Ana Maia, in Público
O Observatório Português do Sistema de Saúde deixa possíveis explicações: a disrupção das equipas, o aumento do absentismo e a concorrência do sector privado. Relatório da Primavera destaca também importância da definição de uma estratégia para os cuidados domiciliários.
O Relatório da Primavera faz uma análise à sempre polémica e polarizada discussão entre a ideia de que “faltam profissionais” e a de que “nunca o SNS teve tantos como agora”. A conclusão é que de facto o número de profissionais no SNS aumentou, mas isso não se traduziu num crescimento da produtividade. As explicações avançadas para que tal tenha acontecido são a disrupção das equipas, o aumento do absentismo e a concorrência do sector privado.
Diz o relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde apresentado esta terça-feira que entre Março de 2016 e Março de 2022 registou-se um aumento de mais de 30 mil profissionais de saúde. Mas que os relatos de falta profissionais no terreno “têm sido contínuos”. É este cenário que leva Julian Perelman, autor deste capítulo, a fazer “um exercício simples” para perceber este fenómeno. O professor da Escola Nacional de Saúde Pública usou os dados do Portal do SNS para calcular o número de serviços prestados (consultas dos cuidados de saúde primários e hospitalares, cirurgias, internamentos, etc) e dividi-lo pelo total de profissionais do SNS, para calcular o valor da produtividade para cada ano. Calcularam também o custo médio por serviço.
Embora refira que a interpretação dos valores “deve ser cautelosa”, fala de “uma certa tendência, com diminuição da produtividade e aumento contínuo do custo médio”. O mesmo tipo de análise foi feito com base no total de horas anuais realizadas pelos profissionais de saúde. Neste caso, foram usados os dados do Relatório Social do Ministério da Saúde de 2018, o último publicado. Os resultados “confirmam a tendência de diminuição” da produtividade. Julian Perelman destaca que esta erosão “já se notava antes de 2020” e apresenta três possíveis explicações.
Por um lado, “a disrupção das equipas”. A passagem das 40 para as 35 horas semanais obrigou à contratação de novos profissionais, não sendo possível esperar “que todas as actividades possam continuar ao mesmo ritmo e com a mesma qualidade, como se nada tivesse acontecido”. Uma segunda explicação é o “aumento do absentismo”, que entre 2015 e 2019 aumentou de 11,2% para 12,4% e que chegou a mais de 20% durante a pandemia.
“Resta perceber quais as causas de um absentismo de tamanha dimensão” e que podem ser várias: o elevado desgaste dos profissionais, as condições de trabalho pouco satisfatórias, a falta de controlo da assiduidade. Há ainda uma terceira explicação: a “concorrência do sector privado”, motivada pelas condições menos satisfatórias do serviço público e o maior desenvolvimento do sector privado. Uma combinação que “poderá ter contribuído para uma excessiva rotatividade e para a destruição das equipas”.
Sendo o número de profissionais limitado, público e privado concorrem para a sua contratação. E o SNS sai a perder, porque ao contrário do privado o sistema de contratação é burocrático e sem liberdade para negociar valores e horários. Junta-se o facto de o privado se ter centrado prioritariamente em intervenções que são relativamente menos complexas, oferecidas a uma população mais saudável, traduzindo-se numa oferta de condições de trabalho mais favoráveis.
É a dedicação plena a solução?
No relatório, Perelman recorda que a dedicação plena tem sido apontada como a solução para reter profissionais. Para já, este modelo, que implica um compromisso assistencial a definir, será só para alguns médicos. O investigador aponta vantagens, como o facto de não se dirigir a profissionais em fim de carreira que já ficariam no SNS e de haver um compromisso que contribua para os objectivos do SNS. Mas deixa um aviso: este modelo poderá não atingir os benefícios esperados “sem uma verdadeira reforma profunda da governação do SNS”.
É preciso que cada hospital possa definir as metas a atingir com cada profissional, que estas sejam exequíveis, monitorizáveis e que os valores pagos “possam enfrentar a concorrência do sector privado”. Mas é preciso também que as condições de trabalho sejam melhoradas, com por exemplo maior flexibilidade nos horários, permitindo aos profissionais fazer investigação ou estudar. Fica ainda uma palavra para quem defende que o caminho é entregar o SNS ao privado. Perelman refere que esta solução teria custos exorbitantes e que seria preciso haver concorrência entre o sector privado, o que não está garantido com um sector dominado por três/quatro grupos privados e que deixaria de conviver com a concorrência do SNS.
Manuel Lopes, porta-voz da coordenação do Relatório da Primavera, salienta que “ainda ninguém percebeu qual o alcance da dedicação plena”, considerando que é preciso que existam indicadores que avaliem o impacto dos cuidados na saúde e que isso não depende apenas do número de actos. Afirma que esta opção não deve ser limitada apenas a uma área profissional. “Não conheço nenhum problema de saúde que seja simples. Problemas complexos requerem muitas competências de muitas pessoas”, diz, recordando que é esta a lógica das unidades de saúde familiar em que os contratos são feitos com equipas de saúde.
Salientando que o Observatório não é oposição e que está do lado das soluções, refere que “o discurso instalado é o de voltar aos números pré-pandemia”. “A nossa questão é se queremos fazê-lo da mesma forma. A pandemia deixou mazelas graves. Deixaram-se de procurar serviços ou procuraram-se mais tarde, as doenças ter-se-iam desenvolvido de outra forma se não fosse a pandemia. Oferecer a mesma coisa que antes da pandemia provavelmente não é resposta correcta”, diz.
Há uma outra questão. “O perfil epidemiológico está a mudar há 40 anos e o SNS ainda não mudou. Temos muitas pessoas com multimorbilidades e o perfil de consultas está desenhado para doenças agudas. O número de consultas pode crescer, mas os resultados em saúde poderão ser os mesmos. Temos de introduzir novas variáveis”, diz.
Cuidados em casa
O relatório também salienta a importância dos cuidados domiciliários como forma de garantir acesso aos cuidados de saúde. O apoio a doentes em casa é assegurado pelos cuidados de saúde primários, através de equipas na comunidade, na área hospitalar, com a hospitalização domiciliária, pelos cuidados continuados e também pela Segurança Social, com apoios sociais. A esta equação é fundamental juntar os cuidadores informais, salienta o relatório. Mas a articulação entre todos não se tem revelado fácil.
“O que está em causa é qual é a estratégia, a quem é que o cidadão precisa de se dirigir para pedir o quê. A proliferação de siglas é tão grande que até os profissionais têm dificuldade em saber o que significam todas. Organizemos esta oferta para que seja feita em proximidade e que responda ao princípio da continuidade de cuidados. É o serviço, estruturado, que oferece resposta ao que é preciso em cada momento”, defende Manuel Lopes, que foi coordenador para a área dos cuidados continuados integrados, afirmando que os cuidadores informais “são vitais nesta estratégia”. Quanto às dificuldades sentidas no terreno pelo terreno, resultantes de uma gestão que é feita pelos ministérios da Saúde e do Trabalho e Segurança Social “podem ser ultrapassadas por estratégias locais de saúde”, envolvendo as diversas entidades que estão no terreno e em proximidade e com indicadores que permitam medir resultados.
Olhando para os diferentes tipos de respostas, o relatório que o número de lugares afectos às equipas de cuidados continuados integrados diminuiu em todas as regiões, entre 2016 e 2019. Manuel Lopes explica que este modelo acabou por não ser desenvolvido de igual forma em todo o país e que por isso havia equipas que tinham um número definido de lugares que não estava de acordo com o número de recursos humanos disponíveis. Mas apesar desta redução, em algumas regiões a taxa de ocupação não aumentou, o que significa que os recursos não estão a ser usados na totalidade. “Temos potencial para melhorar muito. A comunicação tendente a criar percursos e continuidade é estratégica e carece muito de desenvolvimento”, aponta.
“A estratégia da saúde não é apenas do Ministério da Saúde, tem de ser do Governo”, diz Manuel Lopes, salientando que uma mudança estrutural do SNS “não é trabalho para uma legislatura”. “Tem de haver um trabalho de fundo para um pacto. A sociedade tem de ter ideias claras e decidir se quer ou não ter um SNS solidário, que é o que temos. E se não quiser, tem de ter consciência das consequências e a alternativa são seguros de saúde. Para nós, a saúde tinha de se assumir como uma estratégia nacional e de ter uma plataforma de entendimento que garanta reformas em continuidade no tempo em nome de um conjunto de princípios.”