O impacto da pandemia na economia arrisca-se a ter consequências no médio e longo prazo no equilíbrio do sistema de segurança social. Para já, o Governo reduziu em dez anos o tempo de vida previsto para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, revertendo parte do maior optimismo dos últimos anos.
Bastaram dez meses, que incluíram uma contracção recorde da economia e um aumento abrupto das necessidades de apoios sociais por parte dos portugueses, para que, segundo as contas do Governo, se tivesse encurtado em uma década o prazo previsto até ao esgotamento do fundo que serve de almofada financeira para o sistema de pensões. Depois de quatro anos em que se viu o executivo a melhorar sucessivamente as suas previsões para a sustentabilidade da Segurança Social, a pandemia obriga à reversão de uma parte significativa dos ganhos obtidos.
A proposta de Orçamento do Estado (OE) apresentada a 12 de Outubro revela que crise económica trazida pela pandemia mudou de forma significativa as expectativas do Governo em relação à evolução futura das contas da Segurança Social. Entre a proposta de OE para 2020 apresentada no início deste ano e a proposta de OE para 2021 agora em discussão no parlamento, registam-se diferenças acentuadas nas previsões que são feitas para a evolução nas próximas décadas dos saldos do sistema previdencial da Segurança Social e dos valores acumulados no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), que é a reserva financeira destinada a fazer face a futuros défices do sistema.
Desde há muito que se sabe que, por causa da tendência demográfica existente em Portugal, o sistema caminha, caso não se assista a uma alteração das circunstâncias, para uma situação de défices crónicos a prazo, que o FEFSS apenas conseguirá compensar durante algum tempo. O que a crise económica agora vivida veio trazer, mostram os cálculos do Governo, foi uma aceleração deste processo, com os défices a chegarem mais cedo e o fundo de estabilização a esgotar-se mais rapidamente do que aquilo que estava previsto no início do ano, antes da pandemia.
No OE inicial para 2020, na análise da sustentabilidade do sistema de Segurança Social, o Governo apontava que os primeiros saldos negativos do sistema previdencial chegassem “no final da década de 2020”. Agora, na proposta de OE para 2021, continua a dizer o mesmo, mas os números que apresenta mostram que na verdade o primeiro défice é agora esperado alguns anos mais cedo.
Nos números publicados, referentes apenas aos últimos anos de cada década (2030, 2040, 2050 e 2060), verifica-se que se está a antecipar agora um défice bem mais elevado em 2030. No OE 2020, o défice projectado era de 424 milhões de euros e agora é de mais do dobro: 987 milhões. Um resultado mais negativo que faz supor que o primeiro défice se possa verificar alguns anos antes do final da década.
Depois, relativamente ao FEFSS, que começa a ser usado a partir do momento em que se registam défices, as diferenças entre as projecções feitas no OE 2020 e no OE 2021 são muito significativas. Há dez meses, o executivo previa “um esgotamento do fundo na segunda metade da década de 2050”. Agora, estima que “o fundo se esgote na segunda metade da década de 40”.
Concretamente, no OE 2020 era previsto que em 2040 o FEFSS pudesse ter ainda 32.228 milhões de euros a seu cargo, mas agora não se espera que tenha nessa altura mais do que 16.116 milhões, cerca de metade. E para 2050, enquanto antes se projectava que ainda tivesse nos seus cofres 12617 milhões de euros, agora o valor previsto é de zero.
São vários os motivos para esta projecção mais negativa. No OE, o Governo fala, em particular, do “agravamento da situação no ponto de partida”. O ponto de partida é, por causa da contracção histórica da economia registada este ano, realmente bastante pior. Há dez meses, o Governo fazia as suas contas com base num saldo do sistema previdencial previsto para 2020 de 1567 milhões de euros. E agora, a base das suas projecções passou a ser um excedente de apenas 379 milhões de euros em 2021, com a agravante de que o excedente só é garantido graças ao desvio de fontes de receitas do FEFSS para o orçamento da Segurança Social e à transferência de 447 milhões de euros do OE para pagamento das medidas de combate à covid-19.
Depois, relativamente ao FEFSS, para além de as receitas provenientes do saldo do sistema este ano e nos próximos serem mais baixas e de se ter de começar mais cedo a ter de fazer face aos défices, é assumida ainda uma rentabilidade intrínseca do Fundo de 3,3% ao ano ao longo do tempo, quando há dez meses, essa rentabilidade era calculada em 3,58%.
Ainda assim, no sentido contrário, há nas projecções do Governo algumas alterações de pressupostos que até impedem que se assista a uma ainda maior deterioração das estimativas de sustentabilidade do sistema a longo prazo. Por exemplo, utilizando os números da Comissão Europeia, o Governo passou a assumir que em 2060 a população portuguesa será de cerca de 8,9 milhões de habitantes, menos 13,6% do que em 2019, quando anteriormente previa que se registasse em 2060 uma redução de 16,7% face a 2019.
Mesmo assim, melhor que em 2015
Alterações nos cálculos da sustentabilidade do sistema não são uma novidade. Em tempos de crise, com a deterioração dos indicadores, as previsões para o futuro tendem a tornar-se mais negativas. E quando a economia acelera e o desemprego cai, a tendência é para uma melhoria dos indicadores de sustentabilidade.
Este segundo caso verificou-se precisamente entre 2015 e 2020. Os OE apresentados nos anos anteriores à pandemia foram marcados a este nível por um aumento progressivo do optimismo, com o Governo a adiar sucessivamente a data de esgotamento do FEFSS, baseado na previsão de potenciais de crescimento mais elevados, numa situação mais positiva no mercado de trabalho e na expectativa de cada vez maiores receitas do FEFSS.
É precisamente isto que o Governo agora destaca quando questionado sobre a redução do prazo de vida do FEFSS registada na proposta de OE para 2021. Fonte oficial do Ministério da Segurança Social assinala que “a previsão de esgotamento do FEEFS está projectada para a segunda metade da década de 40, projecção semelhante aos anos de 2018 e 2019 e que representa uma melhoria de 17 anos face ao OE de 2015”.
Para Miguel Coelho, economista especializado em Segurança Social, este sobe e desce nas expectativas de sustentabilidade, à medida que a conjuntura de curto prazo melhora ou piora são um sinal de que “as projecções feitas não são robustas, são muito cíclicas, com uma lógica que é de curto prazo”. Mas alerta que, com a presente crise, “as preocupações com a sustentabilidade agravam-se”, destacando os impactos que podem decorrer de “uma alteração no mercado de trabalho cuja dimensão não compreendemos verdadeiramente”. “O novo normal vai ser diferente no mercado de trabalho e o sistema de Segurança Social não está preparado para obter receitas neste novo normal das relações laborais, apenas está preparado para o que é tradicional”, diz.
Armindo Silva, consultor e assessor da Confederação do Comércio e Serviços, também conclui que a alteração nos resultados obtidos só se pode dever à introdução de novos valores para as variáveis conjunturais e alerta que alguns dos pressupostos do modelo que mantém podem ser demasiado optimistas. "As contribuições continuam a crescer ao mesmo ritmo que o PIB, os salários vão continuar a evoluir ao mesmo ritmo que a produtividade e considera-se que a produtividade vai aumentar em valores muito altos - hipóteses que são, do meu ponto de vista, discutíveis”.
O economista Amílcar Moreira também vê alguns motivos para temer que as novas projecções possam ser mesmo assim um pouco optimistas. “É preciso perceber se os ganhos de emprego que estão previstos se vão mesmo concretizar. Este cenário optimista da recuperação de emprego deriva da ideia de que a economia vai recuperar muito rapidamente desta pandemia e eu não tenho tanta certeza assim”, afirma, alertando: “se se confirmarem as expectativas do Governo em termos da recuperação do emprego entre 2021 e 2023, tudo bem, mas se assim não for, vamos assistir a uma degradação da sustentabilidade da Segurança Social no curto a médio prazo”.
Do lado do Governo, aquilo que é considerado essencial para assegurar o objectivo de sustentabilidade é, ao mesmo tempo que se assegura a diversificação das fontes de rendimento, “a estabilização da economia, através da manutenção do nível de emprego e do rendimento dos trabalhadores e, portanto, da receita contributiva”.