19.10.20

Porque é que os preços das casas não caem em tempo de pandemia?

Vitor Andrade, in Expresso

Ao contrário do que seria de esperar há uma espécie de boom imobiliário em plena crise pandémica. As casas estão cada vez mais caras e a procura não se retraiu

Aexplicação para a aparente contradição entre o mercado imobiliário e e a crise económica passa, essencialmente, por duas curtas mas portentosas expressões que acabaram por entrar no léxico comum, mesmo de quem pouco ou nada percebe de economia: taxas de juros historicamente baixas e “moratórias de crédito” adotadas pela banca em geral. Na verdade, a estas duas pode juntar-se ainda uma terceira: regime simplificado de lay-off. Concebido para ajudar as empresas, mas que em muito ajudou os trabalhadores em geral, perante as dificuldades financeiras entretanto nascidas da crise pandémica.

Pode parecer estranho, mas não é tanto assim. Já lá vamos. Façamos, antes, um pouco de história para percebermos melhor como chegámos aqui. Durante a recessão provocada pela crise financeira de 2008, os preços das casas nos países mais desenvolvidos tiveram uma queda média de 10% (em termos reais), fazendo evaporar biliões de euros da maior classe de ativos do mundo em poucos meses. Agora, na crise gerada pela pandemia, o cenário é completamente diferente.

PORTUGAL BATE MÉDIA EUROPEIA

Desde o confinamento decretado em vários países a partir de março, os preços das habitações não só não estão a cair como estabilizaram e, na esmagadora maioria dos casos, até a subiram. E não foi pouco.

Veja-se, por exemplo, casos como o do Luxemburgo (com um aumento homólogo acima de 13% no segundo trimestre deste ano), da Polónia (10,9%) ou mesmo de Portugal onde a habitação ficou mais cara 7,8%. O mercado português registou mesmo o quinto maior aumento de preços em toda a União Europeia, segundo os dados mais recentes do Eurostat, tendo ficado claramente acima da média dos 28 Estados-membros. Aliás, só em dois países, Chipre e Hungria, é que os preços das casas caíram naquele mesmo período (ver infografia).

Embora desta vez o mercado imobiliário não tenha sido o gatilho dos problemas económicos que se seguiram ao momento em que o mundo assumiu que estava perante uma pandemia, os investidores e proprietários imobiliários ainda se prepararam para o pior. Principalmente quando ficou claro que a covid-19 levaria a economia mundial à sua pior recessão desde a Grande Depressão dos anos 30. Mas esse pessimismo, como refere um artigo publicado há duas semanas na revista britânica “The Economist”, parece ter-se “extraviado”. Os preços das casas aumentaram na maioria dos países mais ricos, com a Europa à frente a exibir valorizações médias da ordem dos 5% no segundo trimestre.

O BOOM IMOBILIÁRIO ATRAVESSOU O ATLÂNTICO

A onda de valorização dos imóveis atravessou o Atlântico e, nos Estados Unidos da América, o crescimento do preço médio por metro quadrado acelerou mais rapidamente no segundo trimestre de 2020 do que em qualquer período de três meses antes da crise financeira de 2008.

Segundo a “The Economist”, há três fatores que explicam essa tendência: política monetária, política orçamental e mudanças nas preferências dos compradores. Quanto à política monetária importa dizer que os banqueiros centrais em todo o mundo cortaram as taxas de juros em dois pontos percentuais em média este ano, reduzindo dessa forma o custo dos créditos hipotecários em geral (para cerca de 3% nos EUA, por exemplo, e ainda mais baixos na UE). Alguns estudos identificam uma forte ligação entre a queda das taxas de juro reais e o aumento dos preços das casas. Ou seja, as famílias podem pagar hipotecas maiores ou mesmo gerir mais facilmente os empréstimos contraídos, evitando, desta forma, a ‘inundação’ do mercado por imóveis a preços baixos.

Ao contrário da crise de 2008, nesta não foi o imobiliário o ‘rastilho’ para a explosão

“E que não haja dúvidas: enquanto as taxas de juro se mantiverem baixas não se preveem quebras de preços na habitação nos tempos mais próximos”, garante Hugo Santos Ferreira, vice-presidente executivo da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII).

Este responsável nota ainda que existe muita liquidez no mercado e que o imobiliário se apresenta como um dos melhores ativos de refúgio da atualidade. Esta convicção é partilhada por Ricardo Guimarães, diretor da base de dados Confidencial Imobiliário: “Há tanta massa monetária disponível que as pessoas até estão a comprar Obrigações do Tesouro a taxas negativas. E só o fazem por falta de alternativas, a não ser, claro, o imobiliário. E é exatamente para aí que vai muito do dinheiro, sustentando os preços em alta.”

MENOS HIPOTECAS, PREÇOS MAIS ALTOS

Em matéria de política orçamental, importa sublinhar que numa recessão normal, à medida que as pessoas perdem empregos e rendimentos, as execuções hipotecárias puxam os preços das casas para baixo, aumentando a oferta de habitação no mercado. Só que, desta vez muitos governos optaram por preservar o rendimento das famílias, concedendo subsídios e vários tipos de benefícios sociais, tanto nos EUA como na Europa e também no Japão.

No segundo trimestre do ano, o rendimento disponível das famílias no grupo dos sete países mais ricos era de 100 biliões de dólares, um valor mais elevado do que o registado antes da pandemia, mesmo com o desaparecimento de milhões de empregos.

Junta-se ainda aqui todo o tipo de moratórias de crédito que permitiu a muitas famílias a suspensão do pagamento dos seus empréstimos à habitação. Nos EUA, as execuções hipotecárias estão no nível mais baixo desde 1984.

“É um facto que as moratórias impediram que muitas famílias colocassem os seus imóveis no mercado por incumprimento no pagamento das prestações mensais. Trata-se de uma autêntica almofada, não apenas financeira mas também de confiança. Evitou que fosse introduzido mais ‘ruído’ no mercado”, sublinha Ricardo Guimarães.

Para Hugo Santos Ferreira, as moratórias de crédito foram determinantes não só para as famílias mas também para a banca que, ao contrário do que aconteceu na crise de 2008, não ficou atolada em carteiras de imóveis de crédito malparado.

A banca está mais bem preparada para lidar com situações de incumprimento

“As moratórias foram concedidas por prazos que permitem perspetivar — tendo em conta as previsões efetuadas por diversos organismos com reputação e credibilidade — que, quando terminarem, a economia esteja já em crescimento sustentado e o emprego também com evolução favorável. Esta crise é uma crise com origem e características específicas, pelo que, normalizada a situação sanitária, a recuperação será rápida. Haverá certamente famílias que não vão ter condições para cumprir, mas a banca está muito mais bem preparada do que na crise anterior para lidar com essas situações”, assegura José Araújo, responsável para o negócio imobiliário no Millennium bcp.

O terceiro fator por detrás do improvável boom imobiliário global está relacionado com as mudanças nas preferências dos consumidores. Ou seja, enquanto que em 2019 as famílias nos países da OCDE dedicaram, em média, 19% dos seus gastos mensais aos custos de habitação, agora, com um quinto dos profissionais do sector dos serviços em teletrabalho, muitos potenciais compradores podem já ambicionar gastar mais na compra de uma casa melhor para viver.

Àquele conjunto de variáveis, José Araújo junta ainda mais uma: “Em termos de oportunidades de investimento as alternativas ainda são limitadas e o imobiliário continua a ser um visto como um refúgio. Há muitos investidores que continuam a comprar, a restaurar e a devolver ao mercado para nova venda ou para arrendar — e sabemos que o mercado de arrendamento ainda não tem oferta suficiente para poder inverter ou fazer abrandar esta situação.”

É precisamente aqui que o economista Francisco Louçã defende alterações de fundo. Sugere que as autarquias criem rapidamente incentivos para a colocação de casas de Alojamento Local no mercado de arrendamento de longa duração. “Isso colocaria pressão sobre a oferta e os preços, naturalmente, começariam a cair.”

Só assim se voltará a criar “vida de bairro” nas grandes cidades. Até lá, as famílias portuguesas, sobretudo as mais jovens, vão continuar a ser “empurradas” para as periferias das principais cidades.

NÚMEROS

5%

foi a taxa média de variação homóloga dos preços da habitação em toda a União Europeia no 2º trimestre deste ano. Em Portugal a variação foi superior à média, e situou-se nos 7,8%

19%

é, em média, a percentagem do rendimento familar gasto com encargos da habitação. Em Portugal ronda os 30%

233

imóveis residenciais foram adquiridos em Lisboa por cidadãos de 31 nacionalidades, durante o 2º trimestre deste ano. O total destes investimentos atingiu os €112,3 milhões

€25,4

milhões foram aplicados por estrangeiros na compra de casas apenas na freguesia da Estrela, em Lisboa, durante o 2º trimestre de 2020