Isabel Salema, in Público on-line
2020 foi o ano em que convivemos com a catástrofe e o fim ficou mais perto. O que é que a pandemia nos ensinou? Os filósofos andam às voltas com o problema, enquanto os artistas tacteiam caminhos para sair do caos. Entre distopias e utopias, é o corpo do espectador que pode renascer.
José Gil, um filósofo muito cá de casa, escreveu dois ensaios sobre a pandemia publicados neste jornal em Março e Abril. No primeiro, intitulado Medo, explicava como o receio de uma morte imprevista e absurda igualizava homens e mulheres, introduzindo a experiência de uma “globalização existencial”, com todos a vivermos o mesmo tempo pandémico; no segundo, com o corpo já a acumular várias semanas de confinamento, propunha que a pandemia pudesse vir a modificar o modo de vida das sociedades actuais ancoradas no capitalismo industrial financeiro, mas já com um pé no capitalismo digital.
O ensaio A pandemia e o capitalismo numérico, o que causou mais ondas de choque, propunha que a covid-19 tinha acelerado a nossa entrada numa sociedade dependente do digital com a generalização do teletrabalho, a digitalização máxima dos serviços e a virtualização das deslocações, das relações sociais, do lazer e da cultura. Ao impor sem entraves o capitalismo há muito sonhado pelas empresas tecnológicas num salto brutal, a pandemia iria fazer florescer as subjectividades digitais, que tendem a dispensar o corpo físico, até se tornarem dominantes: “Serão subjectividades desterritorializadas, de certo modo, nómadas e transparentes, mas reterritorializadas no digital.”
Os dois ensaios foram recentemente reunidos no livro O Tempo Indomado (Relógio d’Água), que inclui mais duas reflexões em que José Gil voltou à pandemia para apresentar um outro mundo possível, uma possível utopia para um futuro instável que nos espera.
Mas antes de chegarmos ao futuro, para saber o que pode a filosofia nos tempos que correm, parafraseando um jovem filósofo e musicólogo também ouvido neste texto, procurámos descortinar que novas subjectividades surgiram afinal em 2020 e como poderá renascer a cultura, depois do ano em que convivemos com a catástrofe e em que o fim do mundo ficou mais perto. A pandemia vai transformar-nos em espectadores diferentes?
“Quando me pergunta o que é que vai ficar do que a pandemia nos ensinou, fico com a impressão que nada é para ficar, porque os tempos que vêm serão de grande instabilidade. A instabilidade vai tornar-se, paradoxalmente, cada vez mais regular”José Gil
Nos primeiros meses da epidemia, quando começaram os lockdowns, um dos termos que invadiu a nossa globalização existencial, as instituições musicais de todo o mundo, da Filarmónica de Berlim à Fundação Calouste Gulbenkian, do Lincoln Center ao Teatro Nacional de São Carlos, ensaiaram várias alternativas aos programas ao vivo. Uns com mais sucesso do que outros, uns com mais meios do que outros, o que todos constataram, e que significou um verdadeiro terramoto, é que a única audiência possível era mesmo a que estava online, agarrada em casa aos ecrãs. Levou ainda algum tempo até que programas live streaming, com orquestras ou agrupamentos de câmara a actuarem perante auditórios vazios, começassem a surgir nos websites respectivos. O mesmo tempo em que a ciência hesitou quanto à forma como o vírus SARS-CoV-2 se transmitia no ar, tornando especialmente problemáticos os concertos com vozes ou instrumentos de sopro.
No final do Verão, um gigante como a Metropolitan Opera, a maior instituição norte-americana dedicada às artes performativas, anunciava que não iria reabrir tão cedo, estendendo o cancelamento da temporada 2020-2021 até Setembro do próximo ano. Peter Gelb, o administrador que lançou o programa de transmissão ao vivo das óperas do Met em 2006 (e que chegam a Portugal através da Gulbenkian), reafirmava o óbvio: distância social e grande ópera não podiam conviver.
Mas ao mesmo tempo que essas ondas de choque reverberavam em todo o mundo, Peter Gelb enviava uma nova mensagem: o Met ia aproveitar a paragem dos espectáculos ao vivo para reflectir sobre o seu futuro e repensar a programação. Um dos compromissos — prometia num ano fortemente marcado pelo movimento Black Lives Matter — era que a instituição, com 140 anos de história, iria pela primeira vez montar no seu palco uma ópera escrita por um compositor afro-americano. Fire Shut Up in My Bones, de Terence Blanchard, tem estreia marcada para 27 de Setembro, se tudo correr bem.
Tudo tem sido um nightmare
“Manter a funcionar o São Carlos é a atitude mais difícil, mas corajosa e necessária”, afirma Elisabete Matos, directora artística do único teatro de ópera público português em que trabalha o maior corpo artístico na área das artes do espectáculo, mas que tem de recorrer frequentemente a solistas externos. “A problemática que vem com a pandemia coloca os nossos artistas numa situação precária muito difícil. O mais fácil seria dizer ‘vamos para casa’ e esperar que houvesse condições óptimas para funcionar. Os músicos, o público, todos nós necessitamos da música. Esta profissão, que às vezes não é encarada como um bem essencial, tem de sê-lo.”
No Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, os espectáculos de ópera ainda não têm data oficial de regresso ao palco. Isso talvez aconteça lá para Abril ou Maio. Foram adiadas três das óperas previstas e cancelada outra. “Toda a temporada de ópera foi eliminada por causa das normas da Direcção-Geral de Saúde que impossibilitam a orquestra de usar o fosso. Até indicação em contrário, a orquestra tem de estar em palco, o que inviabiliza a ópera encenada”, explica a directora artística, acrescentando que a Orquestra Sinfónica Portuguesa voltou aos concertos em Junho, um pouco antes do coro.
Não tem havido muito tempo para pensar para lá do curto prazo e foram residuais as tentativas de transmitir espectáculos ao vivo. “A necessidade inventiva tem servido para ultrapassar os problemas e programar aquilo que é possível. Estar com um metro no palco e perguntar à pessoa responsável pela covid se posso fazer esta obra, se posso ter esta orquestração. Tudo isto tem sido um nightmare.”
Mas com a noção de que mesmo assim têm sido “uns privilegiados”, Elisabete Matos preocupou-se em programar a próxima temporada do teatro, que terá sido apresentada por estes dias, com mais músicos portugueses. “Há essa sensibilidade de solidariedade, de estar mais perto daqueles que não têm. Na próxima temporada mais de metade das pessoas que chamamos é portuguesa. Há muita gente com talento, mas que não consegue pôr cá fora todo o seu potencial. A nossa missão tornou-se mais óbvia com a pandemia: alimentar a alma das pessoas que precisam de música para viver. Não são só os seus executantes, mas também os espectadores, porque nada vai substituir a importância da partilha da arte no momento em que duas ou várias pessoas se encontram.”
Com a abertura das bilheteiras para a nova temporada anunciada em Agosto, a Fundação Gulbenkian percebeu que se exacerbava uma tendência que já vinha de trás: os assinantes tinham esgotado quase todos os lugares disponíveis para ouvir a Orquestra Gulbenkian num auditório que vira a sua capacidade reduzida a metade.
“Isso deixa-me muito feliz, porque mostra que o público tem confiança em nós”, afirma Risto Nieminen, director do Serviço de Música da Gulbenkian. “Percebemos que a música e a arte são importantes para as pessoas. Trazem uma dimensão espiritual à pandemia.” Mas trouxe também um problema para resolver: como dar acesso à música a mais pessoas numa altura tão sensível? “A situação da pandemia levou-nos a aprender muita coisa e a ser mais activos no streaming. Já tínhamos o serviço de audiovisual, com equipamento fixo no Grande Auditório, mas passámos de três câmaras para 11 em 2020. A nossa equipa audiovisual aprendeu muito no processo, está mais imaginativa.”
A Fundação Gulbenkian acelerou o seu investimento no programa de live streamig, com quase metade dos concertos da temporada a serem transmitidos gratuitamente através do site da fundação nos últimos meses. Na última quinta-feira ligámo-nos para fazer a experiência e o gongo soou impreterivelmente às 20h no nosso computador, chamando a atenção para o início da récita de A História do Soldado, de Igor Stravinsky, com o charmoso maestro Lorenzo Viotti a dirigir as cerimónias.
Um futuro diferente, esse, parece mais difícil de vislumbrar para Risto Nieminen e o director espera voltar à normalidade na temporada de 2021-22. “O que posso dizer é que o público que está agora na sala parece mais concentrado. Não temos praticamente telefones durante os concertos, não há tosses e acho que isso vem dessa ideia muito forte de estarmos a partilhar a mesma coisa no mesmo lugar, dessa ideia de comunhão. Gosto do facto de podermos transmitir por meios digitais, mas isso só sublinhou o meu amor pelo espectáculo ao vivo, essa comunicação extraordinária que só a arte e os artistas podem trazer.” E se Peter Gelb foi um inovador com o streaming do Met em 2006, isso também se deve ao facto de alguns encenadores já criarem produções a pensar mais na câmara do que no público na sala.
Síndrome maníaca de consumo
Há alguns indícios de que podemos vir a sentir-nos espectadores diferentes com os nossos corpos pós-pandémicos. O tema aflorou num “bate-papo virtual”, a que o Ípsilon assistiu no final do mês passado, entre a crítica de cinema brasileira Patrícia Mourão e a curadora portuguesa Marta Mestre, no âmbito da exposição Farsa. Língua, fractura, ficção: Brasil-Portugal, patente no Sesc Pompeia, em São Paulo. Com curadoria da programadora do Centro Internacional das Artes José Guimarães, em Guimarães, a exposição, que investiga a língua e a linguagem através da obra de 50 artistas portugueses e brasileiros, revelou essa clivagem a Patrícia Mourão.
“Havia muitos trabalhos que privilegiavam a boca do corpo. Filmes com planos fechados de boca, também muito próprios de uma produção brasileira dos anos 70. Ficava muito óbvio o estranhamento entre aquela imagética e o tempo em que a gente estava”, explicou numa conversa telefónica. “A primeira leva de aberturas de exposições veio com Farsa. Então, depois de sete meses, reaprendendo a estar na rua, no espaço público, encontrar aquele tipo de imagens era quase didáctico sobre o corte que tinha acontecido — porque a exposição mostrava exactamente aquilo que a gente precisava esconder. Foi absolutamente perturbador, como se tivessem dois tempos que não pudessem conviver mais.”
Com a quarentena, a curadora de cinema desenvolveu também uma espécie de fobia em relação às imagens em movimento. “Durante um tempo longo, cinco a seis meses, não consegui ver nada no computador em movimento. Só conseguia ler. Acho que isso teve que ver com um excesso de consumo de imagem em movimento, porque a gente viveu uma espécie de síndrome maníaca de consumo de imagens, de produção de imagens. Foi uma forma de lidar com todas as angústias de Março, Abril e Maio, porque houve um corte brutal no fluxo do tempo. Talvez ali estivéssemos só numa espécie de vómito não processado.”
“Durante um tempo longo só conseguia ler. Isso teve que ver com um excesso de consumo de imagem, porque a gente viveu uma síndrome maníaca de consumo de imagens, de produção de imagens. Talvez estivéssemos só numa espécie de vómito não processado”Patrícia Mourão, crítica de cinema
Nas suas rotinas anteriores à pandemia, Patrícia Mourão já passava muito tempo a ver imagens, mas o que era uma pesquisa individual tornou-se um excesso de programação que invadiu o computador pessoal. “Vinha da Whitechapel, de Serralves, do MoMA, e eu, que não estava mais restrita aos meus percursos físicos em São Paulo, de repente tinha uma live, um curador, um artista, para ver todos os dias. A minha programação cultural, ou o meu consumo cultural, se expandiu muito. Isso foi absolutamente aterrorizante. Estafante. Aí bloqueei.”
Nesse boom produtivo a que se assistiu, encontrou um esbatimento da diferença. “A sensação que tenho é que o que vi em 2020, de um artista londrino, brasileiro, nova-iorquino ou português, parece que se aproximou muito mais. Houve uma adaptação às plataformas muito pouco questionada. Todo o mundo se adaptou muito rapidamente à linguagem do Instagram, à linguagem das stories, num esforço de comunicar muito rápido.”
Remediação digital
Há uma semana, no lançamento do seu último livro, o jovem filósofo João Pedro Cachopo explicou ao público da livraria Snob, em Lisboa, como a pandemia provocou uma alteração da percepção do próximo e do distante. A Torção dos Sentidos, Pandemia e Remediação Digital, pequeno livro editado pela Documenta, começa por fazer um mapeamento das posições filosóficas sobre a pandemia e está escrito de forma simples com algum humor. Está lá o erro de Giorgio Agamben, que considerou a epidemia uma invenção, embora não tenha deixado de fazer perguntas importantes; a hipótese de Slavoj Žižek, que vê a pandemia como um potencial golpe fatal para o sistema capitalista; a suspeita de Byung-Chul Han, para quem a pandemia pode suscitar uma viragem autoritária do mundo ocidental por causa do aumento de medidas de vigilância. Entre optimistas e pessimistas, em que se inclui a hipótese de decrescimento de Bruno Latour, mas também nomes menos conhecidos como Emanuele Coccia, Peter Szendy, Catherine Malabou, João Pedro Cachopo procura trazer ângulos diferentes para a discussão.
O livro é provocador ao afirmar que a pandemia não é em si mesma o acontecimento desta crise. “A minha intuição é que o cerne do acontecimento não é simplesmente a pandemia enquanto fenómeno físico, médico, mas as consequências das medidas tomadas para conter a pandemia: o isolamento físico e o uso intensificado de tecnologias de remediação digital [representação de um media por outro media]”, diz ao Ípsilon. A seu ver, foram esses dois factores que contribuíram para a alteração da percepção do próximo e do distante. “O que, por sua vez, vai afectar uma série de aspectos da nossa vida, os tais sentidos da imaginação a que faço alusão logo no título: a viagem, o estudo, o amor, a comunidade e a arte. São apenas sentidos da nossa existência, que são inconcebíveis sem essas relações de proximidade e distância. O que é a viagem senão a aproximação do remoto? O que é o amor senão uma aproximação de uma alteridade? O que é a comunidade senão a criação de elos de proximidade?”
Mas na arte, sublinha o também musicólogo, o discurso ficou refém de uma espécie de prós e contras da remediação digital como o live streaming. “É muito importante abandonar os termos desse debate e perceber que a questão é mais complexa. A relação da arte com a tecnologia pode ter bastante a ganhar através dos novos media, mas esse ganho não tem que ver meramente com a transmissão.”
Para João Pedro Cachopo, sobretudo no caso das artes do espectáculo, importa compreender como a diferença entre o próximo e o distante não tem apenas que ver com o contraste entre o espectáculo ao vivo (com os intérpretes próximos do público) e o espectáculo remediado (com os intérpretes distantes do público). “O recurso a tecnologias de remediação no contexto de espectáculos ao vivo já convoca o distante. E esse distante pode assumir diversas formas — o ‘afastado’, o ‘remoto’, o ‘fictício’, o ‘inquietante’, o ‘primordial’ —, algumas delas metafóricas. Nada disto é inteiramente novo: as tecnologias cuja exploração a pandemia tornou necessária já existiam e as soluções em que são utilizadas estão mais esbatidas do que nós equacionamos. Mas os debates a que essa exploração sistemática dá lugar são potencialmente novos e acredito que possa haver uma abertura no que diz respeito à percepção do que significa assistir a um espectáculo.”
O filósofo e musicólogo dá o exemplo da ópera Twilight: Gods, a adaptação de O Crepúsculo dos Deuses de Wagner que Yuval Sharon montou no parque de estacionamento da Michigan Opera Theater em Detroit. O crítico do New York Times, Joshua Barone, escreveu que teve de combater as lágrimas, depois de eclipse da ópera que durou vários meses, nesta espécie de mistura entre a ópera de câmara e a casa assombrada: “Alguma coisa vai emergir deste momento de crise na ópera. Espero que o que quer que seja se pareça com Twilight: Gods.”
O livro de João Pedro Cachopo propõe que estejamos o mais próximo do distante possível, como cidadãos ou como espectadores. “É um repto a que a imaginação não se deixe capturar pelos imaginários nacionais, que permaneça o mais próxima do distante que puder. É o horror dos nacionalismos, como refiro no final, e não uma distopia tecnológica, o que devemos temer, hoje, em primeiro lugar.”
Distopia e militância
O dramaturgo Tiago Rodrigues, director do Teatro Nacional D. Maria II, acabou de apresentar em Lisboa, no CCB, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, escrita e encenada já durante a pandemia, que aborda o perigo do fechamento no nacionalismo com o aparecimento dos discursos populistas em Portugal — “é uma viagem distópica do que poderá ser os próximos oito anos de vida política no país”.
Passada no território alentejano de Catarina Eufémia, numa Baleizão que avançou até 2028, conta a história de uma família que tem a tradição de matar fascistas, já lá vão mais de 70, até que é confrontada com a dúvida de um dos seus membros.
Tiago Rodrigues sente que dos oito actores da peça emana uma energia especial, porque têm sede de fazer teatro. Essa é a diferença mais visível passados dez meses sobre o início da pandemia: “Quando meses de contacto com o público se vão reduzir a duas noites, é completamente diferente. Foram pessoas que se isolaram durante semanas para garantir que estavam protegidas agora. Isto é uma energia que é palpável. Vivemos sucessivos cancelamentos desde Maio, quando a peça devia ter sido estreada. Conseguimos encontrar duas noites no CCB e apresentá-la ao público em Lisboa, antecipando a estreia no D. Maria em Abril.”
Se os actores estão ávidos de teatro — a peça devia estar numa digressão em França com a apresentação de 47 espectáculos —, Tiago Rodrigues encontra a mesma urgência no público. “Muitos artistas sentem que o público quer saciar-se de teatro, não só por causa deste ano péssimo que vivemos mas também porque está mais militante — ou seja, vai ao teatro como uma forma de apoio àquela parte da sua vida e às pessoas que a preenchem. No CCB foi nítido que o público queria absolutamente estar ali. Não é fácil neste momento sair de casa e tomar a decisão de ir para uma sala como o Grande Auditório, onde vão estar 600 pessoas, por muito que as regras de segurança sejam rigorosas. O que reparo em muitas salas onde tenho ido é que o público vem com essa energia. Vem de peito aberto para apoiar aquela parte da nossa sociedade e com uma grande abertura como espectador.”
Se há algo que vai acontecer às formas teatrais — “Não tenho dúvidas de que a pandemia vai transformar o modo como fazemos teatro, como vemos teatro, como artistas e público se relacionam” —, Tiago Rodrigues lembra que o teatro foi fortemente afectado pela ausência de público ou pelas limitações à sua presença e que ainda é difícil fazer profecias. Em relação a coisas mais práticas, pensa que a antecipação dos horários é algo que poderá estar para ficar e que vê como uma sequela positiva. “No futuro os horários serão mais cedo e isso aprendemo-lo agora com o recolher obrigatório, mas sobretudo por causa da felicidade do público. Já fazíamos alguns espectáculos às sete da tarde, mas percebemos agora que podemos antecipá-los a todos.”
Com Patrícia Mourão a sublinhar que se assistiu durante a pandemia a uma uniformização do discurso em volta de determinados temas, a curadora concorda com João Pedro Cachopo de que é preciso pensar a tecnologia como um aliado. “Subjectividade tecnológica não é necessariamente um desagenciamento, uma perda de poder crítico. Acho que uma subjectividade ecológica, ou uma apropriação e manipulação de uma subjectividade tecnológica, pode vir junto com uma preocupação ecológica.” Nestes universos, surgem seres híbridos, ciborgues, uma mistura entre humano, animal e tecnologia, de que os filmes do português Pedro Neves Marques são um exemplo.
Podemos imaginar o que vem aí depois da pandemia? — perguntamos a José Gil. “Sim, mas a curto prazo; ter uma ideia a médio e a longo prazo já não é possível. Quando me pergunta o que é que vai ficar do que a pandemia nos ensinou, fico com a impressão que nada é para ficar, porque os tempos que vêm serão de uma grande instabilidade. Uma das quase certezas que podemos ter é que a instabilidade vai tornar-se, paradoxalmente, cada vez mais regular. O que significa que não vamos ter, afinal, uma sociedade digital.” É o que o filósofo de O Tempo Indomado defende no ensaio que fecha o livro e a que chamou Catástrofe e Revolução. “A grande transformação em que a economia e a política ficassem dependentes dos dispositivos digitais não vai simplesmente acontecer pela simples razão de que a instabilidade vai acelerar por causa das alterações climáticas.”
A pandemia funcionou como o arauto da catástrofe que pode conduzir à revolução. “Inaugurou o tempo da instabilidade permanente, que se instalou para ficar. E isto é uma novidade absoluta”, escreve o autor. “Nós estamos sempre à espera — afirma ao Ípsilon — de voltar a uma sociedade estável, porque tudo o que vivemos até agora, em todas as sociedades humanas, se projectou sobre um fundo de estabilidade, de regularidade, mas as alterações climáticas vão criar um tipo de quotidianidade que vai subverter tudo. Vai haver imensas deslocações, perturbações, cada vez mais próximas umas das outras: um cataclismo nas Filipinas, uns meses depois mais incêndios na Califórnia ou uma nova seca extrema no Alentejo. Cada vez mais haverá uma globalização da catástrofe.”
Nada desta visão pode ser considerada pessimista? “Não, não, não sou pessimista. Chamava pessimista ao António Guterres? Era disto que falava [o secretário-geral das Nações Unidas] no último discurso e no penúltimo. Essa é a única condição para que possamos enfrentar lucidamente o que aí vem e que ameaça destruir-nos. Estou a dizer isto porque leio os cientistas. Há uma coisa de que as pessoas não se dão conta — porque para se poder viver é preciso não se darem conta —, mas o anúncio do fim do mundo foi feito pela primeira vez na história da humanidade por cientistas. Não foi por religiosos, fanáticos, milenaristas, profetas, é a ciência que diz: a extinção da espécie é uma possibilidade provável, se não fizermos nada. Se alguém dissesse em Setembro de 2019 que vinha aí uma pandemia extraordinária que iria paralisar a economia global, nós dizíamos-lhe imediatamente: ‘Mas tu és de um pessimismo extraordinário...’”
Por isso, cabe ao filósofo apelar à acção, como é proposto nas últimas páginas do ensaio, num texto em que não deixa de citar a filósofa Isabelle Stengers e o seu livro No Tempo das Catástrofes: “A palavra ‘revolução’ reapareceu no vocabulário ecológico e científico, mas hesita ainda em reocupar um lugar na terminologia política.”
Neste tempo do Antropoceno, surgem obras como o Concerto para Bioceno, também chamado Concerto para 2292 Plantas, produzido pelo Gran Teatre del Liceu, a ópera de Barcelona, uma intervenção do artista visual Eugenio Ampudia, que correu os jornais mundiais quando foi apresentada em Junho e está agora na capa do Ípsilon, mostrando como se expandem as questões do pós-humano, da multiespécie, do hibridismo. “Ficou muito mais comum um discurso em que se está ligando uma questão ecológica com uma questão tecnológica, com uma modalidade meio ciborgue, não essencialista. Seres entre o animal, o humano e a tecnologia. A própria ideia de ficção científica, uma abordagem do presente e do passado que não passa mais por uma recuperação histórica, mas por uma ficcionalização especulativa de futuros, em que tecnologia e animalidades estão mais implicados. São coisas superinteressantes e muito potentes”, comenta a curadora brasileira. “É possível que a gente saia dessa com um tipo de aguçamento para o espaço e para o nosso corpo no espaço que talvez tenha sido o grande sonho de boa parte da arte contemporânea na segunda metade do século XX.”