vida das pessoas”.
A carta lembra que a habitação é “um direito humano”, e alerta para as condições indignas em que muitos vivem e para a desigualdade com que são tratadas determinadas franjas da população, como os afrodescendentes, os imigrantes e a comunidade cigana.
Habitação “é um direito humano”, lembram organizações católicas
Apostar na escola e formação
Fernanda Reis, representante da Pastoral dos Ciganos na CJPE, lembra que ainda há muito a fazer para a plena integração desta comunidade, e que apesar das leis persecutórias de que foi alvo “ao longo de 300 anos”, desde o século XIX que “os ciganos nascidos em Portugal são considerados portugueses de pleno direito”.
Para esta responsável, a questão cultural e o facto de serem nómadas “é uma falsa questão” e não impossibilita a sua integração, mas a grande aposta tem de ser feita ao nível da “escolarização e da formação”, para que estas pessoas “saibam como os outros, aprendam e se preparem para o exercício da cidadania”.
Fernanda Reis reconhece que o problema da habitação se interliga com o da pobreza, mas as pessoas não podem ser catalogadas de acordo com o código postal onde vivem. “Isso é verdade, tanto para ciganos como para não ciganos. Nos bairros sociais há gente variada, boa e trabalhadora, e é injusto marcar alguém porque vive num bairro sem condições. É a pessoa que é apontada, em vez de se tentar melhorar o bairro”.
"É injusto marcar alguém porque vive num bairro sem condições. É a pessoa que é apontada, em vez de se tentar melhorar o bairro"
Realojamento com falhas graves
Daniel Lobo, arquiteto, tem um percurso que passou pelo bairro da Torre, em Camarate, Loures. À Renascença, conta que esta “foi uma experiência muito importante. Integrei um projeto de investigação/ação, que já decorria desde 2014, eu entrei em 2016, e foi importante para aquilo que o Papa Francisco apela, a conversão para as periferias”.
Conta que no bairro hoje já “só resta uma barraca”. Nos últimos anos “foi sujeito a um processo de realojamento e capacitação, de melhoria das condições de vida e colmatação de uma série de outras necessidades, como a alimentação”.
Mas, o realojamento “foi dispersando a população por várias partes do município de Loures, Amadora e Almada”, e nem tudo correu como devia. “Houve muitas falhas, e graves”, sublinha. “O que falta essencialmente é um maior envolvimento das entidades que estão no terreno, em grande proximidade, compromisso e entrega, e que conhecem aquela realidade social. É preciso que essas pessoas façam parte do processo de realojamento, como a associação de moradores”.
Daniel Lobo diz que “foram feitas várias comunicações por escrito à Câmara de Loures, mas não surtiu efeito. Só quando houve um incêndio que chamou a atenção da comunicação social e foi exercida pressão pública é que alguma coisa aconteceu”.
"Mudança de política e de mentalidade"
A fazer o doutoramento em urbanismo, o jovem arquiteto diz que a humanização das cidades terá de passar por um novo modelo económico que dê resposta às necessidades das pessoas e atenue a atual divisão, ainda evidente, entre “áreas ricas e pobres”.
"Há um hiato entre as autoridades públicas, as associações e os próprios moradores para fazerem algo em conjunto"
É preciso encontrar, como propõe o Papa, uma alternativa à atual economia que “mata, exclui e desumaniza”. Mas, considera que há “sinais de esperança no meio disto”, como a “capacidade de invenção dos muitos milhões de pessoas que vivem em bairros precários ou informais em todo o mundo, para conseguirem encontrar uma solução para a sua falta de abrigo”.
“Estamos num modelo de economia que privilegia o lucro individual sobre as necessidades das pessoas”, acrescenta frei Rui Grácio, que sublinha também a importância da “participação dos envolvidos” na busca de soluções, de quem vive nos bairros e das associações que estão no terreno, porque atualmente “há um hiato entre as autoridades públicas, as associações e os próprios moradores para fazerem algo em conjunto”. E acrescenta que é preciso “valorizar a participação e o trabalho conjunto a partir da visão de quem não está no gabinete, mas no terreno”.
“É uma mudança de política e de mentalidade. Não é só dinheiro, é toda uma maneira de fazer as coisas que deve ser participada desde a base”, afirma.
Mais de 50 mil famílias da Área Metropolitana de Lisboa vivem em condições indignas
Fernanda Reis insiste que “a habitação é um direito e é um elemento fundamental para o crescimento da própria pessoa, por isso é urgente que se enfrente o problema. E conhecemos muitos casos de ciganos e não ciganos que estão aflitos, não estão bem”.
Os autores da Carta esperam que o documento que elaboraram ajude a “chamar a atenção” e a um “debate da sociedade civil” para resolver o problema, que “não é só da habitação, é também do trabalho, das condições de vida, está tudo interligado”.
Das entidades públicas a que foi endereçada a carta, já receberam resposta “da vereadora da habitação da Câmara de Lisboa, a dizer que iam analisar e ter em consideração as propostas” feitas.
O debate com frei Rui Grácio, Daniel Lobo e Fernanda Reis foi transmitido este domingo no programa “Pequenas Grandes Coisas”, na Renascença.