Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Apesar da sensação de desastre, há menos pessoas em situação de sem abrigo.
Um voluntário ligou à coordenadora do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cidade do Porto (NPISA) a queixar-se. Levara um homem ao piquete, três horas depois ainda esperava que a técnica saísse de uma reunião interminável. “Não pode ser!”, insurgiu-se Paula França. Mesmo na reunião preparatória do encontro “Uma vida como a arte. Existimos! Somos Pessoas!” organizado por pessoas em situação de sem-abrigo e que se realiza esta sexta-feira no Porto, ouve queixas destas. Não deixa de fazer a defesa do modelo de actuação comum, que no Porto vai mais longe do que no resto do país. Diz que evita ineficiências, duplicações, discrepâncias.
A Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo, aprovada em 2009, aponta para a organização local. Sempre que o número de sem-abrigo justifique, deve constituir-se um Núcleo de Planeamento, Intervenção a Sem-Abrigo (NPISA) e delinear-se um conjunto de respostas integradas.
Há 17 NPISA. Alguns, como o de Vila Real, só existem no papel. Poucos vão além da articulação entre técnicos. O Instituto de Segurança Social nem consegue esclarecer quantos sem abrigo acompanham. Mesmo lembrando que do plano consta “a promoção do conhecimento nesta área”, remete para dados de 2009.
Está a aumentar o número de pessoas sem tecto na União Europeia, diz Ruth Owen, da coordenação da Federação Europeia de Organizações que trabalham com Sem Abrigo. Por força da crise, mas também de outros fenómenos, como a saída de doentes mentais das instituições.
Vários Estados-membros avançaram com regulamentos a proibir mendigar ou dormir ao relento. Ruth destaca o caso da Hungria, cuja lei prevê 600 euros de multa a quem é apanhado duas vezes em seis meses a dormir na rua – não pagá-la é sujeitar-se à prisão. Mas também encontra exemplos positivos: “A Escócia assumiu um compromisso político forte – ninguém dorme na rua, a menos que queria”. A pessoa dirige-se às autoridades e estas têm de encontrar-lhe um lugar. Portugal aprovou uma estratégia. Pena, diz, “que mal tenha saído do papel”.
De acordo com a estratégia, ninguém deveria ter de permanecer na rua mais de 24 horas. Existiriam centros de emergência – estruturas de resposta imediata, das quais se sairia, com um diagnóstico feito, para alojamento temporário ou permanente. Em lado algum foram criados.
No Porto, por exemplo, entendeu-se que chegam as 83 vagas da Associação de Albergues Nocturnos, apesar de nem sempre darem para as encomendas. Em vez de um centro de emergência, criou-se um serviço de triagem: um atendimento de primeira linha, assegurado, à vez, por técnicos de 12 organizações que fazem parte de uma rede que engloba 64 estruturas formais e informais.
As queixas podem suceder-se: o mapa de turnos não é conhecido por todos; a triagem não funciona ao fim-de-semana; de segunda a sexta, acontece quem está de turno não ser expedito. E a coordenadora reconhece falhas, sem deixar de contrapor: “Quem está sem abrigo não pode esperar um ou dois meses por um atendimento. Agora, pelo menos, é atendido no dia.”
Há cada vez mais voluntários como Fernando Salgueiro, da Abraço na Noite, grupo informal que sai de 15 em 15 dias, com 150 refeições completas e vontade de conversar e distribuir abraços, a tentar convencer quem está na rua a sair da rua. “Só a Segurança Social as pode tirar”, diz.
Há pessoas que estão há muito tempo a viver na rua. Ainda há pouco Fernando lidou com um que afiançava querer sair e voltou atrás. Alguns só acreditam se forem levados até ao quarto. Uns nem por lá aparecem. E é preciso o técnico mandar um e-mail aos parceiros a pedir que avisem se o encontrarem.
Acontece correr mal. Durante a triagem, o técnico traça um pré-diagnóstico e encaminha para um albergue ou para uma pensão. Trinta ou 60 minutos de conversa pode ser pouco. A pessoa pode ter uma perturbação mental ou uma dependência severa e não fazer qualquer referência a isso.
Não é tudo. O albergue pode ser o mais indicado e estar lotado. Um quarto de pensão pode ser mais aconselhável e não haver verba. Só que tudo isso, vai reiterando a coordenadora, uma e outra vez, se pode rever.
A cada sem-abrigo é atribuído um gestor de caso. Há 42 oriundos de 25 estruturas, alguns enfadados com a burocracia que os obriga a sair do seu posto de trabalho e a ir à Segurança Social inserir dados – não aprenderam ainda a trabalhar com a aplicação informática. Cabe-lhe acompanhar a pessoa sempre. Quis-se, com este modelo, introduzir uma componente de afecto.
Apesar da sensação de achaque, o balanço é positivo: em 2009, havia 2715 pessoas a pernoitar nas ruas do Porto, em sítios precários ou em alojamento temporário; no final do ano passado, quando fizeram a última estatística, estavam a ser acompanhadas 1377. Na rua mesmo, persistiam 222.
Agora, a lista do NPISA-Porto está em 1113. Em Outubro, nas rondas pela cidade, membros da Plataforma de Organizações Voluntárias registram 47 pessoas a dormir nas ruas, mas não entraram em bairros nem em fábricas ocupadas. A coordenadora estima que existam umas 200 pessoas nessa situação. Só numa fábrica à entrada do Bairro Pinheiro Torres estão mais de 50.
Parece que o assunto fica arrumado com o alojamento, protesta António Ribeiro, membro da comissão de organização do encontro que se realiza esta sexta-feira no Porto. Uma das maiores dores de cabeça encontrar lugar no mercado de trabalho. O homem está com 63 anos e a sensação de que foi sentenciado.
Uma plataforma para o emprego
Chama-se “Plataforma + emprego” o grupo de trabalho que procura estabelecer pontes entre o mundo dos sem-abrigo e o mundo empresarial. Está tudo a começar, resume Alfredo Costa, coordenador do Welcome.
Passam horas a analisar currículos, a avaliar as possibilidades de empregabilidade, a procurar ou a criar oportunidades. Já identificaram umas 20 pessoas com perfil de empregabilidade. Deverão ir seis trabalhar para uma rede de padarias que se está a expandir na cidade. A aposta parece segura a Alfredo Costa. Serão todos acompanhados pelo respectivo técnico social e pelos membros da plataforma. E isso deverá facilitar a integração, diminuir o absentismo, aumentar a produtividade.
Está a ser o cabo dos trabalhos abrir caminho no mercado laboral. Às empresas explicam que têm incentivos públicos para contratar pessoas com experiência de rua, agora com alojamento temporário ou permanente. E que podem ganhar alguma visibilidade com tal prova de responsabilidade social.
Criaram formação específica. Nesta altura, estão cinco pessoas a fazer uma curta formação de guias da cidade do Porto. Já antes saiu um grupo de seis da chamada Rota da Mudança, um programa inspirado no Unseen Tour de Londres e o Utrecht Underground da Holanda, uma iniciativa da Welcome, que faz parte da Universidade Católica do Porto. Assumindo que os sem-abrigo conhecem bem a cidade e que podem revelar uma “perspectiva surpreendente”, dão-lhe uma curta formação.