Especialistas em direito laboral dizem que redacção da lei sobre desfasamento dos horários é pouco clara quanto ao recurso ao teletrabalho. Governo garante que a modalidade não é obrigatória nas maiores empresas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
As empresas com 50 ou mais trabalhadores nos locais de trabalho (para já, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto) devem “organizar de forma desfasada as horas de entrada e saída dos locais de trabalho”, garantindo intervalos mínimos de meia hora a uma hora entre os grupos de trabalhadores.
Mas, logo a seguir, no mesmo artigo da lei — e é aí que surge a dúvida —, o decreto determina que “o empregador deve também adoptar medidas técnicas e organizacionais que garantam o distanciamento físico e a protecção dos trabalhadores”, enumerando, com um “nomeadamente”, quatro medidas: “a promoção da constituição de equipas de trabalho estáveis, de modo a que o contacto entre trabalhadores aconteça apenas entre trabalhadores de uma mesma equipa ou departamento; “a alternância das pausas para descanso, incluindo para refeições, entre equipas ou departamentos, de forma a salvaguardar o distanciamento social entre trabalhadores; a promoção do trabalho em regime de teletrabalho, sempre que a natureza da actividade o permita; a utilização de equipamento de protecção individual adequado, nas situações em que o distanciamento físico seja manifestamente impraticável em razão da natureza da actividade.”
Para advogados de direito laboral, o que daqui resulta é que o teletrabalho deve ser instituído quando é compatível. Mas o empregador tem o dever de organizar o teletrabalho ou apenas tem essa possibilidade? “A letra da lei diz ‘deve’”, salienta ao PÚBLICO Pedro da Quitéria Faria, notando que a forma como este artigo foi redigido contrasta com o preâmbulo da lei, na qual se diz que “com vista à redução do contágio, institui-se, ainda, a preferência pelo recurso ao regime de teletrabalho, sempre que a natureza da actividade o permita”.
Também o advogado especialista em direito do trabalho Fausto Leite é peremptório em afirmar que, “apesar do uso da palavra ‘preferência’ no preâmbulo, é forçoso concluir que o empregador tem a obrigação de adoptar o regime de teletrabalho, para ‘garantir’ o distanciamento físico e a protecção dos trabalhadores [nos casos em que a actividade é compatível]”. Analisando o preâmbulo e o articulado, diz, esta é “a interpretação sistemática e racional” dos normativos do decreto-lei.
Imagine-se o caso de uma empresa de serviços com 150 trabalhadores, sediada num concelho da área metropolitana do Porto, cuja actividade é na totalidade compatível com o trabalho digital em casa. Se a lei refere que a empresa “deve” promover essa modalidade sempre que a natureza da actividade o permita, o que justifica que não o faça?
A posição oficial
O Governo explica que o espírito da lei foi apenas o de deixar na mão das empresas a forma de organizar, podendo escolher entre o teletrabalho ou a presença nos locais de trabalho segundo as tais regras de desfasamento.
Questionado sobre se as empresas podem ou têm de imperativamente instituir o teletrabalho sempre que a natureza da actividade o permita, o gabinete da ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, respondeu que o decreto-lei “estabelece a obrigatoriedade de o empregador adoptar ‘medidas técnicas e organizacionais que garantam o distanciamento físico e a protecção dos trabalhadores’, exemplificando um conjunto de medidas para o efeito no número 2 do artigo 3.º, cabendo ao empregador a decisão sobre a [medida] ou as medidas a implementar para garantir este fim”.
O gabinete de Mendes Godinho acrescenta que “as situações em que o teletrabalho é obrigatório encontram-se devidamente reguladas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 70-A/2020, que declara a situação de contingência e alerta”, que regula as situações específicas em que o teletrabalho é obrigatório quando requerido pelo trabalhador e sempre que as funções em causa o permitam (por exemplo, para os doentes crónicos, os trabalhadores com deficiência ou com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%).
Outros advogados ouvidos pelo jornal Negócios concordam que a redacção da lei é pouco clara.
Madalena Cadeira, da Abreu Advogados, dizia ao jornal económico que “sempre que seja necessário para garantir o distanciamento físico” e se a actividade for compatível, a empresa “deve impor o teletrabalho aos trabalhadores”. E alertava para a possibilidade de surgirem dificuldades de aplicação. “[O diploma] deixa margem para interpretações abusivas? Deixa. Do empregador, dos trabalhadores e da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT)”.
Também ao Negócios, Nuno Ferreira Morgado, sócio e co-coordenador da área de laboral da PLMJ, afirma que o diploma não é claro. “Diz-se que o empregador ‘deve’ adoptar medidas e depois dá-se vários exemplos. E se o distanciamento físico for garantido com outras medidas?”, afirmou àquele jornal.
Com a clarificação do Ministério do Trabalho, é de admitir que a leitura da ACT se possa aproximar dessa interpretação, pois o Governo, ao fazer este esclarecimento, está a explicitar qual é o espírito que os serviços do Ministério estarão a seguir.