Por Ricardo R. Martins, in iOnline
A crise, o empobrecimento da classe média, a multiplicação das redes sociais explicam a reacção a frases de ricos
Há momentos na história em que as frases dos ricos irritam os pobres. A mais conhecida é falsamente atribuída à rainha Maria Antonieta, que, perante os protestos da população devido ao aumento preço do pão, teria exclamado, nas vésperas da Revolução Francesa, que lhe fez perder a cabeça: "Se não podem comer pão, comam brioches."
Os estudos em Psicologia Social levadas a cabo pela professora Ana Guinote revelaram que o poder afecta a nossa cognição básica, nomeadamente a forma como a informação é percebida e discriminada. Os poderosos têm mais recursos e menos constrangimentos, o que lhes dá mais capacidade de concentração e lhes permite distinguir informações relevantes e irrelevantes. Em contraste, as pessoas não-poderosas enfrentam mais restrições e ameaças ambientais. A sua dependência incentiva-as a estar mais atentas ao contexto.
Fomos falar com especialistas para tentar perceber se são os portugueses que estão mais sensíveis aos deslizes dos abonados ou são estes que vivem noutro planeta. O que parece certo é que comentar, em cima da riqueza, o estilo de vida que os pobres precisam de adoptar em tempos de crise se tornou uma actividade de risco mediático. Aconselhar a que não comam bifes todos os dias, desafiar os portugueses a "aguentarem" a austeridade como fazem os sem-abrigo ou então descrever umas férias na Comporta como "brincar aos pobrezinhos" pode ser o caminho para desencadear a rebelião das massas, mesmo que até agora elas se manifestem sobretudo no computador.
As frases de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar, de Fernando Ulrich, banqueiro do Banco Português de Investimento, ou de Cristina Espírito Santo, da família proprietária do Banco Espírito Santo, não vão desaparecer tão cedo das conversas de café, dos comentários no Twitter, nos blogues ou no Facebook.
Neste momento, nada joga a favor dos autores destas frases, dizem os especialistas ouvidos pelo i. Contra eles têm o efeito viral das redes sociais ou a culpa de "viverem alheados da realidade", defende a historiadora Maria Filomena Mónica. E sobretudo têm contra eles a ousadia de não estarem calados no pior momento.
Não quer dizer que antes não houvesse desigualdade social, mas a crise económica nos últimos cinco anos agravou este problema.
Soma-se à habitual desigualdade a destruição da classe média, que até estava em ascensão nos anos 80, mas que com esta conjuntura económica está a agora a ser "puxada para baixo", avisa o politólogo António Costa Pinto. Neste contexto, qualquer frase fora do tom pode provocar danos. Qualquer palavra irreflectida é um perigo instantâneo.
Os políticos sabem-no, explica Costa Pinto: "A classe política em geral tem a percepção por exemplo de que é preciso evitar símbolos de riqueza." Consciência aliás que se torna muito mais aguda perante conjunturas de crise que facilitam a estigmatização de estilos de vida das classes mais altas e dos produtos de luxo: "Bastará aliás recordar que durante o PREC os carros de luxo ficavam na garagem."
Não é de estranhar portanto que ambições confessadas em blogues sobre malas Chanel de 3 mil euros ou as análises do banqueiro Ricardo Espírito Santo de que os portugueses prefeririam subsídios a trabalhar recolham tanto ódio nas redes sociais e ganhem tanto espaço na comunicação social.
Mas há "comentários e comentários", defende a historiadora Maria Filomena Mónica. "Há dois tipos de frase que chocam." Frases como a que Cristina Espírito Santo soltou durante a reportagem da revista do "Expresso" e que "mostram a insensibilidade perante a crise e a sua visão das classes mais baixas" e frases que chocam por serem insultuosas e saírem "fora do baralho", como são casos, por exemplo, de ofensas racistas ou xenófobas.
Maria Filomena Mónica está aliás convencida de que os comentários como os de Cristina Espírito Santo são reflexo de parte de uma classe social a viver muito longe do quotidiano da classe média: "Não têm contacto com o mundo exterior. Não conhecem pessoas de outros meios." Os deslizes poderiam até morrer no dia seguinte, não fosse as redes sociais prolongarem o seu efeito: "Os blogues, o Facebook, o Twitter amplificam quase infinitamente este fenómeno e muitas vezes podem distorcer os comentários, pondo frases fora do contexto", adverte Filomena Mónica.
Só que as redes sociais fazem parte dos hábitos de boa parte dos portugueses e são agora os novos pontos de encontro da opinião pública, defende o gestor de marcas Carlos Coelho: "Antigamente eram os cafés que desempenhavam essa função. Havia cafés em todas as cidades e era impossível perceber até que ponto um determinado assunto provocava frenesim entre as pessoas." Agora as redes sociais são rastilhos acelerados que acarretam novas cautelas: "Estas frases podem ser desabafos descontextualizados, mas também podem revelar uma ingenuidade irresponsável."
E haverá casos em que a indignação não está tanto na "frase em si" mas sobretudo em quem faz o comentário, defende Maria Filomena Mónica, dando o exemplo da presidente do Banco Alimentar: "Por vezes, mais que a mensagem é o emissor da mensagem que provoca a irritação das pessoas", explica a historiadora. A postura, a origem social ou a função que desempenham são contextos que ajudam a perceber o impacto que um comentário pode provocar.
O escritor Mário de Carvalho vai mais longe na análise tipo de frases: "Eles não têm culpa. Foram criados assim. O circuito é apertadinho. A prima não sei quê, a tia não sei quantos: chazinhos, passeatas, garraiadas, às vezes ópera para ostentar vestuário e jóias De resto, educação nicles. Dizem 'piqueno' e tratam grosseiramente as pessoas por você. Deplorável miséria mental. Talvez precisassem de umas expropriaçõezinhas para aprender alguma coisa."
Com Kátia Catulo e Nuno Ramos de Almeida