Atraso no concurso de recrutamento devido à pandemia e elevado número de reformas fazem com que número de utentes sem médico de família dispare. Ministério revela, entretanto, que até Setembro, se aposentaram apenas 217 especialistas, muito menos do que se previa para este ano.
Este ano, o principal concurso de recrutamento atrasou-se vários meses (costuma ficar concluído em Maio), desencadeando protestos dos sindicatos e da Ordem dos Médicos. Soube-se agora que uma parte substancial das 435 vagas abertas, mais de um quarto, ficou por preencher (116), segundo adiantou a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) ao jornal online Health News.
Quando estes novos especialistas começarem a trabalhar, mais de meio milhão de utentes passa a ter médico de família, sublinha a ACSS. A maior parte das vagas ocupadas (141) são na região de Lisboa e Vale do Tejo, que é, de longe, a mais carenciada. No Norte ficaram ocupadas todas as vagas colocadas a concurso (86) e, no Centro, 56. Já o Algarve conta com 24 novos especialistas e o Alentejo, 12.
O Ministério da Saúde esclareceu, entretanto, este sábado que, entre o final de Setembro “e a presente data”, já foi atribuído médico de família a mais 56.534 utentes, “cifrando-se [agora] em 969.310 o número de utentes sem médico de família” (9,4% do total de inscritos). É a primeira vez, em muitos meses, que a tendência para a subida de utentes sem clínico atribuído desce.
O problema é que as entradas de médicos de família não compensam as aposentações estimadas para este ano e os próximos, em que está previsto um pico de aposentações. Segundo as projecções do Ministério da Saúde, se todos os médicos com mais de 66 anos se reformassem em 2020, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) perderia 559 médicos de família e, portanto, quase 900 mil pessoas ficariam sem clínico atribuído nos centros de saúde. Segundo o Ministério da Saúde, até Setembro, reformaram-se 217 especialistas. Mas, mesmo que uma parte dos clínicos optem por ficar durante mais algum tempo no SNS, nos próximos anos haverá inevitavelmente um grande número de saídas, a dos médicos que entraram nos centros de saúde a seguir ao 25 de Abril.
Depois de ter caído para 640 mil há um ano, no final de Setembro passado o número de utentes sem médico de família ultrapassou já mais de um milhão, quase 10% do total de inscritos, o que já não acontecia desde o início de 2016, segundo os dados do Portal da Transparência do SNS. Desde Setembro de 2019, o número de pessoas sem clínico atribuído não parou de subir. Mas no próximo ano a situação será ainda pior, se as previsões oficiais - que apontam para um total de quase sete centenas de aposentações em 2021 - se confirmarem.
“É uma evolução muito rápida [a de utentes sem médico de família ao longo dos últimos meses]”, lamenta o presidente da Associação Nacional de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira. Apesar de considerar que o facto de terem sido preenchidas 319 das 435 vagas em todo o país “não é um resultado mau”, Rui Nogueira lembra que em cada ano se têm vindo a perder cerca de 20% dos especialistas que se formam porque “as condições que o Serviço Nacional de Saúde oferece não são suficientemente atractivas” e há muitos profissionais que preferem ir para sector privado, para o estrangeiro ou ficar a trabalhar à tarefa no SNS na região onde vivem. Já casados e com filhos, muitos decidem ficar a aguardar pelo próximo concurso do que ir para Lisboa e Vale do Tejo, onde a carência de médicos de família é enorme e alugar uma casa é caro.
“Não é possível continuar com a mesma metodologia de concursos, tem que haver um planeamento plurianual para atrair os médicos de forma a possam planear a sua vida. Não podemos dar-nos ao luxo de perder tantos especialistas”, reclama. “Não é só de dinheiro que se trata, é a carreira médica que está moribunda há muitos anos”.
Plano integrado do SNS para o Outono e o Inverno? “Vai ser uma manta de retalhos”
Lisboa e Vale do Tejo “carece de uma solução específica, dirigida”, advoga. Entretanto, sugere, há ainda a hipótese de contratar profissionais reformados e alguns dos médicos que não foram colocados, enquanto a situação continuar complicada.”Não é uma boa solução, seria transitória. Mas é preciso ter autorização para contratar”.
O outro problema é o da saída em massa, por aposentação, que está prevista para este ano, para o próximo e para 2022. “São os fundadores do SNS, os médicos que se formaram em 1979, 1980 e 1981 que estão a sair.” Por isso, apela o presidente da associação, tem que haver “um discurso inequívoco” de apoio e investimento no SNS. “Nunca fez tanto sentido aquela frase que António Arnaut disse ao primeiro ministro antes de morrer: ‘Ó Costa, aguenta lá o SNS!'”.
António Costa tinha prometido que ia dar um médico de família a todos os portugueses até ao final da legislatura, promessa que não vai conseguir cumprir, à semelhança, aliás, do que aconteceu com os ministros da Saúde dos anteriores governos que nunca lograram atingir este objectivo. A ministra da Saúde, Marta Temido, já assumiu, entretanto, que isso não será possível.
No esclarecimento enviado este sábado ao PÚBLICO, o Ministério da Saúde frisa, contudo, que a cobertura por médico de família registou uma evolução positiva desde 2015, permitindo a atribuição de médico de família a mais 532.115 utentes, no final de 2019.