26.10.20

“Vamos sentir durante muitos anos a falta de assistência a doentes não-covid”

Maria João Lopes, in Público on-line

A falta de profissionais de saúde em número suficiente para fazer face aos desafios na saúde, em actividades que digam respeito à covid e fora do âmbito da pandemia, é um problema apontado por muitos responsáveis.

Na semana em que os casos de covid-19 dispararam e os primeiros efeitos se começaram a fazer sentir nos hospitais, escolhemos nove unidades de saúde e fomos falar com quem precisou de lá ir por razões que nada têm a ver com a pandemia. Nuns casos encontrámos filas na rua, salas de espera cheias, queixas de consultas e cirurgias adiadas uma, duas, três vezes... Noutros casos elogios à organização, ao cumprimento de horários de consultas e ao esforço para se recuperar o que ficou atrasado. Mas Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), não tem dúvidas. “Vamos sentir durante muitos meses, possivelmente muitos anos, a falta de assistência a doentes não covid. Estas consequências vão perseguir-nos.”
Que assistência está a ser prestada aos doentes não-covid? Relatos recolhidos em nove hospitais, aqui

O porta-voz do Movimento de Utentes dos Serviços Públicos, Manuel Vilas Boas, acrescenta: “Aquilo que está a acontecer, neste momento, é uma situação perfeitamente inadmissível. Os hospitais estão preocupados, e bem, com a covid, mas as outras patologias que já existiam estão a ficar em segundo plano. Há muitos utentes que não estão a ser tratados, muitas patologias agravam-se e alguns já faleceram por isso.”

Representantes de utentes e de médicos, todos se queixam do mesmo: da falta de profissionais de saúde para dar resposta aos vários desafios. Noel Carrilho diz que, depois da primeira vaga, houve uma tentativa de se recuperar alguma da actividade não-covid, mas que o número de médicos continua insuficiente: “Nos cuidados primários e nos hospitais, sem mais recursos humanos e com a covid a criar condicionalismos cada vez mais graves, não conseguimos dar resposta a tudo. Na parte não-covid, temos um sistema que já era débil, os atrasos já existiam, eram de meses e de anos nas consultas, não é surpresa para ninguém que agora estejam agravados.”

Os sindicatos de médicos reconhecem que está a ser feito um esforço para recuperar essa actividade, mas há dificuldades, além da falta de profissionais, como o receio de alguns utentes em irem aos hospitais, que está a ser ultrapassado,​ e a necessidade de espaçar consultas para não haver aglomerações. Noel Carrilho admite que, mesmo com a pandemia, a “patologia urgente foi-se tentando fazer”, mas há atrasos noutros casos: “Estamos a tentar correr atrás do prejuízo, mas é impossível neste momento todos os doentes serem tratados como deviam porque não há médicos para isso.”

O secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha, corrobora: “Antes da pandemia, as consultas já tinham, em muitas especialidades, cerca de seis meses, um ano de espera. A situação já estava extraordinariamente atrasada, naturalmente com a covid, com o cancelamento de consultas a adiamento de outras, não melhorou, piorou com certeza.”

O Conselho Nacional de Saúde considerou recentemente que a suspensão dos cuidados de saúde presenciais não urgentes por causa da covid-19 durou tempo demais e que a demora no reagendamento pode trazer consequências importantes na saúde da população.

Desde o início do ano até Agosto, os hospitais realizaram um total de 7.120.373 consultas — o que se traduz numa quebra de 12,6% comparativamente a igual período do ano passado, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados a 30 de Setembro. Em Maio, a redução tinha sido de 16%, o que mostra alguma recuperação. Quanto a intervenções cirúrgicas, tinham sido até ao final de Agosto 355.435, uma diminuição de 22,2% (menos cerca de 100 mil) face aos primeiros oito meses de 2019. Em Maio esta quebra estava nos 28,8%, o que mostra uma vez que de lá para cá houve alguma recuperação.