27.10.20

Mulheres sem-abrigo não querem ser “invisíveis” — e estão a ganhar voz

Andreia Friaças, in Público on-line

Vivem em situação de sem-abrigo mas o facto de serem mulheres muda as suas trajectórias. Muitas permanecem excluídas dos dados nacionais. Carla não tem casa há oito anos e continua a sentir-se invisível, mas faz parte de um grupo de mulheres que quer mudar isso.

Quarto, albergue, rua. É entre estes cenários que a vida de Carla Emídio tem oscilado nos últimos oito anos. Tudo “descambou” quando foi abandonada pelo companheiro e ficou sozinha a cuidar do filho. Meses depois perdeu o emprego e, mesmo aceitando “todos os trabalhos que apareciam”, acabou por ficar desempregada e sem conseguir pagar a renda, explica Carla, 47 anos. Procurou temporariamente abrigo em casa de conhecidos (há anos que não contava com o apoio da família), mas “chegou um dia em que dormir na rua era a única opção”, recorda.

Em desespero, pediu ajuda a uma instituição em Lisboa, que albergou o seu filho, na altura com 12 anos. “Ficaram com ele e deixaram-me sozinha”, critica. “Foi o descambar da minha vida, nunca imaginei chegar a esta situação. O tempo passou e fiz muita coisa para sobreviver. Não é fácil. Ainda por cima, sendo mulher”.

Desde a violência de dormir na rua até aos obstáculos da maternidade, nos últimos meses Carla tem tido a oportunidade de partilhar as dificuldades acrescidas que enfrenta enquanto mulher em situação de sem-abrigo. Aos sábados, em Lisboa, encontra-se com outras mulheres que dormem na rua, em albergues, edifícios obsoletos, que estão prestes a ser despejadas ou que vivem em casas indignas. No mesmo grupo, há também activistas de vários colectivos que lidam, de alguma forma, com problemáticas das mulheres: grupos feministas, de apoio à habitação, ambientalistas, anti-racismo.

Com cada vez mais pessoas a juntarem-se – actualmente são cerca de 30 – e ao identificarem batalhas e rastilhos comuns nas trajectórias das mulheres, começaram a faiscar a ideia de fazer “uma coisa à séria”, diz Carla. Finalmente, formaram um grupo, chamado Mulheres pelo Direito à Habitação. “Queremos perceber os problemas, encontrar soluções. Mas acima de tudo mostrar que nós existimos”, afirma.

As invisíveis

O último inquérito, partilhado em 2018 no quadro da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, indica que há cerca de 6044 pessoas sem tecto ou sem casa no país – principalmente em Lisboa (3242) e no Norte do país (1596). Este relatório mostra também que 16,15% das pessoas em situação de sem-abrigo são mulheres. Ainda assim, este número “muda consoante a realidade para a qual estamos a olhar”, diz Isabel Baptista, co-autora do presente inquérito e investigadora em várias redes europeias de investigação, como a Women’s Homelessness in Europe Network. “Se olharmos para situações menos visíveis, que não são contabilizadas como pessoas em situação de sem abrigo apesar de o serem, encontramos mais mulheres”, clarifica.

Por exemplo, as mulheres que estão em casas de abrigo para vítimas de violência doméstica não contam como sem-abrigo – ao contrário do que acontece em países como Bélgica, República Checa, Alemanha, Finlândia, França ou Suécia. São também elas que mais procuram soluções nas redes de contacto informais, “dormindo uma noite na rua, outra noite na casa de alguém”, explica Isabel Baptista. Apesar de não terem um tecto, esta situação dificulta serem “incluídas numa contagem [de pessoas a dormir na rua] que se faz numa noite”, diz a investigadora. E quando não têm a quem socorrer, são também elas que mais se resguardam em edifícios obsoletos. “Se ninguém souber que elas lá estão, não são incluídas nos números”, relata.

“As mulheres evitam as situações mais visíveis. Quando alguma vai parar à rua é porque já teve uma história muito longa de tentativas. É como se fosse mais fácil encontrar um homem que tenha uma trajectória mais curta e que tenha ido parar à rua mais depressa do que uma mulher. Isto é um aspecto importante para compreendermos as diferenças de género nesta situação”, conclui a investigadora. Ainda assim, mesmo as que pernoitam na rua, “utilizam estratégias para se tornarem invisíveis”, “dormindo em sítios mais escondidos, o que faz com que muita gente pense que elas não existem”, acrescenta.

Além do receio generalizado do roubo ou da violência, acresce o medo da violência e assédio sexual – crimes em que mulheres continuam a ser as principais vítimas. “A primeira vez chorei a noite toda, não conseguia dormir. Não era só ser roubada, tinha mais medo era que me fizessem mal, que me tocassem”, exemplifica Carla, que dormiu na rua durante cinco anos. Em resposta, procurava guarida em áreas “onde há menos olhares”, como as escadas de igrejas.

É o mesmo receio que leva Carla a evitar dormir em centros de acolhimento mistos. Lembra-se do primeiro onde ficou, durante nove meses: o Exército de Salvação. “Fui bem tratada, mas já vinha de uma situação complicada, e ir para um sítio com muitos homens era complicado para mim”, recorda.

Causas e respostas

As pessoas em situação de sem-abrigo “não são um grupo homogéneo” e “a intervenção deve ser orientada pelas necessidades de cada pessoa”, defende Isabel Baptista. No caso das mulheres, além das causas estruturantes que contribuem para que uma pessoa se encontre numa situação de sem-abrigo (questões de pobreza, precariedade em termos de rendimentos e profissionais, e grande instabilidade em termos familiares e residenciais), há experiências colectivas a ter em conta: “um aspecto claro nestas trajectórias antes da situação de sem abrigo é o abuso e maus tratos na infância ou a violência doméstica”, diz Isabel Baptista.

Nesses casos, é necessário “um apoio especializado que tem em conta o trauma”, ou seja, capaz de “trabalhar o impacto da violência sobre a forma como as mulheres se vêem ou como conseguem desenvolver as suas competências parentais”, explica a investigadora, que lamenta estas respostas ainda não terem especificidade suficiente para trabalhar os efeitos do trauma.

FotoEm Portugal, o conceito pessoa em situação de sem abrigo inclui pessoas a viver na rua, espaços públicos, abrigos de emergência, locais precários (como carros ou casas abandonadas), em alojamentos temporários ou quartos pagos pelos serviços sociais. NUNO FERREIRA SANTOS

Outro padrão verificado nas trajectórias destas mulheres são os filhos – que, muitas vezes, viviam com elas em situações monomaternais. “Há mulheres que estão na rua que têm filhos, mas como eles não estão com elas dão-se respostas a estas mulheres como se tivessem sozinhas”, explica. Ao invés, era importante “perceber como se pode trabalhar na aproximação com os filhos”, acrescenta.

No entanto, tal não é possível quando as mulheres vivem, por exemplo, em albergues partilhados. “Para terem uma vida digna, mulheres e homens precisam de ter um alojamento privado, estável, seguro e com privacidade”, considera Isabel Baptista. “Este é um factor que tem de estar no início do nosso trabalho não é algo que as pessoas têm de merecer no fim”, conclui a investigadora, que adverte ser ainda necessário estabelecer uma maior comunicação entre associações – por exemplo de apoio à habitação e de apoio a casos de violência doméstica.
Trabalhar e não ter casa

Ao longo destes anos, Carla teve uma vida “de altos e baixos” e “voltar à rua” era sempre o resultado de “bater no fundo”. Coincidia habitualmente com a altura em que perdia algum dos inúmeros trabalhos que teve ou com os momentos mais traumáticos na sua vida. Relembra em particular uma das fases mais difíceis que enfrentou. Há uns anos, conheceu uma pessoa e ficou grávida, mas, devido a complicações respiratórias, o filho nunca chegou a sair do hospital e morreu com dez meses. Carla foi novamente abandonada pelo namorado, e, como não conseguia pagar sozinha o quarto que partilhavam, voltou a dormir na rua. “Depois é difícil sair. Ao dormir na rua ficava muito magra, não tinha refeições como em casa. Não estava bem fisicamente. Ia a muitas entrevistas de emprego e não me aceitavam. Sobrevivia a arrumar carros”, exemplifica.

No ano passado, descobriu uma casa abandonada e é lá que dorme desde então. “Não tenho água, nem luz, sei que é uma situação temporária. Mas pelo menos durmo com mais segurança, não durmo à chuva”, explica. A maior alegria foi ter encontrado um colchão. “Fui criando a minha cama com mantas e edredons que as associações davam. Mas há um dia que estou a andar e vejo um colchão na rua, ao lado de uma caixa de electricidade. Pensei ‘isto é um milagre’”, graceja.

Recentemente também encontrou trabalho, a fazer limpezas de vários escritórios, mas como recebe pouco mais de 500 euros não consegue pagar uma renda em Lisboa para viver com o seu filho – que ainda dorme em espaços cedidos por instituições. Também nunca conseguiu ser incluída em programas de habitação social ou de arrendamento acessível – no último concurso houve 2872 candidaturas para 30 casas.

“Eu vou-me levantando. E sei que vou conseguir ter uma casa”, acredita Carla, que acrescenta, de imediato, que a sua esperança tem sido revigorada pelo grupo recém-formado de mulheres. Por enquanto, tenta convencer outras pessoas que conhece a juntarem-se às reuniões. “Falo com elas para ganhar a sua confiança, porque não é fácil dar a cara”, diz Carla que, por exemplo, não revela a sua situação no local de trabalho. Com ânimo, acredita que as reuniões vão “ser cada vez maiores” e já tem um “grande objectivo” que quer levar avante com este grupo: conseguir que as mulheres se juntem, ocupem as ruas e organizem uma “grande” manifestação em Lisboa. “É preciso que nos vejam”.