O Expresso entrevista Enrique Villalobos, presidente da Federação de Associações de Moradores de Madrid, num momento em que a capital espanhola se vê abalada por protestos contra s mais recentes restrições à circulação, devido ao recrudescer da pandemia
A pandemia está a inchar em Madrid, região onde vivem as pessoas mais ricas de Espanha, onde ficam os municípios com maior rendimento per capita do país, mas também onde existem os maiores focos de desigualdade e pobreza, sem que o coronavírus encontre resistência à sua expansão imparável. Em plena batalha entre o Governo de Espanha e o executivo regional relativamente a uma fórmula de contenção que salve a capital do desastre socioeconómico que parece adivinhar-se, Enrique Villalobos, presidente da Federação Regional de Associações de Moradores de Madrid (FRAVM), instituição que agrupa 287 organizações da região, traça o retrato da situação que se vive em muitos bairros, municípios e zonas afetados pelas restrições e conclui com uma alerta demolidor: “O crescimento da rebeldia contra a política imposta está a aumentar. As pessoas não vão aguentar muito mais”.
Porque é Madrid a capital europeia da pandemia?
Devido ao cruzamento de distintas variáveis. Por um lado, a política de cortes orçamentais e desatenção à saúde pública aplicadas desde antes de 2010. Por outro, o governo regional não aprendeu nada com a primeira vaga do coronavírus e continua agarrado a uma política de redução do gasto sanitário sem precedentes num estado de emergência. A soma de ambas as circunstâncias leva a que Madrid não tenha médicos suficientes, nem enfermeiros nem administrativos. Para dar uma ideia da situação, há médicos de família a fazer trabalho administrativo ou de rastreio, devido à falta de pessoal especializado. Controlar a evolução do coronavírus nesta situação é praticamente imposível.
A FRAVM opõe-se às las medidas “cirúrgicas” de confinamento decretadas pelo governo de Madrid em bairros e municípios. Porquê?
Principalmente por dois motivos. O mais importante, sem dúvida, é a sua ineficácia para atacar a pandemia. Confinaram bairros inteiros, mas permitem que os habitantes saiam para ir trabalhar noutros pontos da cidade, em meios de transporte com alta exposição ao vírus, porque circulam cheios. O segundo motivo é que isto serviu para marcar bairros e municípios pela sua condição socioeconómica. São zonas populares e municípios operários da área metropolitana, as zonas mais vulneráveis da capital.
Que situação se vive agora nessas zonas?
Existe uma profunda sensação de rebeldia contra essas medidas, e está a aumentar. As pessoas não vão aguentar muito mais. É gente que suporta situações extremas há muitos meses e a única forma que arranjaram para seguir em frente foi a organização popular, as redes de apoio entre vizinhos e os cabazes solidários de alimentos. Foi assim durante a primeira vaga da pandemia, porque o Estado não chegou a tempo nem estava preparado para ajudá-las, e volta a ser assim. O mais desanimador é ver que os habitantes foram disciplinados com as medidas impostas, apesar das suas condições de vida muito inferiores a outras zonas de Madrid, enquanto os moradores dos bairros com alto poder de compra se comportam de qualquer maneira, sem que nada aconteça.
Considera que há segregação por razões económicas?
Sem dúvida. Isso foi dito pela própria presidente autonómica, Isabel Díaz Ayuso, num debate da Assembleia Regional, há duas semanas. Para ela, a forma de vida das pessoas que moram nos bairros confinados é propensa a propagar os contágios, devido ao seu comportamento. Afirmar isto é muito grave, porque denota um classismo antigo, segregador. Não compreende que o problema não é a forma de vida, mas as condições de vida que existem naqueles bairros.
O governo regional defende as medidas seletivas porque confinar a cidade de Madrid inteira levaria a uma catástrofe económica para Espanha. Partilha essa opinião?
Todo o confinamento é traumático e dramático. O da primavera foi assim. É verdade que há cidades, e Madrid é uma delas, que desempenham um papel de locomotivas da economia de um país. O que surpreende é que, dada essa condição, não tenham sido tomado as medidas preventivas recomendadas após a primeira vaga da pandemia. Houve muita improvisação no regresso à atividade económica e muita controvérsia interna. A diretora-geral de saúde pública da Comunidade de Madrid apresentou a sua demissão irrevogável, em junho, porque não concordava com a mudança de fase proposta pelo governo regional. Madrid não estava preparada para voltar à normalidade, porque os seus responsáveis decidiram dar prioridade aos critérios economicistas sobre os sanitários.
Há algum modelo que Madrid possa seguir para reverter a situação atual?
Talvez Nova Iorque, onde o desconfinamento foi lento, muito cuidadoso, com ocupação do espaço público sem precedentes, transferência da atividade para o ar livre e controlos muito rigorosos no seguimento dos contágios. A aplicação destas medidas tornaram-na referência na luta contra a pandemia nas grandes cidades. Esse exemplo invalida a previsão madrilena de que parar a economia provocaria o caos e levaria ao colapso de Espanha. Foi mesmo ao contrário. Invistam em saúde e transporte. Apostem no espaço público, na mobilidade em bicicleta, e abandonem já o modelo vigente porque o descalabro económico que se aproxima será ainda maior. O governo de Madrid tem um problema agravado: em junho recebeu 1500 milhões de euros para a abordagem à pandemia e ninguém sabe onde os investiu. Em saúde pública é claro que não foi.
Que faz a oposição política numa situação tão crítica como a que descreve?
A oposição esteve às voltas, aturdida, em pequenas guerras internas, sem rumo claro, embora agora pareça reorganizar-se e começar a reagir. Quero acrescentar outra coisa: o Partido Popular [da presidente Isabel Ayuso] não foi o mais votado nas últimas eleições em Madrid. Foi o Partido Socialista Operário Espanhol, que não conseguiu articular uma maioria.
O primeiro-ministro socialista Pedro Sánchez e a presidente do governo regional de Madrid, a conservadora Isabel Días Ayuso, não têm sido capazes de convergir
Como é Isabel Díaz Ayuso?
Conto-lhe uma coisa. Quando começou a pandemia, nasceu uma vontade generalizada de deixar de lado as diferenças e combater a crise entre todos, em ajuda mútua. Relançou-se uma espécie de espírito colaborativo para procurar soluções para uma situação inédita. E houve muitas tentativas. Aconteceu na Câmara Municipal de Madrid, onde também governa o PP com o Cidadãos [centro liberal], e correm bem. Na região, contudo, foi o inverso. O governo autonómico chegou a rir das propostas de diálogo. Ouvimos discursos da presidente a gozar com o líder da oposição, Ángel Gabilondo. O frentismo político chegou ao extremo de exigir uma intervenção do vice-presidente Ignacio Aguado, que é do Cidadãos, para aproximar posições, mais tarde desautorizada pela própria Ayuso. Tudo isto em pleno desenvolvimento da pandemia. Em Madrid nunca se formou um gabinete de crise para a covid, porque não o consideraram necessário. Toda a energia e trabalho foram concentrados na oposição ao Governo de Espanha. Essa forma “trumpiana” de encarar a realidade deixou toda a gente despistada, especialmente a oposição, que não quer acreditar que a maior crise dos últimos 80 anos seja dirigida em Madrid por uma espécie de bombeiro pirómano, como Isabel Díaz Ayuso.
O líder do PP, Pablo Casado, acusou o primeiro-ministro Pedro Sánchez (PSOE) de agir contra Madrid “por motivos políticos e não científicos”. Há motivos para pensar assim?
Soa a piada. Pedem tratamento especial para Madrid por ser capital, pelo seu peso no Produto Interno Bruto nacional e pela demografia, mas quando comparam Madrid com outras cidades na medição do impacto da pandemia, escolhem Cuenca, uma cidade muito pequena. Em que ficamos? Não era a locomotiva económica do país? Madrid pode ser comparada, como é lógico e como sempre se fez, com Barcelona. Vejamos se resiste à comparação. Se o resultado der razão a Casado, estou certo de que toda a gente aceitará a sua crítica.
Os governos espanhol e madrileno tentam assinar novo cessar-fogo, o segundo em sete dias. Acha possível?
O clima prévio não ajuda. Entendo que uma negociação consiste em ceder em parte das exigências para aproximar posições e propiciar o acordo. Não sei se neste caso os protagonistas terão a habilidade de identificar onde ceder para saber quem ganha nesta crise.
Mas a negociação está atolada no primeiro ponto: confinar ou não a cidade de Madrid.
É verdade. Creio que uns e outros não percebem que ganhar ou perder significa que ganhem ou percam os cidadaos, não os partidos ou as empresas. Estamos a falar de pessoas e do seu futuro. Dá a impressão de que o primeiro gesto de ceder, o “toma lá, dá cá” da Teoria dos Jogos, foi feito pelo Governo de Sánchez. Mas há uma variável que diz que caso a outra parte responder com competição, a jogada seguinte deve ser de mais competição. Aqui ganha sempre o mais forte. É pena optarem por esta via, porque a única solução viável passa pela cooperação.