9.12.20

“Recuperação verde da pandemia” tem de ser reforçada, avisa ONU em relatório

Andrea Cunha Freitas, in Público on-line

O relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Ambiente constata que, apesar da queda das emissões de dióxido de carbono ao longo de 2020, durante a pandemia covid-19, o mundo continua a caminhar para um aumento de temperatura superior a três graus Celsius neste século.

O processo (não intencional) de redução das emissões conseguido em 2020, empurrado por uma pandemia que abrandou a economia mundial, tem de continuar e, mais do que isso, tem de ser reforçado. O mais recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP, na sigla em inglês), divulgado esta quarta-feira, apresenta o novo conceito de “recuperação verde pandémica”, mas nota que a queda de 7% nas emissões registada este ano “traduz-se apenas numa redução de 0,01 grau Celsius do aquecimento global até 2050”. A cientista Joana Portugal Pereira é uma das autoras do documento e sublinha que para cumprir os objectivos do Acordo de Paris é essencial que os planos de recuperação económica anunciados para lidar com o impacto desta pandemia e que já somam 12,9 biliões de dólares [10,6 biliões de euros] financiem “uma transição para uma economia verde”.

“Este ano, apesar de termos presenciado uma redução momentânea das emissões globais de gases de efeito estufa da ordem dos 7% [com uma variação que vai dos 2 aos 12%], comparativamente com 2019, a nossa avaliação mostra que o mundo está no caminho para atingirmos um aquecimento global de aproximadamente três graus Celsius até ao final do século”, resume a investigadora portuguesa, que participou na redacção do relatório anual da UNEP.

Na realidade, os 7% conseguidos à força por uma pandemia significam muito pouco se olharmos a mais longo prazo. As emissões globais de gases com efeito de estufa aumentaram em média 1,4% por ano desde 2010, com um aumento mais rápido de 2,6% em 2019, devido ao maior número de incêndios florestais. “Como resultado da redução das viagens, da menor actividade industrial e da menor produção de electricidade este ano devido à pandemia, prevê-se que as emissões de dióxido de carbono diminuam até 7% em 2020”, regista-se no relatório que, no entanto, acaba por concluir que este resultado significa apenas “uma redução de 0,01 grau Celsius do aquecimento global até 2050”.

O contributo de Joana Portugal Pereira nesta importante análise da ONU surge no capítulo dedicado à avaliação da “lacuna de emissões” que serviu para analisar “a diferença entre a trajectória das políticas climáticas actuais e o que será necessário para cumprirmos compromissos climáticos do Acordo de Paris”. O comunicado de imprensa das Nações Unidas sobre o relatório anual começa precisamente por aí: “Uma recuperação verde pandémica poderá reduzir até 25% as emissões de gases com efeito de estufa até 2030 e aproximar o mundo do cumprimento do objectivo dos dois graus Celsius do Acordo de Paris”.

A principal mensagem que se destaca do documento agora divulgado é que as mudanças que a pandemia forçou nas economias mundiais tiveram um reflexo importante nas emissões, mas isso não chega. É preciso que este caminho prossiga, desta vez de forma voluntária, consciente e reforçada.

Uma das ferramentas para a mudança é, já se sabe, o dinheiro. A cientista Joana Pereira nota que “os planos de recuperação económica anunciados, da ordem dos 12,9 biliões de dólares, são uma grande oportunidade para financiarmos uma transição para uma economia verde”, mas avisa que não é esse o objectivo traçado à vista. “Apenas um quarto dos estímulos anunciados é canalizado para actividades de baixo carbono, ou seja, corremos o risco de investir mais de 9 biliões de dólares em indústrias e actividades intensivas em carbono e criar lock-in para as próximas gerações”, alerta. Por isso, a investigadora insiste que para alcançar a redução de emissões globais em 25% é preciso que seja feita uma escolha clara dos governos por uma “uma recuperação verde”.

Joana Pereira reconhece ainda que há cada vez mais países a anunciar estratégias de neutralidade carbónica para cumprir até 2050, mas, mais uma vez, alerta que as boas intenções não chegam e é preciso uma acção coordenada com todos os outros sectores. “Estas estratégias para serem efectivas têm de ser apoiadas por planos sectoriais de curto prazo que se coadunem à estratégia de longo prazo”, argumenta.

Aviões e famílias

Numa leitura do relatório da UNEP, Joana Pereira destaca ainda o capítulo específico que este ano é dedicado ao transporte de aviação e marítimo. “Estes sectores conseguiram ficar à margem do Acordo de Paris e são responsáveis por aproximadamente 5% das emissões global de gases com efeito de estufa”, refere a investigadora, notando que se forem mantidas as trajectórias actuais “em 2050 os aviões e navios consumirão entre 60% e 220% do orçamento de carbono para estabilizar a temperatura em 1,5 graus”. Porém, a cientista lamenta que, apesar de já sabermos o peso destas actividades, uma grande parte dos estímulos de recuperação económica seja precisamente para empresas de aviação e para a indústria de petróleo e gás.

Joana Pereira realça ainda um outro ponto importante do relatório que entra dentro das nossas casas e está associado à necessidade de mudarmos o nosso comportamento e adoptarmos práticas mais amigas do ambiente. “Cerca de dois terços das emissões globais são relacionadas o consumo das famílias. A pandemia mostrou-nos que podemos adoptar práticas de consumo local e repensar a nossa mobilidade, adoptando o uso de outros meios, como por exemplo, deslocarmo-nos a pé ou de bicicleta”, sugere.

O relatório da UNEP refere que “cerca de dois terços das emissões globais estão ligados aos lares privados, quando se utiliza a contabilidade baseada no consumo”. E são os mais ricos que ficam com a maior responsabilidade: “As emissões do 1% mais rico da população global representam mais do dobro da quota combinada dos 50% mais pobres.” Para cumprir as metas de Paris é preciso que os mais ricos “reduzam a sua pegada ecológica por um factor de 30”. Por outro lado, os cientistas notam que, além da importância de novas formas verdes de nos deslocarmos, as famílias podem e devem ainda investir na melhoria da eficiência energética das habitações e no apoio de políticas para reduzir o desperdício de alimentos.

Novos compromissos

O tom do relatório é, com já se disse aqui, muito centrado no facto de ser necessário continuar e até reforçar a “recuperação verde” que se conseguiu em ano de pandemia, pelos piores motivos. Com optimismo, refere-se que “se os governos investirem na acção climática como parte da recuperação pandémica e solidificarem os compromissos emergentes de neutralidade carbónica com promessas reforçadas na próxima reunião climática – que terá lugar em Glasgow em Novembro de 2021 – podem levar as emissões a níveis amplamente consistentes com o objectivo dos dois graus Celsius”. Assim, é importante que a recuperação verde de 2020 seja combinada com novos compromissos. Aliás, se a acção for ainda mais rápida e mais forte os governos podiam mesmo ficar próximos do objectivo mais ambicioso de 1,5 graus Celsius.

Combinando uma recuperação pandémica verde com “movimentos rápidos para incluir novos compromissos em Contribuições Actualizadas Determinadas a Nível Nacional (CND) ao abrigo do Acordo de Paris” e acompanhando as medidas com uma acção rápida e mais forte os governos poderiam ainda alcançar a meta mais ambiciosa de 1,5 graus. “O relatório do UNEP mostra que uma recuperação pandémica verde pode retirar uma enorme fatia das emissões de gases com efeito de estufa e ajudar a abrandar as alterações climáticas. Exorto os governos a apoiarem uma recuperação verde na próxima fase das intervenções fiscais da covid-19 e a aumentarem significativamente as suas ambições climáticas em 2021”, afirma Inger Andersen, directora executiva do UNEP no comunicado de imprensa.

Soluções para um futuro mais verde

O relatório deste ano lembra que em 2019 as emissões totais de gases com efeito de estufa, incluindo a alteração do uso do solo, atingiram um novo máximo de 59,1 gigatoneladas de equivalente de CO2 (GtCO2e). “Uma recuperação verde colocaria as emissões em 2030 em 44 GtCO2e, em vez dos 59 GtCO2e previstos que deixam o mundo no caminho para um aumento de temperatura de 3,2 graus”, avisam os autores do documento.

Mas como aumentar então as possibilidades de manter as temperaturas abaixo de um aumento de dois graus? “As medidas para dar prioridade à recuperação fiscal verde incluem o apoio directo a tecnologias e infra-estruturas com emissões zero, a redução dos subsídios aos combustíveis fósseis, a inexistência de novas centrais de carvão, e a promoção de soluções baseadas na natureza – incluindo a restauração e reflorestação de paisagens em grande escala”, enumera-se no documento. E isso bastaria? Não. A mudança tem de ir além do reforço das políticas e programas verdes dos governos no plano da denominada intervenção fiscal verde.

Os especialistas da ONU defendem que as estratégias de neutralidade carbónica que têm sido anunciadas têm também de ser mais ambiciosas. Para colocar o mundo na direcção das metas do Acordo de Paris, os níveis de ambição devem mesmo “ser aproximadamente triplicados para o objectivo dos dois graus Celsius e aumentados pelo menos cinco vezes para a via dos 1,5 graus”.