21.11.22

"É injusto marcar alguém porque vive num bairro sem condições"

Ângela Roque, in RR

Autores da “Carta da Habitação” debatem na Renascença “tema fulcral da vida das pessoas”, porque “o Evangelho não é uma coisa abstrata”. Uma conversa com frei Rui Grácio, da Comissão Justiça, Paz e Ecologia da Confederação dos Institutos Religiosos de Portugal; o arquiteto Daniel Lobo, que acompanhou o processo de realojamento do bairro da Torre, em Camarate; e Fernanda Reis, da Pastoral dos Ciganos do Patriarcado de Lisboa.

A “Carta da Habitação”, divulgada há dias, pede medidas urgentes para resolver a crise no setor, denunciando a “realidade desconcertante” que atinge boa parte da população portuguesa, com “situações inaceitáveis” ao nível dos processos de realojamento e da reabilitação das casas, para além dos preços incomportáveis do arrendamento, que as sucessivas crises que atravessamos têm feito disparar.

O documento foi elaborado por iniciativa da Comissão Justiça, Paz e Ecologia (CJPE), da Confederação dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP), com o contributo e a experiência partilhada por quem está no terreno, junto dos bairros sociais e das comunidades mais desfavorecidas.

Frei Rui Grácio, da CJPE, lembra na Renascença que este “é um dos temas fundamentais de justiça e paz” e é “fulcral na vida das pessoas”, por isso fez todo o sentido refletirem sobre ele na comissão, onde “há gente a trabalhar nas periferias”.

“Queríamos ter uma posição como religiosos e religiosas, leigos e leigas que trabalham connosco, porque acreditamos que o Evangelho não é uma coisa abstrata, é concreto e tem de tratar de questões reais da vida das pessoas”.

A carta lembra que a habitação é “um direito humano”, e alerta para as condições indignas em que muitos vivem e para a desigualdade com que são tratadas determinadas franjas da população, como os afrodescendentes, os imigrantes e a comunidade cigana.


Habitação “é um direito humano”, lembram organizações católicas


Apostar na escola e formação

Fernanda Reis, representante da Pastoral dos Ciganos na CJPE, lembra que ainda há muito a fazer para a plena integração desta comunidade, e que apesar das leis persecutórias de que foi alvo “ao longo de 300 anos”, desde o século XIX que “os ciganos nascidos em Portugal são considerados portugueses de pleno direito”.

Para esta responsável, a questão cultural e o facto de serem nómadas “é uma falsa questão” e não impossibilita a sua integração, mas a grande aposta tem de ser feita ao nível da “escolarização e da formação”, para que estas pessoas “saibam como os outros, aprendam e se preparem para o exercício da cidadania”.

Fernanda Reis reconhece que o problema da habitação se interliga com o da pobreza, mas as pessoas não podem ser catalogadas de acordo com o código postal onde vivem. “Isso é verdade, tanto para ciganos como para não ciganos. Nos bairros sociais há gente variada, boa e trabalhadora, e é injusto marcar alguém porque vive num bairro sem condições. É a pessoa que é apontada, em vez de se tentar melhorar o bairro”.

"É injusto marcar alguém porque vive num bairro sem condições. É a pessoa que é apontada, em vez de se tentar melhorar o bairro"

Realojamento com falhas graves

Daniel Lobo, arquiteto, tem um percurso que passou pelo bairro da Torre, em Camarate, Loures. À Renascença, conta que esta “foi uma experiência muito importante. Integrei um projeto de investigação/ação, que já decorria desde 2014, eu entrei em 2016, e foi importante para aquilo que o Papa Francisco apela, a conversão para as periferias”.

Conta que no bairro hoje já “só resta uma barraca”. Nos últimos anos “foi sujeito a um processo de realojamento e capacitação, de melhoria das condições de vida e colmatação de uma série de outras necessidades, como a alimentação”.

Mas, o realojamento “foi dispersando a população por várias partes do município de Loures, Amadora e Almada”, e nem tudo correu como devia. “Houve muitas falhas, e graves”, sublinha. “O que falta essencialmente é um maior envolvimento das entidades que estão no terreno, em grande proximidade, compromisso e entrega, e que conhecem aquela realidade social. É preciso que essas pessoas façam parte do processo de realojamento, como a associação de moradores”.

Daniel Lobo diz que “foram feitas várias comunicações por escrito à Câmara de Loures, mas não surtiu efeito. Só quando houve um incêndio que chamou a atenção da comunicação social e foi exercida pressão pública é que alguma coisa aconteceu”.
"Mudança de política e de mentalidade"


A fazer o doutoramento em urbanismo, o jovem arquiteto diz que a humanização das cidades terá de passar por um novo modelo económico que dê resposta às necessidades das pessoas e atenue a atual divisão, ainda evidente, entre “áreas ricas e pobres”.

"Há um hiato entre as autoridades públicas, as associações e os próprios moradores para fazerem algo em conjunto"

É preciso encontrar, como propõe o Papa, uma alternativa à atual economia que “mata, exclui e desumaniza”. Mas, considera que há “sinais de esperança no meio disto”, como a “capacidade de invenção dos muitos milhões de pessoas que vivem em bairros precários ou informais em todo o mundo, para conseguirem encontrar uma solução para a sua falta de abrigo”.

“Estamos num modelo de economia que privilegia o lucro individual sobre as necessidades das pessoas”, acrescenta frei Rui Grácio, que sublinha também a importância da “participação dos envolvidos” na busca de soluções, de quem vive nos bairros e das associações que estão no terreno, porque atualmente “há um hiato entre as autoridades públicas, as associações e os próprios moradores para fazerem algo em conjunto”. E acrescenta que é preciso “valorizar a participação e o trabalho conjunto a partir da visão de quem não está no gabinete, mas no terreno”.

“É uma mudança de política e de mentalidade. Não é só dinheiro, é toda uma maneira de fazer as coisas que deve ser participada desde a base”, afirma.


Mais de 50 mil famílias da Área Metropolitana de Lisboa vivem em condições indignas


Fernanda Reis insiste que “a habitação é um direito e é um elemento fundamental para o crescimento da própria pessoa, por isso é urgente que se enfrente o problema. E conhecemos muitos casos de ciganos e não ciganos que estão aflitos, não estão bem”.

Os autores da Carta esperam que o documento que elaboraram ajude a “chamar a atenção” e a um “debate da sociedade civil” para resolver o problema, que “não é só da habitação, é também do trabalho, das condições de vida, está tudo interligado”.

Das entidades públicas a que foi endereçada a carta, já receberam resposta “da vereadora da habitação da Câmara de Lisboa, a dizer que iam analisar e ter em consideração as propostas” feitas.

O debate com frei Rui Grácio, Daniel Lobo e Fernanda Reis foi transmitido este domingo no programa “Pequenas Grandes Coisas”, na Renascença.