Ana Henriques, in Público on-line
Governante reage a decisão polémica do Tribunal da Relação do Porto. Presidente da associação de juízes admite que "não é uma decisão muito usual". Empresa vai recorrer.
O consumo de álcool não pode, em circunstância alguma, melhorar o desempenho de um trabalhador, assevera o secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde, Fernando Leal da Costa, a propósito de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
Os juízes determinaram a reintegração de um empregado da recolha do lixo despedido por estar a trabalhar alcoolizado. Nas considerações que tecem sobre o caso, os desembargadores chegam a admitir que a etilização pode melhorar o desempenho profissional. “Note-se que, com álcool, o trabalhador pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões, e por isso, na alegria da imensa diversidade da vida, o público servido até pode achar que aquele trabalhador alegre é muito produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos”, escrevem, num acórdão datado do mês passado.
As reacções de estupefacção não se fizeram esperar. “Não é uma decisão muito usual, é verdade”, reconhece o presidente da Associação Sindical dos Juízes, Mouraz Lopes, acrescentando que o acórdão, “que apenas responsabiliza os três juízes que o assinaram, é passível de recurso”, embora, no seu entender, dificilmente possa ser alvo de escrutínio disciplinar por parte do Conselho Superior de Magistratura. “Não conheço nenhuma situação com uma fundamentação desta natureza”, conclui Mouraz Lopes.
A empresa para a qual trabalhava o empregado em causa, que apresentava uma taxa de alcoolemia no sangue de 2,4 gramas/litro, anunciou que vai recorrer. O administrador da Greendays, Almiro Oliveira, diz-se “deveras surpreendido e incomodado” com a decisão do Tribunal da Relação do Porto e garante que vai “fazer de tudo” para não readmitir o empregado, por uma “questão de bom senso”.
“Seria um absurdo readmitir um trabalhador que anda todos os dias alcoolizado, pondo em causa a sua segurança e a dos colegas”, frisa o mesmo responsável, em declarações à agência Lusa. Almiro Oliveira classifica a decisão do colectivo de juízes como “ridícula, absurda e surreal” por considerar que “é normal” as pessoas trabalharem alcoolizadas para esquecer as “agruras da vida”.
“Em circunstância alguma o consumo de álcool, independentemente da quantidade consumida, pode melhorar o desempenho de uma pessoa, de um trabalhador, seja ele funcionário de uma empresa de recolha de lixo, juiz de um tribunal, médico, enfermeiro, ou um estudante”, observa, por seu turno, o secretário de Estado da Saúde.
“O consumo de álcool não substitui a terapêutica antidepressiva ou ansiolítica, pelo que não é aceitável que se afirme que o seu uso possa servir para ‘esquecer as agruras da vida’. Também é incorrecto especular que o esquecimento das ‘agruras da vida’, por via do consumo de álcool, possa levar a maior empenho no trabalho”, prossegue Fernando Leal da Costa.
O governante explica porquê: como as bebidas com etanol diminuem o desempenho muscular, os reflexos, a visão, a audição e o equilíbrio constituem “um factor de grande relevância para o aumento de riscos profissionais e de segurança”. Daí que não se possa aceitar, como defendem os juízes da Relação do Porto, que os trabalhadores exerçam funções “um pouco tontos”.
“Também não se espera que alguém possa tomar decisões quando estiver ‘um pouco tonto’, sejam elas de carácter judicial, político ou médico, já que é bem conhecido o efeito do álcool na diminuição de capacidade de decidir, matéria que os tribunais, as forças de segurança e as unidades de saúde avaliam sistematicamente”, alerta o secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde.
Também o inspector-geral da Autoridade para as Condições do Trabalho, Pedro Pimenta Braz, já se pronunciou sobre o assunto, tendo afirmado, em declarações à TSF, que um trabalhador alcoolizado “é uma bomba em circulação no local de trabalho”: além de representar um risco elevado para si próprio e para terceiros, “em termos produtivos nem se comenta”.
O Tribunal da Relação do Porto disse não ter, nesta altura, ninguém habilitado para comentar o assunto, uma vez que o seu principal responsável se encontra de férias.