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26.5.23

As crises financeiras da crise climática: quando o risco se torna a certeza

João Camargo, opinião,  in Expresso



A perda de recursos e territórios hoje já não é uma visão do futuro, mas da atualidade e do passado recente. Se olharmos para os últimos dois anos, o pós-pandemia revela um desdobramento acelerado da crise climática em sucessivas crises financeiras. A queda de rentabilidade global do capitalismo continua, com custos crescentes e rendimentos decrescentes e a crise climática já é e tornar-se-á cada vez mais o principal factor da atual e das futuras crises financeiras


Os recentes lucros das grandes empresas multinacionais em 2022 poderiam parecer indicar uma reversão da tendência histórica para a queda global de lucros das últimas décadas, mas são apenas um soluço. Resultam de um assalto em grande escala permitido pelos governos a quem controla os principais monopólios do capital global.


A espiral inflacionista em que ainda vivemos foi espoletada pela opção das empresas petrolíferas de usarem o monopólio sobre o sistema energético para compensarem as quedas de lucros durante os lockdowns do Covid. Isto ocorre depois de décadas em que viciaram a economia em combustíveis fósseis numa aliança com o mainstream político, com a complacência e por vezes até acordo de partidos verdes e de esquerda. No entanto, todos os acordos sociais foram rasgados e agora só sobra a barbárie. Em cima deste assalto produzido pelo imposição de preços altos sem paralelo - e a economia política de hoje é principalmente preços fixados arbitrariamente pelos donos dos fluxos de capital, energia e materiais do sistema -, outros desequilíbrios fora do controlo da elite já estão a manifestar-se.


Em 2022, o Paquistão foi submerso pelas maiores cheias da sua história, tendo um terço do país ficado debaixo de água, com mais de 33 milhões de pessoas deslocadas para outros locais e outros países. O Paquistão é (era) um dos maiores produtores mundiais de algodão e de têxteis. Os preços dos têxteis, de quase toda a espécie de roupas, dispararam. Partes do Paquistão continuam debaixo de água. Várias das pessoas que foram deslocadas não voltarão para onde estavam. A probabilidade de mega-monções voltarem a acontecer nos próximos anos é elevada. A onda de calor que neste momento devasta o continente asiático fez, em plenos meses de temperaturas moderadas como Março ou Abril, baterem-se recordes na China, Índia, Bangladesh, Tailândia, Vietname e Laos, entre outros, acima dos 43ºC e até dos 45ºC. Muita produção neste países, se não foi parada, foi atrasada ou reduzida. Esta onda calor coincide com territórios de elevada humidade, pelo que mortes em grande escala já se verificam (diretamente pelo calor e indiretamente com pessoas com dificuldades de saúde, muito jovens ou idosas).

A abundância da produção de algodão e de têxteis a nível global foi comprimida, os preços aumentaram e, necessariamente, não será possível voltarmos aos níveis anteriores sem novas disrupções.


As colheitas de milho, trigo e arroz foram afetadas pela seca nos Estados Unidos, na Europa e na China. Na Califórnia plantou-se a menor área de arroz desde os anos 50 do século passado e a colheita será cerca de metade do que num ano “normal”. Nos Estados Unidos, a colheita de trigo de inverno caiu 25%. A disrupção do fluxo de cereais no Mar Negro por causa da invasão russa da Ucrânia acrescentou sobre esta diminuição drástica da oferta ainda maior disrupção, aumentando ainda mais os preços globais de cereais, de pão, de massas. Parte da produção poderia recuperar em 2023 se não vivermos um verão escaldante no Hemisfério Norte, mas até agora a seca histórica no continente euro-asiático e na América do Norte continua. A agricultura na mega-artificializada pradaria plástica do Sul de Espanha sofre quedas drásticas de produção e faz disparar o preço dos legumes e vegetais em toda a Europa. O Alqueva e a absurda quantidade de culturas irracionais altamente dependentes de água praticadas no Alentejo está no limite da viabilidade, consumindo água que não regressará.


Apesar de termos vivido a pior seca na Europa desde o século XVI e a pior seca da história da China em 2022, este foi um ano em que o fenómeno climatológico La Niña contribui para uma redução global da temperatura. Em 2023 tal não vai acontecer, e provavelmente durante o ano o El Niño formar-se-á no Oceano Pacífico, levando a um aumento global da temperatura.


Já vivemos noutro planeta e não naquele onde foram criadas todas as relações de exploração, as instituições e o sistema bancário e financeiro que consolidaram o capitalismo.


Para combater o aumento da inflação, os bancos centrais e os batalhões de economistas formadas nas escolas de capitalismo suicida escolheram fazer aquilo que aprenderam: aumentar as taxas de juros, para tirar dinheiro da economia e fazê-la comprimir. Quem tinha um empréstimo viu o seu valor aumentar, enquanto os preços de todos os bens aumentavam também. As empresas que tinham empréstimos - todas, portanto - viram os seus custos de funcionamento aumentarem, o que aumentará a compressão salarial, levando eventualmente a despedimentos e, em alguns casos, a bancarrotas.


O Silicon Valley Bank nos Estados Unidos faliu por causa da subida das taxas de juro, porque era um banco especializado em dívida, com grande quantidade de investimento em títulos de tesouro de longo prazo do governo americano, considerados provavelmente o investimento mais seguro da economia mundial.


O que aconteceu com o Silicon Valley Bank e com outros repetir-se-á no futuro. O contágio a outros bancos será cada vez mais frequente e, com preços mais altos, acontecerá por outros meios. O endividamento das famílias está a aumentar para combater os preços elevados. Como os raros aumentos salariais que ocorrem são abaixo da inflação, só para manter níveis de vida similares aos anteriores o nível de endividamento está a subir. Como a probabilidade do preço dos combustíveis fósseis controlados por multinacionais privadas baixar significativamente é muito reduzida e como as catástrofes climáticas como as secas, as cheias e os incêndios florestais estão a tirar a capacidade geral de produção de bens e serviços à escala global, a crise climática continuará a exprimir-se diretamente como uma crise de custo de vida.

A subida do nível das taxas de juros aumentou ainda mais na dívida pública dos países mais pobres, sobrecarregados por juros de dívidas históricas, a fatura do Covid-19, os preços de todos os bens inflacionados e os crescentes fenómenos climáticos extremos. Os países do Sul Global que seguiram as ordens das instituições internacionais financeiras e de crédito (em particular o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) tornaram-se importadores de comida e abandonaram à sua sorte camponeses e pequenos produtores locais em favor das multinacionais do agronegócio. Tornaram-se maioritariamente dependentes da importação de comida que era “barata” mas já não é nem voltará a ser. Em mercados liberalizados os estados já têm de adquirir e distribuir comida, aumentando dívidas públicas, tendo de contrair novos empréstimos e deixando de pagar outros. A fatura do neocolonialismo nunca pára de chegar e com a crise climática agrava-se.


As dívidas crescentes vão, em quantidades cada vez mais maiores, não ser pagas. Isto significa mais dívida pública, mais dívida privada e também mais bancos a falirem. Mas talvez seja possível cobrir isto tudo com seguros, não?

Os prémios de seguro globais estão em ascensão porque o risco está a deixar de ser risco para passar a ser certeza. A estreita relação da banca com os seguros garante que cada catástrofe climática é também uma crise financeira. E, considerando que o risco está a transformar-se ou a aproximar-se de uma certeza em muitos casos, há cada vez mais seguradoras a recusarem assegurar investimentos, projetos industriais, construção em zonas perigosas, colheitas em zonas de risco de inundação ou seca, e os próprios seguros gerais sobre prédios, transportes e outras áreas. Recusam-se porque o seu negócio é fazer lucro e porque a anterior distribuição vantajosa de risco já não se verifica. Todos os riscos são muito maiores e o risco de grandes catástrofes climática é generalizado. Mesmo quando as seguradoras não se recusam a fazer os seguros, aumentam os prémios e portanto tanto pessoas como empresas estão a pagar mais para ter seguros (muitos deles obrigatórios e diretamente associados a créditos). Se considerarmos uma zona como o Paquistão, que está ano sim, ano não, debaixo de água, ou um estado como a Califórnia, uma das mais importantes áreas agrícolas dos Estados Unidos, que neste momento tem incêndios anuais a devastar permanentemente vastas áreas e até cidades, que companhias de seguro poderão alguma vez assegurar todos os danos provocados? Nenhumas.

Quem pagará estes desastres? As pessoas desses países através do Estado, o último garante. Isto acontecerá com países ou territórios onde o Estado é rico, como a Califórnia. Em casos como Paquistão, a resposta é que ninguém pagará esses desastres na sua totalidade. Os estados, para pagarem essas catástrofes produzidas pela indústria fóssil, terão de endividar-se mais, aumentar impostos ou desviar receitas de atividades como Educação ou Saúde para recuperação - em capitalismo podemos dar como certo que o financiamento do aparato repressivo, a polícia e os exércitos, não será tocado, em particular porque o descontentamento social não tem como não aumentar.

O aumento do custo de vida já é uma consequência da crise climática e os preços altos são e continuarão a ser impostos às pessoas porque a oferta geral de bens e produtos está em queda. Todas as debilidades já existentes antes - fracos sistemas de saúde, monopólios energéticos, parque habitacional indisponível, mal construído, turistificação de cidades, falta de transportes públicos de qualidade, trabalho precário de massas - serão exacerbadas. Os sistemas de saúde ficam à beira do colapso, as pessoas não conseguem pagar rendas, não se conseguem deslocar para trabalhar sem custos exorbitantes, deixam de pagar contas e dívidas. E os bancos ameaçam, despejam, processam, mas não há dinheiro para salvá-los: crise financeira. Não pagando as pessoas diretamente, pagam os Estados, novamente o último garante do sistema financeiro, reduzindo serviços públicos e capacidade social, aumentando dívidas públicas e sendo pressionados a vender activos públicos e hipotecar o futuro.


E dir-nos-ão sempre que é necessário salvar a banca, porque senão toda a economia colapsa. Garantirão o colapso da sociedade para salvar a banca, uma vez mais. No entanto esta não é igual às crises financeiras anteriores.

Os modelos económicos e financeiros não estão desenhados para a crise climática. Basta olhar para o prémio Nobel da Economia de 2018, William Nordhaus, para percebermos isso. Os seus modelos, considerando o custo-benefício abstracto, dizem que poderíamos permitir um aumento de temperatura global até aos 4ºC. É insano. E é com base em cálculos destes que inúmeras propostas políticas são construídas, com o apoio das petrolíferas. Neste momento, temos um aumento global de temperatura de 1,1 a 1,3ºC e já há escassez de recursos e produtos à escala global. Mais um grau e não só não haverá remotamente a quantidade de produtos necessários para manter milhares de milhões de pessoas, como não existirá comércio international como algo previsível ou estável.

A maneira exacta como as crises financeiras da crise climática se desenrolarão é tão diversa e múltipla como a economia capitalista: bancarrotas por causa dos preços altos ou das taxas de juros, crises imobiliárias, crises monetárias quando um país fica de baixo de água, crises de dívida quando a produção nacional e a receita fiscal caem ou é preciso salvar bancos, empresas ou seguradoras, ativos encalhados quando um governo decide apostar num projeto falhado e absurdo - não podemos deixar de apontar aqui a estupidez do projeto de um novo Aeroporto em Lisboa, da cascata de barragens para fazer um “Alqueva do Tejo”, dos milhares de projetos imbecis que pululam na imprensa nacional e internacional todos os dias.


Nenhum governo do mundo está a fazer ou sequer a planear os cortes de emissões necessários para travar o aumento de temperatura abaixo dos 1.5ºC, o que pode acontecer nos próximos 4 anos. 2022 foi o ano com mais emissões de gases com efeito de estufa alguma vez registado, e bateu o recorde de 2021. Nos últimos 30 anos as emissões de gases com efeito de estufa só pararam de aumentar na crise financeira em 2008 e na pandemia de 2020.


Com um aumento de temperatura global de 1,1ºC a 1,3ºC já estamos numa crise financeira geral de falta de rendimento geral do capitalismo, apesar da propaganda neoliberal de que vivemos no melhor de todos os mundos. A qualidade de vida está em regressão por todo o mundo por causa da crise climática e do sistema em que vivemos, que recusa-se a resolvê-la. Os investimentos rentáveis das últimas sete décadas já não existem. É por isso que vemos tanta excitação e propaganda com inteligência artificial, criptomoedas e outros ativos intangíveis. São a procura pelo rendimento que hoje tem de se basear essencialmente na alienação e em produtos cuja verificabilidade é baixa. O tempo em que investir em cimento, carros, fábricas, estradas e construção eram garantias de lucro (mesmo que intermediado e favorecido pelo Estado, com base na ideia de crescimento e rentabilidade futura garantida) acabou.


Por outro lado, a alienação é generalizada entre a população e portanto torna-se muito difícil traduzir que as crises financeiras em que o capitalismo sempre viveu agora também têm uma ligação umbilical à crise climática. É na base dessa compreensão que se podem e devem fazer algumas das alianças anti-sistémicas essenciais a uma ruptura política.



A crise climática será a mãe de todas as crises financeiras, porque é a crise fundamental da espécie humana e irá repercutir-se em todos os sistemas humanos. A preponderância do mundo financeiro nas nossas sociedades significa que também será muito por aí que veremos o mundo a arder, económica e politicamente.



A escolha de desenhar programas políticos que abandonam a necessidade do encerrar com urgência a indústria fóssil ou que baseiam a solução da crise em aumentos de salários que não impliquem nenhuma redistribuição fundamental de poder são propostas quase tão alienadas como as propostas da elite capitalista.



Temos de puxar o travão de emergência para travar o caos. O movimento pela justiça climática propõe-se realizar essa tarefa histórica porque é um movimento deste tempo, do tempo em que estamos numa locomotiva desenfreada rumo ao caos. O que vai acontecer a seguir? A seguir a travarmos o comboio descontrolado? Toda a confusão necessária a reconstruir sistemas sociais e produtivos de maneira diferente e divergente da maneira monopolistica, concentrada, alienada e destruidora como as elites construíram o capitalismo. O que vai acontecer se não travarmos o comboio? O colapso de todos os sistemas que permitiram a existência de civilização humana nos últimos 12 mil anos. Não vamos por aí. Seremos o travão de emergência que o nosso tempo exige.

8.3.23

“Não há justiça climática enquanto não houver justiça de género”

Aline Flor, in Público online

A acção climática precisa das mulheres para conseguir resultados? A igualdade de género tem de ter uma dimensão ambiental?

Nos últimos anos, cada vez mais, a dimensão de género é trazida para a mesa de todos os assuntos. Mas como é que se traça a ligação entre o combate às alterações climáticas e a igualdade de género? É possível falar dos problemas das mulheres actualmente sem incluir as questões relacionadas com o ambiente e o clima?

As mulheres são as primeiras a sofrer o impacto das crises - a crise climática não é excepção. “Diria que a ligação é quase natural”, responde de imediato Susana Viseu, que preside à associação Business as Nature, promotora do movimento Mulheres pelo Clima, e é conselheira do Presidente da República para as questões ambientais. “Em grande parte do planeta ainda temos um papel fundamental nas comunidades e somos responsáveis por assistir à família e assegurar alimentação e o acesso à água”, explica a empresária. Somando-se a isto as discriminações económicas e sociais que ainda são globais, as mulheres fazem parte dos grupos mais vulneráveis aos efeitos da crise climática, incluindo catástrofes naturais e fenómenos extremos que se estão a intensificar.

“As mulheres acabam por ser não só as mais afectadas, mas também quem está na linha da frente para a recuperação nas situações de emergência” Susana Viseu

Pela sua vulnerabilidade acrescida, a ONU reconhece que é preciso promover a igualdade de género nas acções de resposta à crise climática. Um dos grandes marcos deste reconhecimento aconteceu em 2014, quando os delegados da COP20 adoptaram o Programa de Trabalho de Lima sobre o Género (Lima Work Program on Gender), criado para promover o equilíbrio e integrar uma perspectiva de género no trabalho do secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas e dos países que a integram, no sentido de conseguir políticas e acções climáticas mais responsivas às questões da igualdade.
Na linha da frente

Em vários contextos pelo mundo fora, as mulheres são muitas vezes as primeiras a arregaçar as mangas para reagir a catástrofes climáticas. No seu livro Climate Justice, a irlandesa Mary Robinson, antiga enviada especial das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, relata uma série de situações em que as mulheres estiveram na linha da frente das reivindicações, desde situações de seca extrema em países africanos até à reconstrução depois da passagem do furacão Katrina. “Elas acabam por ser não só as mais afectadas, mas também quem está na linha da frente para a recuperação nessas situações de emergência, ficando para trás para assistirem aos mais velhos e às crianças”, acrescenta Susana Viseu.

Historicamente, explica a activista Luísa Barateiro, estudante de saúde pública e activista da UMAR, o movimento ecofeminista começou precisamente por estar “ligado a problemas muito concretos”. Lutas contra a desflorestação, contra a poluição causada por resíduos tóxicos ou contra as ameaças do nuclear foram algumas das primeiras causas das mulheres na área ambiental.

Nos contextos rurais (onde ainda vive cerca de metade da população mundial), as mulheres acabam por ter um papel central nas comunidades locais - e é por isso essencial, explica Susana Viseu, “envolvê-las numa agricultura mais sustentável, numa gestão mais sustentável dos recursos, explicar como é que se faz, criar competências no âmbito da água potável, da autoprodução de energia renovável”. “É fundamental mobilizar as mulheres na acção climática, para catalisar ainda mais aquilo que é o seu papel de guardiãs e de gestoras dos recursos naturais em muitas geografias”, diz Susana Viseu.
Cuidado com a família e com a natureza

O que liga as mulheres à acção climática por todo o mundo? “As mulheres, pelo contexto social, estão mais associadas ao cuidado”, reconhece Luísa Barateiro. A nível global, esta associação entre várias questões - em particular o acesso à alimentação e à água - é ainda mais visível. “Nos países europeus isso já vai sendo mais dividido, mas em muitas realidades e na maioria do mundo as mulheres têm um papel na comunidade que ainda é de total assistência à família”, explica Susana Viseu.

No caso das muitas geografias onde não existe água canalizada, por exemplo, são as mulheres que vão buscar essa água, “pondo muitas vezes em risco a sua segurança e até limitando aquilo que podem fazer em termos da sua educação e do seu desenvolvimento profissional, que a maior parte das vezes não existe, porque elas têm abandonar a escola muito cedo para cuidar da família e para aceder a estes recursos e trabalhar na agricultura”.

“As mulheres, pelo contexto social, estão mais associadas ao cuidado” Luísa Barateiro

São as mulheres quem ainda mais cuida da casa, mas também dos quintais, jardins, ou mesmo terrenos e campos agrícolas familiares. Com esta “proximidade e conexão com a natureza”, explica Luísa, são por norma as primeiras a tomar consciência dos perigos e da escassez: quando falta água, quando as plantas deixam de crescer, quando existe contaminação dos terrenos.

Para importantes teóricas do ecofeminismo como a filósofa e física indiana Vandana Shiva, a defesa da segurança alimentar é um dos pilares fundamentais da defesa do planeta. Cruzando as questões de género, do clima e do colonialismo, Shiva tem tecido críticas à forma como, por exemplo, são comercializadas sementes geneticamente modificadas e pesticidas, ignorando os saberes dos povos locais.

Aliás, para Luísa Barateiro, o reconhecimento destas vozes (a que actualmente muito chamam do “Sul global”) é uma parte importante da “justiça climática”. Por exemplo, estão a ganhar força vozes de mulheres indígenas que têm levado “o conhecimento ancestral e indígena à academia”, cada vez mais validados por “evidência científica”. Valorizar essas vozes, explica a activista, “seria um progresso enorme”. “Não haverá justiça climática enquanto não houver justiça de género.”
E no “Norte global”?

Em países com maiores índices de desenvolvimento, onde a diferença entre os papéis de género foi perdendo algumas dimensões tradicionais, continua a fazer sentido fazer essa ligação entre género e clima?

Na esfera doméstica, também em países como Portugal as mulheres continuam a ser as principais cuidadoras e responsáveis pelas decisões da casa. “Seja no Norte ou Sul global, um ponto transversal é que as mulheres são responsáveis por cerca de 85% das decisões de compra”, nota Susana Viseu. São, por isso, uma peça indispensável do puzzle no que toca a um consumo mais sustentável e à adopção de estilos de vida mais sustentáveis.

As mulheres podem ter também um papel fundamental ao nível do desenho das políticas e dos próprios produtos. “Se não tivermos mulheres que estão em posições de liderança, tanto a nível político como a nível empresarial, muitas vezes aquilo que são as necessidades reais das mulheres são afastadas daquilo que acabam por ser os desenhos dessas políticas ou dessas estratégias empresariais.”

“Há várias camadas de opressão, problemáticas e discriminação que ligam as duas vertentes”, confirma Luísa Barateiro. E há ainda questões económicas prementes: por estarem numa posição estrutural de discriminação, com menos capacidade económica (ainda hoje as mulheres ganham, em média, menos do que os homens), são as primeiras a sentir o impacto das crises - e a ter que encontrar formas de solucionar a escassez de recursos. “Sentimos na pele a discriminação e precisamos de agir”, resume Luísa Barateiro.

Luísa Barateiro, que fez parte de diferentes colectivos ao longo dos últimos anos, foi observando que “a nível de activismo e de mobilizações, vê-se muito mais mulheres, incluindo sobre questões ambientais”. “A participação dos homens no movimento climático é fundamental”, sublinha, mas reconhece que se vê “claramente a maior participação de mulheres”. “Acredito que possa estar relacionada com a componente do cuidado”, explica. “Em algumas foi a maternidade que as despertou.”

Comunidades mais diversas

Para Luísa Barateiro, estudar biologia inspirou também uma outra forma de imaginar as relações humanas. “Perceber as interacções entre ecossistemas”, descreve, revela que as “relações entre seres vivos que não têm que ser com base na exploração”. “Às vezes vê-se mais humanidade na relação entre outros animais do que entre humanos”, brinca.

Também Susana Viseu, com formação de base em geologia, sublinha que a diversidade é importante - e é a própria natureza que nos ensina isso. “Nós somos um conjunto, somos uma comunidade, e quanto mais diversa, melhor. Aliás, na natureza, as comunidades mais resistentes são as mais biodiversas. A nossa biodiversidade, de homens e de mulheres, com as suas diferentes escolhas, com as suas diferentes culturas… É isso que nos enriquece.”
Representação política

Por fim, as mulheres continuam a ser sub-representadas nas decisões políticas, o que tem impacto também no apoio a medidas de protecção ambiental. “É muito importante trazer essa visão feminina aos vários níveis da governação e das empresas, mas ainda estamos muito longe”, lamenta Susana Viseu. E basta olhar para as representações dos países nas conferências multilaterais: na última COP, recorda a empresária, em 114 países que se fizeram representar, havia apenas oito mulheres nas declarações iniciais.

A sub-representação não é apenas de mulheres, mas também de jovens. “Quando olhamos para o friso das conferências internacionais, vemos homens com mais de 50, 60 anos”, descreve. São estes homens que negoceiam, definem os termos dos acordos e estabelecem estas políticas globais e estratégias de intervenção. “Em questões que são tão complexas como a questão climática, que mexe com mudanças profundas na sociedade, com a alteração do modelo económico, com coisas tão simples como aquilo que fazemos diariamente e temos que passar a fazer de maneira diferente... Se não há um envolvimento de quem, depois, na prática, vai ter que aplicar essas medidas, haverá seguramente um desfasamento entre as directrizes que vêm de cima e aquilo que depois tem que ser implementado no terreno”, conclui Susana Viseu.

A organização a que preside, Business as Nature, foi promotora do movimento “Mulheres pelo Clima - dos países de língua portuguesa para o mundo”. A apresentação oficial do movimento, apresentado em Setembro do ano passado, contou com a parceria do Ministério do Ambiente e Acção Climática, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da rede internacional Casa Comum da Humanidade.

Este movimento, que realça “a necessidade de um maior equilíbrio entre os direitos humanos e a acção climática”, tem reunido mulheres de diferentes países de língua portuguesa já desde a Cimeira dos Oceanos, em Lisboa, passando pela COP27, no Egipto, a 67.ª reunião anual da Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW), que decorre até 17 de Março, ou a Conferência da ONU sobre Água, que terá lugar entre 22 a 24 de Março, em Nova Iorque.


8.9.22

ONU: “Morremos mais cedo, somos menos instruídos e os nossos rendimentos estão a cair”

Guilherme Pinheiro, in Público online

Relatório das Nações Unidas argumenta que uma série de crises sem precedentes, nomeadamente a guerra na Ucrânia e a pandemia da covid-19, atrasaram o progresso humano em cinco anos e alimentaram uma onda global de incertezas.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) anunciou que, pela primeira vez desde que foi criado, há mais de 30 anos, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – uma medida das expectativas de vida, níveis de educação e padrões de vida dos países – diminuiu por dois anos consecutivos, em 2020 e 2021, apagando os avanços positivos dos últimos cinco anos.

“Isso significa que morremos mais cedo, que somos menos instruídos e que os nossos rendimentos estão a cair”, disse o chefe do PNUD, Achim Steiner, em entrevista à AFP. “Com estes números, podemos ter uma noção de por que tantas pessoas estão a começar a sentir-se desesperadas, frustradas, preocupadas com o futuro”, disse.

O desenvolvimento humano voltou aos níveis de 2016, revertendo grande parte do progresso em direcção aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável. A reversão deste resultado é quase universal, uma vez que mais de 90% dos países registaram um declínio na pontuação do IDH em 2020 ou 2021 e mais de 40% caíram nos dois últimos anos, sinalizando que a crise ainda se está a aprofundar cada vez mais para muitos países.

O último Relatório de Desenvolvimento Humano, “Tempos incertos, vidas instáveis: moldando o nosso futuro num mundo em transformação”, lançado esta quinta-feira pelo PNUD, dá também um grande destaque às camadas de incerteza que “se estão a acumular e a perturbar a vida de maneiras sem precedentes.” “Os últimos dois anos tiveram um impacto devastador para milhões de pessoas em todo o mundo, enquanto crises como a da covid-19 e a guerra na Ucrânia se sucederam e trouxeram amplas mudanças sociais e económicas, mudanças planetárias perigosas e que contribuem para o aumento da polarização”, acrescenta.

Segundo o estudo, o mundo está a “oscilar de crise em crise”, e está também preso num ciclo interminável de combate a incêndios e outros desastres naturais, muitos deles causados pelas alterações climáticas - ficando incapaz de enfrentar a raiz dos problemas mais fulcrais. “Sem uma mudança brusca de rumo, podemos estar a caminho de ainda mais privações e injustiças”, alerta o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.

Enquanto alguns países conseguem começar a recuperar, esta mesma recuperação é desigual e parcial, tornando ainda mais nítidas desigualdades no desenvolvimento humano em termos mundiais. A América Latina, a África Subsaariana e o Sul da Ásia, que foram particularmente atingidos, ainda não mostram sinais de recuperação.

“O mundo está a lutar para responder a crises consecutivas. E neste momento temos também as crises do custo de vida e da energia que, embora seja tentador que os Governos se foquem em soluções e medidas rápidas, - como subsidiar combustíveis fósseis e outras tácticas de socorro imediato - acabam por atrasar as mudanças a longo prazo que devem ser feitas”, sublinha Achim Steiner.

“Estamos colectivamente paralisados ​​no que diz respeito a este tipo de mudanças. E num mundo definido pela incerteza, precisamos de um sentimento renovado de solidariedade global para enfrentar os nossos desafios comuns e interconectados”, acrescenta,

O relatório concluiu que a mudança necessária não estar a acontecer e sugere várias razões para tal, incluindo o modo como a insegurança e a polarização se alimentam de forma a impedir a solidariedade e a acção colectiva que são necessárias para enfrentar as crises a todos os níveis. Novos cálculos mostram, por exemplo, que aqueles que se sentem mais inseguros também são mais propensos a ter visões políticas extremas.
“Mesmo antes da chegada da covid-19, já conseguíamos observar paradoxos do progresso com insegurança e polarização. Hoje, com um terço das pessoas em todo o mundo a sentirem-se stressadas, e com apenas menos de um terço com confiança nos outros, enfrentamos grandes obstáculos para a adopção de políticas que funcionem para as pessoas e para o planeta”, diz Achim Steiner.

“Esta nova análise instigante visa ajudar-nos a quebrar este impasse por forma a traçar um novo rumo para nossa actual incerteza global. Temos uma janela estreita para reiniciar os nossos sistemas e garantir um futuro baseado em acções climáticas decisivas e novas oportunidades para todos”, conclui,

“Para traçar um novo rumo, o relatório recomenda a implementação de políticas que se concentrem no investimento – desde sector da energia renovável, passando pela preparação para futuras pandemias – incluindo medida de protecção social – com vista a preparar a nossa sociedade para os altos e baixos de um mundo incerto”, pode ler-se no relatório.

“Para navegar na incerteza, precisamos dobrar o desenvolvimento humano e olhar para lá da melhoria da riqueza ou da saúde das pessoas”, diz Pedro Conceição, do PNUD, um dos principais autores deste relatório. “Para além disto, precisamos de proteger o planeta e fornecer às pessoas as ferramentas necessárias para se sentirem mais seguras, recuperar o controlo sobre suas vidas e ter esperança no futuro”.

“Não podemos continuar com a cartilha do século passado”, argumentou Steiner, preferindo o foco na transformação económica em vez da confiança no crescimento como um remédio final.
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18.7.22

Crise climática. Sem ação imediata, humanidade enfrenta “suicídio coletivo”, diz Guterres

Bárbara Barbosa, in Jornal Económico

O português alertou que “metade da humanidade está na zona de perigo, de inundações, secas, tempestades extremas e incêndios florestais” e que nem isso é suficiente para tornar o mundo mais independente dos combustíveis fósseis.


Os incêndios florestais e ondas de calor que o sul da Europa e na América do Norte estão a registar demonstram que não há escolha possível relativamente à emergência climática. “Ação coletiva ou suicídio coletivo. Está nas nossas mãos”, afirmou o secretário geral da ONU, António Guterres, a 40 ministros reunidos no Diálogo Climático de Petersberg, em Berlim.

Segundo o “The Guardian”, o português alertou que “metade da humanidade está na zona de perigo, de inundações, secas, tempestades extremas e incêndios florestais. Nenhuma nação está imune. No entanto, continuamos a alimentar o nosso vício em combustíveis fósseis.”

Também na América do Sul o Machu Picchu foi ameaçado pelo fogo e, nos últimos meses, quebraram-se recordes de calor em todo o globo, nomeadamente nos polos, Índia e sul da Ásia, e as secas devastaram partes da África.

Guterres criticou ainda os “bancos multilaterais de desenvolvimento”, como o Banco Mundial — que são financiados pelos contribuintes dos países desenvolvidos para prestar assistência aos países mais pobres —, por considerá-los inadequados para fornecer o financiamento necessário para a crise climática. Assim, pediu a sua reforma.

“Como acionistas de bancos multilaterais de desenvolvimento, os países desenvolvidos devem exigir a entrega imediata dos investimentos e assistência necessários para expandir as energias renováveis ​​e construir a resiliência climática nos países em desenvolvimento. Exijam que esses bancos se tornem adequados. Exijam que eles alterem as suas estruturas e políticas cansadas para assumir mais riscos… Vamos mostrar aos países em desenvolvimento que eles podem confiar nos seus parceiros”, declarou.

Crise climática vai gerar “enorme perda financeira”

Rafaela Burd  Relvas, in Público 

O BCE “deveria ordenar aos bancos” que comecem a colocar dinheiro de lado para fazer face às perdas que poderão sofrer em resultado da crise climática, defende a Positive Money Europe, organização dedicada à sustentabilidade financeira.

O primeiro teste de stress climático realizado pelo Banco Central Europeu (BCE) já tem resultados e não são animadores. No curto prazo, os riscos associados à crise climática poderão levar os bancos europeus a incorrer em perdas de 70 mil milhões de euros, uma projecção que deverá até estar muito aquém da realidade, admite o próprio regulador.

É neste cenário que Stanislas Jourdan, director executivo da Positive Money Europe, uma organização sem fins lucrativos dedicada à investigação de temas relacionados com a sustentabilidade financeira, defende que o BCE deveria obrigar a banca a colocar dinheiro de parte para cobrir as “enormes perdas financeiras” com que, acredita, irá deparar-se em breve. Até porque, “não há modelos de negócio viáveis num planeta onde o aquecimento global supera os 2º C” e, por isso, o sector financeiro poderá enfrentar, em breve, uma “onda de insolvências” e um aumento do incumprimento do crédito.

Apesar da importância que os riscos climáticos já representam para o sector financeiro, o teste de stress agora realizado pelo BCE é um exercício meramente exploratório e não terá implicações para os rácios de capital dos bancos. O regulador está a atrasar-se neste tema?
Desde que o BCE lançou este teste de stress, vários eventos se sobrepuseram aos cenários por si desenhados, com destaque para a guerra na Ucrânia, que já produziu um choque semelhante, se não pior, ao que os modelos desenhados previam que a crise climática provocasse.

A decisão do BCE de atrasar a actuação no que diz respeito aos requisitos em matéria de rácios de capital é perigosa, tendo em conta os riscos reais que já estão a transparecer e que vão causar aos bancos enormes perdas financeiras.

O BCE deveria, imediatamente, ordenar aos bancos que constituam provisões para cobrir estas perdas, especialmente para as suas carteiras de crédito hipotecário, que provavelmente serão afectadas por uma onda de insolvências e por um cada vez maior número de famílias a enfrentarem custos energéticos mais elevados.

Os resultados mostram que, no curto prazo, os bancos poderão sofrer perdas de 70 mil milhões de euros, no caso de se materializarem os riscos de cheias e de calor extremo e secas na Europa, conjugados com uma transição energética “desordeira”. Mas o BCE admite que esta estimativa está aquém daquela que poderá ser a realidade. Até onde podem, realmente, ir as perdas?
Teríamos de ter uma bola de cristal para saber exactamente qual o montante de perdas em causa. Mas uma coisa é certa: não há modelos de negócio viáveis num planeta onde o aquecimento global supera os 2º C. Os bancos e os reguladores deveriam seguir o princípio da precaução e usar todas as ferramentas que têm ao dispor para ajudar os fluxos financeiros a mudarem de direcção para actividades ligadas à transição energética, de forma a prevenir estes cenários extremos.

De que forma é que a certificação energética das casas poderá ter impacto sobre a maior ou menor capacidade de cumprimento dos créditos à habitação por parte das famílias?
Este é um dos resultados mais surpreendentes do teste, que revela que existe uma correlação entre a performance energética das casas e os riscos de crédito destas habitações para os bancos. Os resultados do BCE mostram que o risco de incumprimento é três vezes mais elevado para uma casa com um certificado de performance energética G do para uma com um certificado A.

Os proprietários estão a enfrentar um golpe triplo, com o aumento dos custos de vida, a subida acentuada dos preços da energia e o agravamento do custo dos créditos, devido ao aumento das taxas de juro. Aqueles que vivem em casas com maus isolamentos vão sofrer mais, sobretudo devido à subida dos custos energéticos, uma vez que terão de enfrentar a difícil escolha entre aquecer ou refrescar as suas casas ou pagar os seus créditos.

Se as pessoas não conseguirem pagar as contas de energia, também é pouco provável que consigam cumprir com os seus serviços de dívida. Isto é exacerbado, também, pelo facto de as famílias mais vulneráveis tenderem a viver em casas com menor eficiência energética.

Acredita que este poderá ser o início de um novo ciclo, em que os bancos vão procurar atrair clientes que queiram fazer investimentos “verdes” ou fazer reabilitações ou construções de habitações energeticamente eficientes?
Tem de ser. Se não agora, quando? As carteiras de crédito à habitação constituem um dos maiores riscos de exposição dos bancos e os riscos de crédito já vão materializar-se nos próximos meses, devido aos choques nos preços da energia motivados pela guerra na Ucrânia.

A única forma positiva de os bancos actuarem é ajudarem os seus clientes a renovarem as suas casas de forma a neutralizar o risco de crédito na fonte. O BCE deveria trabalhar em coordenação com os governos nacionais e os bancos comerciais para que sejam desbloqueados os fundos necessários para os proprietários renovarem as suas casas.

Para reduzir o custo do crédito, o BCE poderia oferecer descontos nas taxas de juro aos bancos que aumentem a concessão de crédito para fins de reabilitação de habitação. Os governos também podem participar nesta estratégia, oferecendo assistência técnica e concedendo garantia públicas.

15.9.21

Quase dois terços dos jovens portugueses acreditam que o mundo está condenado, diz estudo

Diana Baptista Vicente, in Público on-line

Quase seis em cada dez jovens estão muito ou extremamente preocupados com a crise climática, diz um estudo feito em dez países, que “sugere pela primeira vez que elevados níveis de angústia psicológica nos jovens estão ligados à inércia dos Governos”. Jovens portugueses estão entre os mais preocupados.

Foto Cerca de seis em dez jovens considera que os Governos não estão a proteger os jovens, o planeta, nem as gerações futuras, sentindo-se traídos pelas gerações mais antigas e entidades governamentais 

Oito em cada dez jovens portugueses acreditam que “o futuro é assustador” face às alterações climáticas. E mais de dois terços acreditam que o Governo está a falhar na resposta à crise climática (apenas atrás dos jovens do Brasil). Os resultados fazem parte de um estudo científico com base em inquéritos a jovens de dez países e que revelou que, dos países desenvolvidos analisados, os jovens portugueses são os que demonstram um maior nível de preocupação com a crise ambiental.

O estudo divulgado esta terça-feira ilustra o profundo nível de preocupação que os mais jovens, entre os 16 e os 25 anos, sentem em relação às alterações climáticas, com um impacto na forma como olham para o futuro. No que diz respeito aos pensamentos negativos sobre as alterações climáticas, os jovens portugueses expressam, no geral, uma maior preocupação do que a média dos dez países.

Quase dois terços dos jovens portugueses acreditam que a humanidade está condenada, apenas abaixo dos jovens da Índia (74%) das Filipinas (73%) e do Brasil (67%). E quase nove em dez jovens portugueses afirmaram que as pessoas falharam na protecção do planeta, por oposição aos 83% do total dos inquiridos.

Mais de metade dos portugueses questionados (54%) acredita ter menos oportunidades do que os pais​, apenas um valor percentual abaixo da média. E se 39% dos jovens inquiridos estão reticentes em ter filhos devido à crise climática, em Portugal esse número é só ligeiramente inferior (37%).

Segundo o estudo, quase seis em dez jovens estão muito ou extremamente preocupados com a crise climática. Um número semelhante considera que os Governos não estão a proteger os jovens, o planeta, nem as gerações futuras, sentindo-se traídos pelas gerações mais antigas e entidades governamentais. Neste campo, Portugal é o terceiro país (62%) a sentir que o Governo está a trair esta geração e as próximas, depois do Brasil (77%) e da Índia (66%).

Ao mesmo tempo, 65% dos portugueses inquiridos sentem que o Governo está a ignorar a angústia das pessoas em relação às alterações climáticas, estando acima dos 60% do total de jovens inquiridos.

No total, os autores do estudo referem que os níveis de ansiedade parecem ser superiores nos países onde as políticas ambientais são consideradas menos robustas, tendo sido relatada uma maior preocupação no Sul do globo.

Os activistas ambientais afirmam que a preocupação e ansiedade ligadas às alterações climáticas afectam grande parte da população jovem. Mitzi Tan, de 23 anos e das Filipinas, disse que cresceu com o medo de se “afogar no próprio quarto”. Também se tornou comum os jovens preocuparem-se em ter ou não ter filhos por causa dos problemas do planeta. Segundo Luisa Neubauer, activista de 25 anos e uma das organizadoras do movimento climático estudantil na Alemanha, “é uma questão simples, mas diz tanto sobre a realidade climática onde vivemos.
Ecoansiedade e inércia governamental

Para o estudo, financiado pelo grupo de pesquisa e mobilização Avaaz, fizeram-se inquéritos com jovens de Portugal, Austrália, Brasil, Finlândia, França, Filipinas, Estados Unidos, Índia, Nigéria e Reino Unido. Pré-publicado na Lancet e ainda à espera de revisão pelos pares, o estudo foi conduzido e analisado por sete instituições académicas da Europa e EUA, incluindo a Universidade de Bath e o Oxford Health NHS Foundation Trust. É considerado o maior estudo científico feito até à data sobre a ansiedade climática e os jovens.

Os autores da investigação indicam que o stress crónico ligado às alterações climáticas está a aumentar o risco de desenvolver problemas mentais e físicos. E se os eventos climáticos extremos se intensificarem, vão ser acompanhados por impactos na saúde mental. Os jovens são especialmente afectados, uma vez que estão em processo de desenvolvimento psicológico, físico e social.

Caroline Hickman, da Universidade de Bath e co-autora do estudo, disse que a análise “ilustra a terrível ansiedade climática difundida nas nossas crianças e jovens” e “sugere pela primeira vez que elevados níveis de angústia psicológica nos nossos jovens estão ligados à inércia dos governos”, continuou.

Tom Burke, do think tank E3G, afirmou à BBC que “é lógico que os jovens estejam ansiosos”, porque “estão a ver a evolução [das alterações climáticas] diante dos próprios olhos”.

9.9.21

Educação de crianças de um quarto dos países do mundo está em risco, alerta relatório

por Inês Moreira Santos, in RTP

A enfrentar a crise climática, a pandemia da Covid-19 e a falta de vacinas e medicamentos, as guerras e os ataques a escolas, a pobreza e a fome e até a dificuldade de acesso ao ensino e ao mundo digital, um quarto dos países do mundo tem os sistemas escolares em risco. De acordo com um relatório publicado esta segunda-feira, em mais de 40 nações, a Educação de centenas de milhões de crianças e jovens pode estar à beira do colapso.

"A educação de centenas de milhões de crianças em um quarto dos países do mundo está em risco extremo ou alto de colapsar", alertou, esta segunda-feira, a Save The Children, que destaca "as alterações climáticas, a falta de vacinas contra a Covid-19, o deslocamento, os ataques a escolas e a falta de conectividade digital" como alguns dos fatores que estão a prejudicar o acesso ao ensino.

Este mês, a maioria das escolas e instituições de ensino de grande parte do mundo vão reabrir e os alunos vão regressar às aulas. Mas um quarto dos países - a maioria na África Subsaariana - têm sistemas escolares que correm risco extremo ou alto de colapso.

As Nações Unidas estimam que, pela primeira vez na história, cerca de 1,6 mil milhões de crianças não foram à escola durante a pandemia, havendo pelo menos um terço sem acesso ao ensino à distância. Além disso, antes da Covid-19 ainda havia cerca de 260 milhões de crianças fora dos sistemas de ensino, o que corresponde a quase um quinto da população global dessas faixas etárias.

Agora, como grande parte dos países menos desenvolvos enfrentam pobreza extrema, a pandemia da Covid-19, a crise climática e violência, começa a recear-se que haja uma "geração perdida de alunos".


"Já sabemos que são as crianças mais pobres as que mais sofreram com o encerramento das escolas devido à Covid-19", recordou Inger Ashing, CEO da Save the Children Internacional.

"Mas, infelizmente, a Covid-19 é apenas um dos fatores que está a ameçar a Educação e a vida das crianças hoje e amanhã. Cerca de metade dos 75 milhões de crianças que têm a Educação suspensa todos os anos, fazem-no devido a ameaças climáticas e ambientais, como ciclones, inundações e secas. As catástrofes climáticas já contribuíram para que mais de 50 milhões de crianças fossem obrigadas a deixar as suas casas. E os ataques abomináveis às escolas continuam em países como a Nigéria e o Iémen".

Dezenas de países não conseguem assegurar Educação

Segundo o relatório da organização, há pelo menos 48 países em que a Educação está em risco, havendo "milhões de crianças ainda incapazes de entrar na sala de aula devido às medidas de segurança da Covid-19, os impactos económicos da pandemia e os ataques contínuos às escolas". A isso soma-se ainda, destaca o documento, as 258 milhões de crianças em todo o mundo que já estavam fora da escola antes da pandemia.

"Os líderes têm de aprender com a crise da Covid-19, que interrompeu a escolaridade de mais de 90 por cento dos alunos do mundo, e sistemas de educação à prova de choque para garantir que as crianças de um quarto dos países do mundo não tenham o seu futuro comprometido", alertou a organização de direitos das crianças.

De acordo com o novo relatório da Save the Children, "Build Forward Better", a República Democrática do Congo, a Nigéria, a Somália, o Afeganistão, o Sudão, o Mali e a Líbia têm sistemas de Educação que estão em 'risco extremo'. Já a Educação na Síria e no Iémen, na Índia, nas Filipinas e no Bangladesh, por exemplo, estão em "risco alto" de colapsar.

"Quando as escolas não são fixas, e não tem aulas, não tem professores, nós não temos como aprender. Não nos sentimos seguros quando as escolas não estão reabilitadas", afirmou à ONG o jovem de 13, Salem.

Estima-se que entre 10 a 16 milhões de crianças não regressem à escola devido apenas aos impactos económicos da pandemia, sendo muitas vezes forçadas a trabalhar ou a casar cedo.

Mas a crise climática vem aumentar esta ameça à Educação, visto que as escolas são danificadas ou destruídas por catástrofes climáticas extremas e, assim, cada vez mais crianças serão obrigadas a abandonar a sua casa e a deixar de ir à escola.

De acordo com a investigação da Save the Children, em média, as crianças de países pobres perderam mais 66 por cento de aulas durante a pandemia, comparativamente aos alunos de outros países.
É preciso "agir já"


"Precisamos de aprender com esta experiência terrível e agir já - mas não é suficiente 'voltar' à realidade como era. Precisamos de construir 'para a frente' e de forma diferente, usando isso como uma oportunidade de esperança e mudança positiva", afirmou ao Guardian a CEO da Save The Children no Reino Unido.

Somando-se ao desemprego jovem, a pouca educação primária e a exclusão digital no acesso ao ensino à distância, está a ameaçar a próxima geração, frisou a ONG no relatório.

Segundo o documento, para salvar a educação das crianças e prepará-las para o futuro, "os Ministérios da Educação e os parceiros devem trabalhar para enfrentar estas ameaças à escolaridade". Os países mais afetados, continua, "precisam de muito mais investimento nos seus sistemas educacionais de parceiros internacionais".

"O direito de uma criança à educação não termina com uma crise", alertou ainda Inger Ashing.

Também Rob Jenkins, diretor global de educação da Unicef, recordou que mesmo antes da pandemia, grande parte do mundo já enfrentava uma crise global de Educação.

"Agora corremos o risco de perder uma geração de alunos", alertou. "Isto pode ter implicações para toda a vida, a menos que avancemos para programas de recuperação que ofereçam apoio total e abrangente às crianças - não apenas para a sua aprendizagem, mas também para a sua saúde mental, suporte nutricional e uma sensação de proteção".
"Consequências catastróficas" com encerramento das escolas na Índia

Um estudo recente, baseado na análise de quase 1.400 crianças em idade escolar de famílias carentes na Índia, relevou haver "consequências catastróficas" com encerramento prolongado das escolas no último ano e meio, devido à pandemia.

Segundo este relatório, nas áreas rurais do país, apenas oito por cento das crianças da amostra têm acesso a dispositivos digitais para estudar online regularmente, 37 por cento não estudam e "cerca de metade não consegue ler mais do que algumas palavras". Contudo, a maioria dos pais deseja que as escolas sejam reabertas o "mais rápido possível".


As escolas primárias e básicas na Índia estão fechadas há 17 meses para combater a disseminação do coronavírus, sendo a Índia um dos países onde as escolas ainda não reabriram. E as conclusões desta investigação são "absolutamente sombrias, especialmente nas áreas rurais".

Das poucas crianças da amostra que tinham acesso a dispostivos digitais, 24 por cento viviam em cidades e apenas oito por cento em aldeias. Um dos motivos para esta percentagem tão pequena de alunos a poder estudar à distância deve-se, esclarece o estudo, ao facto de um grande número dessas famílias não ter dispostivos como computador, por exemplo - apenas cerca de metade das famílias nas aldeias tinha um smartphone.

Mesmo entre aqueles que possuíam um smartphone, apenas um terço das crianças estudava online nas cidades e cerca de 15 por cento nas aldeias. Apenas nove por cento das crianças da amostra tinham os próprios telemóveis.

Outro grande obstáculo, especialmente nas zonas rurais, é que as escolas não estarem a enviar materiais de estudo.

"A maioria dos pais sente que as capacidades de leitura e escrita dos filhos diminuíram durante o confinamento", lê-se no documento.

"Uma reabertura total pode não ser aconselhável por agora, mas pedir às crianças que frequentem as escolas em grupos uma ou duas vezes por semana seria um bom começo", afirmou à BBC a economista Reetika Khera, uma das principais autoras da investigação.

23.4.21

Banco Mundial: Pobreza, desigualdade e crise climática andam de mão dada

in Negócios on-line

O Banco Mundial definiu como objetivo dedicar pelo menos metade do seu financiamento de projetos à preparação e ajuda à adaptação às alterações climáticas.

A pobreza, a desigualdade e a emergência climática vão cada vez mais de mão dada, alertou o presidente do Banco Mundial, David Malpass (na foto), insistindo na necessidade de medidas como a redução dos subsídios aos combustíveis fósseis.

"Sabemos que a pobreza, a desigualdade e as alterações climáticas são os desafios que vão definir o nosso tempo e que andam cada vez mais de mão na mão", disse Malpass, ao intervir na Cimeira de Líderes sobre o Clima, organizada pelos EUA, em modo virtual, que conta com 40 dirigentes internacionais.

Malpass salientou que, assim, a chave "é integrar desenvolvimento e luta contra as alterações climáticas".

Biden quer cortar emissões de gases poluentes para metade até 2030

O Banco Mundial definiu como objetivo dedicar pelo menos metade do seu financiamento de projetos à preparação e ajuda à adaptação às alterações climáticas.

Como exemplo, observou que é importante que os Estados reduzam os subsídios aos combustíveis fósseis.

Na cimeira participam, entre outros, os presidentes chinês, Xi Jiping, russo, Vladimir Putin, os principais líderes europeus e da América Central e do Sul.

9.12.20

“Recuperação verde da pandemia” tem de ser reforçada, avisa ONU em relatório

Andrea Cunha Freitas, in Público on-line

O relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Ambiente constata que, apesar da queda das emissões de dióxido de carbono ao longo de 2020, durante a pandemia covid-19, o mundo continua a caminhar para um aumento de temperatura superior a três graus Celsius neste século.

O processo (não intencional) de redução das emissões conseguido em 2020, empurrado por uma pandemia que abrandou a economia mundial, tem de continuar e, mais do que isso, tem de ser reforçado. O mais recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP, na sigla em inglês), divulgado esta quarta-feira, apresenta o novo conceito de “recuperação verde pandémica”, mas nota que a queda de 7% nas emissões registada este ano “traduz-se apenas numa redução de 0,01 grau Celsius do aquecimento global até 2050”. A cientista Joana Portugal Pereira é uma das autoras do documento e sublinha que para cumprir os objectivos do Acordo de Paris é essencial que os planos de recuperação económica anunciados para lidar com o impacto desta pandemia e que já somam 12,9 biliões de dólares [10,6 biliões de euros] financiem “uma transição para uma economia verde”.

“Este ano, apesar de termos presenciado uma redução momentânea das emissões globais de gases de efeito estufa da ordem dos 7% [com uma variação que vai dos 2 aos 12%], comparativamente com 2019, a nossa avaliação mostra que o mundo está no caminho para atingirmos um aquecimento global de aproximadamente três graus Celsius até ao final do século”, resume a investigadora portuguesa, que participou na redacção do relatório anual da UNEP.

Na realidade, os 7% conseguidos à força por uma pandemia significam muito pouco se olharmos a mais longo prazo. As emissões globais de gases com efeito de estufa aumentaram em média 1,4% por ano desde 2010, com um aumento mais rápido de 2,6% em 2019, devido ao maior número de incêndios florestais. “Como resultado da redução das viagens, da menor actividade industrial e da menor produção de electricidade este ano devido à pandemia, prevê-se que as emissões de dióxido de carbono diminuam até 7% em 2020”, regista-se no relatório que, no entanto, acaba por concluir que este resultado significa apenas “uma redução de 0,01 grau Celsius do aquecimento global até 2050”.

O contributo de Joana Portugal Pereira nesta importante análise da ONU surge no capítulo dedicado à avaliação da “lacuna de emissões” que serviu para analisar “a diferença entre a trajectória das políticas climáticas actuais e o que será necessário para cumprirmos compromissos climáticos do Acordo de Paris”. O comunicado de imprensa das Nações Unidas sobre o relatório anual começa precisamente por aí: “Uma recuperação verde pandémica poderá reduzir até 25% as emissões de gases com efeito de estufa até 2030 e aproximar o mundo do cumprimento do objectivo dos dois graus Celsius do Acordo de Paris”.

A principal mensagem que se destaca do documento agora divulgado é que as mudanças que a pandemia forçou nas economias mundiais tiveram um reflexo importante nas emissões, mas isso não chega. É preciso que este caminho prossiga, desta vez de forma voluntária, consciente e reforçada.

Uma das ferramentas para a mudança é, já se sabe, o dinheiro. A cientista Joana Pereira nota que “os planos de recuperação económica anunciados, da ordem dos 12,9 biliões de dólares, são uma grande oportunidade para financiarmos uma transição para uma economia verde”, mas avisa que não é esse o objectivo traçado à vista. “Apenas um quarto dos estímulos anunciados é canalizado para actividades de baixo carbono, ou seja, corremos o risco de investir mais de 9 biliões de dólares em indústrias e actividades intensivas em carbono e criar lock-in para as próximas gerações”, alerta. Por isso, a investigadora insiste que para alcançar a redução de emissões globais em 25% é preciso que seja feita uma escolha clara dos governos por uma “uma recuperação verde”.

Joana Pereira reconhece ainda que há cada vez mais países a anunciar estratégias de neutralidade carbónica para cumprir até 2050, mas, mais uma vez, alerta que as boas intenções não chegam e é preciso uma acção coordenada com todos os outros sectores. “Estas estratégias para serem efectivas têm de ser apoiadas por planos sectoriais de curto prazo que se coadunem à estratégia de longo prazo”, argumenta.

Aviões e famílias

Numa leitura do relatório da UNEP, Joana Pereira destaca ainda o capítulo específico que este ano é dedicado ao transporte de aviação e marítimo. “Estes sectores conseguiram ficar à margem do Acordo de Paris e são responsáveis por aproximadamente 5% das emissões global de gases com efeito de estufa”, refere a investigadora, notando que se forem mantidas as trajectórias actuais “em 2050 os aviões e navios consumirão entre 60% e 220% do orçamento de carbono para estabilizar a temperatura em 1,5 graus”. Porém, a cientista lamenta que, apesar de já sabermos o peso destas actividades, uma grande parte dos estímulos de recuperação económica seja precisamente para empresas de aviação e para a indústria de petróleo e gás.

Joana Pereira realça ainda um outro ponto importante do relatório que entra dentro das nossas casas e está associado à necessidade de mudarmos o nosso comportamento e adoptarmos práticas mais amigas do ambiente. “Cerca de dois terços das emissões globais são relacionadas o consumo das famílias. A pandemia mostrou-nos que podemos adoptar práticas de consumo local e repensar a nossa mobilidade, adoptando o uso de outros meios, como por exemplo, deslocarmo-nos a pé ou de bicicleta”, sugere.

O relatório da UNEP refere que “cerca de dois terços das emissões globais estão ligados aos lares privados, quando se utiliza a contabilidade baseada no consumo”. E são os mais ricos que ficam com a maior responsabilidade: “As emissões do 1% mais rico da população global representam mais do dobro da quota combinada dos 50% mais pobres.” Para cumprir as metas de Paris é preciso que os mais ricos “reduzam a sua pegada ecológica por um factor de 30”. Por outro lado, os cientistas notam que, além da importância de novas formas verdes de nos deslocarmos, as famílias podem e devem ainda investir na melhoria da eficiência energética das habitações e no apoio de políticas para reduzir o desperdício de alimentos.

Novos compromissos

O tom do relatório é, com já se disse aqui, muito centrado no facto de ser necessário continuar e até reforçar a “recuperação verde” que se conseguiu em ano de pandemia, pelos piores motivos. Com optimismo, refere-se que “se os governos investirem na acção climática como parte da recuperação pandémica e solidificarem os compromissos emergentes de neutralidade carbónica com promessas reforçadas na próxima reunião climática – que terá lugar em Glasgow em Novembro de 2021 – podem levar as emissões a níveis amplamente consistentes com o objectivo dos dois graus Celsius”. Assim, é importante que a recuperação verde de 2020 seja combinada com novos compromissos. Aliás, se a acção for ainda mais rápida e mais forte os governos podiam mesmo ficar próximos do objectivo mais ambicioso de 1,5 graus Celsius.

Combinando uma recuperação pandémica verde com “movimentos rápidos para incluir novos compromissos em Contribuições Actualizadas Determinadas a Nível Nacional (CND) ao abrigo do Acordo de Paris” e acompanhando as medidas com uma acção rápida e mais forte os governos poderiam ainda alcançar a meta mais ambiciosa de 1,5 graus. “O relatório do UNEP mostra que uma recuperação pandémica verde pode retirar uma enorme fatia das emissões de gases com efeito de estufa e ajudar a abrandar as alterações climáticas. Exorto os governos a apoiarem uma recuperação verde na próxima fase das intervenções fiscais da covid-19 e a aumentarem significativamente as suas ambições climáticas em 2021”, afirma Inger Andersen, directora executiva do UNEP no comunicado de imprensa.

Soluções para um futuro mais verde

O relatório deste ano lembra que em 2019 as emissões totais de gases com efeito de estufa, incluindo a alteração do uso do solo, atingiram um novo máximo de 59,1 gigatoneladas de equivalente de CO2 (GtCO2e). “Uma recuperação verde colocaria as emissões em 2030 em 44 GtCO2e, em vez dos 59 GtCO2e previstos que deixam o mundo no caminho para um aumento de temperatura de 3,2 graus”, avisam os autores do documento.

Mas como aumentar então as possibilidades de manter as temperaturas abaixo de um aumento de dois graus? “As medidas para dar prioridade à recuperação fiscal verde incluem o apoio directo a tecnologias e infra-estruturas com emissões zero, a redução dos subsídios aos combustíveis fósseis, a inexistência de novas centrais de carvão, e a promoção de soluções baseadas na natureza – incluindo a restauração e reflorestação de paisagens em grande escala”, enumera-se no documento. E isso bastaria? Não. A mudança tem de ir além do reforço das políticas e programas verdes dos governos no plano da denominada intervenção fiscal verde.

Os especialistas da ONU defendem que as estratégias de neutralidade carbónica que têm sido anunciadas têm também de ser mais ambiciosas. Para colocar o mundo na direcção das metas do Acordo de Paris, os níveis de ambição devem mesmo “ser aproximadamente triplicados para o objectivo dos dois graus Celsius e aumentados pelo menos cinco vezes para a via dos 1,5 graus”.