Ana Cristina Pereira (Texto) e Adriano Miranda (Fotos), in Público on-line
Entrou a ressacar. Passou pelo Programa de Apoio ao Recluso Entrado Toxicodependente e pela Unidade Livre de Drogas. Cumpriu os passos. Fez teatro. Uma vez liberto, vai às prisões como voluntário e como mediador. O seu sonho é criar uma comunidade para quem sai da cadeia e não tem cá fora um familiar ou um amigo que lhe dê a mão.
Não é um discurso comum sobre a prisão, o de Abel Sousa. “Bendita a hora que fui preso. Se não tivesse sido preso, se calhar não estava aqui hoje. Ainda fui a tempo de me lembrar da educação que tive. O mundo das drogas podia ter-me flipado todos os neurónios. Eu podia ter ficado sem capacidade para dar a volta.”
Usando a terminologia do criminologista Cândido Agra, não era um delinquente-toxicodependente, mas um toxicodependente-delinquente, com família mais estruturada, a cometer crimes para consumir. “Eu tive uma infância espectacular. Nunca me faltou nada.” Tão-pouco na adolescência. Tinha a família, os amigos, a namorada, a ambição do futebol profissional. “Estava no Boavista com pré-acordo para o Sporting. Achava que o futebol me ia dar tudo.” De súbito, uma grave lesão num joelho, três cirurgias. “Vi o meu sonho cair por terra.”
Tentava convencer-se de que não era o fim do mundo, que podia trabalhar com o pai da rapariga com quem namorava desde os doze anos, ali, em Penafiel. “Fui caço com a melhor amiga dela. Estava a dois meses de me casar. Tinha 19 anos.” Que fazer? “Sempre fui um baldas nos estudos.” Tinha de pensar. “Isolei-me no Algarve e, numa noite, muito bêbado, experimentei heroína.”
Volvidos quase 30 anos, já lhe custa explicar o que sentiu naquela primeira vez. “É o paraíso. A heroína abafa os problemas. Dentro do efeito, a vida há-de continuar.” A partir dali, andou “atrás daquela primeira sensação”, sem jamais a reencontrar. Num instante, o corpo a pedir mais, a ressaca, a urgência de calar.
A degradação progressiva
No princípio, ainda conseguia esconder. Pouco a pouco, a família percebeu. “É mentiras. É dormir fora de casa. É eles a andar atrás de mim.” Os pais tentavam libertá-lo. E ele acedia. Sujeitava-se a desintoxicações. Ficava meses em comunidades terapêuticas. “Aguentava-me um ano, dois, recaia. Um ano, dois, recaia.”
No topo da lista dos episódios de que se arrepende está o roubo do cartão dourado do pai. “Tinha 23 ou 24 anos, gastei doze ou treze mil contos em nove ou dez dias com drogas, hotéis, restaurantes, carros.” Comove-se ao falar no pai. “Sempre fez tudo por mim.” Não vacilou nem quando, cancelado o cartão, a polícia apanhou o filho a tentar pedir um cheque em seu nome. “Quando cheguei a casa, deu-me um abraço e teve um ataque de miocárdio. Foi do choque. Peguei nele e levei-o para o hospital. Estava desesperado. Pus-me a dizer que, se ele não sobrevivesse, matava os médicos todos.”
Aquela aflição não o fez mudar de vida, pelo contrário. Enterrou-se ainda mais, apesar de todos os apelos dos pais e dos irmãos. “Eu nunca fui abandonado por eles. Eu é que senti que tinha de os abandonar porque estava a fazê-los sofrer demasiado. Se me queria matar, matava-me sozinho.”
Já não era só a heroína. Metera-se na base de cocaína. “Vivia no mundo da droga. Dormia ao relento, nos carros.” Só ia a casa de meses a meses, cada vez mais magro, mais desdentado, mais maltrapilho. “Tive de começar a roubar, a entrar em esquemas, a fazer transporte de droga.” Pouco antes de morrer, o pai ainda lhe disse: “Esperei ver-te recuperado, mas, neste momento, o que vejo à minha frente não é o meu filho, é um cadáver ambulante.”
Mais de 400 processos
Quando o levaram para a prisão, contava 36 anos. “Fiquei muito tempo na cadeia porque tinha muita coisa para responder. Mais de 400 processos.” Quase tudo por furtar em supermercados e por atestar o depósito e não pagar. “Fui muitas vezes caço nesses anos todos. Era detido. Ia à polícia. Isto ia acumulando.”
Havia de ficar encarcerado quatro anos e nove meses. No início, revolta. “Entrei a ressacar. Meu Deus!” Um ano antes, em 2007, o Estabelecimento Prisional do Porto criara o programa Observação (OBS), entretanto renomeado Programa de Apoio ao Recluso Entrado Toxicodependente. Naquele lugar, fazem a desabituação física das ditas drogas de abuso e a recuperação psicológica.
Abel pouco tem a dizer sobre o primeiro mês. “É só mediação. É voltar a raciocinar.” Ficavam naquele espaço 22 horas por dia, só dispunham de duas horas de recreio a céu aberto e de uma visita semanal. Ao fim de um a três meses, os reclusos podem passar às áreas comuns. Abel preferiu ficar até abrir vaga na unidade livre de drogas (ULD), opção que existe em poucas cadeias. “Senti que já chegava, que tinha de dar um rumo à minha vida. Nos pavilhões, droga é porta sim, porta não. Quem não cai na tentação?”
Este segundo programa combina actividades educativas, ocupacionais e terapêuticas. “Na ULD foi um crescer. Estamos presos, mas, ao mesmo tempo, acabamos por nos conseguir libertar. As terapias, as regras, a vigilância, o controlo, tudo tem um objectivo.” Foi ultrapassando as várias etapas: novo membro, membro responsável, velho membro, responsável de unidade, mentor. Não diz que foi fácil. Ao fim-de-semana, os técnicos não trabalhavam. E Abel, enquanto responsável de unidade, insistia nas terapias de grupo. “Alguns não queriam.” “Podias dar uma folga”, diziam-lhe. “Ouve lá, tu ao sábado, drogavas-te, ao domingo drogavas-te, aos feriados drogavas-te. Não vai haver reunião porque queres dormir mais um bocado? Não! Comigo isso não funciona!”
No seu caminho de toxicodependente em recuperação, ajudou trabalhar num projecto da PELE – Espaço de Contacto Social e Cultural. Entrou no espectáculo Entrado (2009/2010). Foram nove meses num exercício de autoconhecimento e expressão, sentido ético e artístico. O público foi desafiado a entrar na prisão e a fazer um percurso, confrontando-se com percepções e vivências daquele lugar, culpa e perdão. Que orgulho em cada um dos dias de espectáculo, que levou 200 pessoas por noite à prisão. “Foi mais um desafio superado.”
Abel sentiu-se ligado ao director artístico, Hugo Cruz, à adjunta, Maria João Mota, ao director musical, Artur Carvalho. “São pessoas que nos transmitiram que conseguimos.” Um dia depois de sair da prisão, em Agosto de 2012, estava a ligar a Hugo Cruz. “Tenho trabalho para ti em Setembro”, disse-lhe. Era o Mexe – Encontro Internacional de Artes e Comunidade. Ia carregar material e ajudar a montá-lo. Desde então, a PELE chama-o. “Foram eles os primeiros. Ganhar algum dinheiro quando saí da cadeia foi com a PELE.” Trabalhos pontuais, já se vê. “Não era um sustento viável”.
Tinha de arranjar algo mais consistente. “Pedi a um primo que trabalhava em ar condicionado. Ele estava com um pé atrás – as minhas passagens pelos negócios da família tinham sido sempre drásticas, havia recaídas, roubos e afins –, mas ele acreditou em mim. Trabalhei com ele três ou quatro anos.”
O regresso à prisão
Agarrou a oportunidade de voltar à prisão, noutros moldes, os que idealizava. Em 2014-2016, a PELE desenvolveu o Ecoar – Empregabilidade, Competências e Arte em quatro estabelecimentos prisionais. Abel assumiu o papel de mediador. “O recluso estranha quem chega. Eu podia dar a minha experiência. Saber que estava ali alguém que foi igual a eles era meio caminho andado para a confiança, facilitava o trabalho do mundo artístico.”
A ideia era orientar a criação artística para a aquisição de competências de empregabilidade. E aquilo fazia-lhe sentido. “Reaprender a trabalhar em equipa, a estar próximo do outro, a saber ouvir o outro, a olhar para o outro, a ver qualidades no outro: ‘Não és só um ladrão, também sabes ser humilde, ter uma conversa franca.’ Foi isso que o teatro me deu.”
Falando sobre prática artística em meio prisional, Hugo Cruz diz o mesmo: “O que a criação artística traz é, muitas vezes, um espaço para as pessoas estarem em contacto consigo e com os outros, para experimentarem outras formas na relação com os outros. Quando estou a ter um ensaio de música, de teatro ou de dança, tenho oportunidade de criar situações que me permitem reformular as minhas visões de vida, perceber que posso funcionar de outra maneira.”
Não quer romantizar. Não diz que a arte salva. “Não vai resolver o problema do emprego, a percepção negativa que muitas vezes se tem sobre quem esteve preso.” Pode, sim, “preparar, fortalecer estas pessoas para estarem nessas situações com consciência de si mesmas e dos seus direitos”.
Nos vários projectos que desenvolveu em prisões, Hugo Cruz viu pessoas que não iam à escola passar a fazê-lo. “Também se trabalha uma segurança. A pessoa começa a perceber que pode ocupar esse espaço. Muitas vezes, não o fazia, não por preguiça, por toda a vida achar que aquele espaço não é para si.”
Refizera a vida. Um mês depois de sair da prisão reencontrara Sara, com quem tivera um curto envolvimento na adolescência. Ela tinha quatro filhos – dois pequenos e dois adolescentes. “Foi mãe muito cedo. Sempre criou os filhos sozinha. Sempre trabalhou. Os filhos têm uma educação tremenda. Também me apaixonei por ela por isso.” Ao fim de dois meses, estavam a viver juntos. “Os miúdos foram crescendo a ver-me como pai deles e eu a vê-los como meus filhos. Para mim, são meus filhos. Fomos crescendo como família.”
Nunca pôs o passado atrás das costas. Foi fazendo voluntariado na Pastoral Penitenciária, da Igreja Católica em Portugal. Às vezes, pais de jovens consumidores de drogas pedem-lhe ajuda. “Miúdos de 16 anos têm de ser desmontados. Estão a viver o melhor da droga. Depois vem o resto – as mentiras, os roubos, a desgraça.” Confronta-os com um futuro hipotético que reflecte o seu passado.
Já em 2019, a PELE tornou a desafia-lo para um novo projecto, o Laboratório de arte e cidadania. Ia voltar a trabalhar com jovens nas prisões e experimentar trabalhar com jovens em centros educativos, com enfoque naqueles com percursos de insucesso e abandono escolar, uma vez mais, tendo em vista a empregabilidade. Veio a pandemia de covid-19. “A gente tenta através do Zoom fazer reuniões e chegar a eles lá dentro, mas não é igual nem para lá caminha.”
Um sonho maior
Tinha assumido a exploração de um café perto de casa, em Galegos, Penafiel. Enquanto ali está, a servir quem chega, Abel vai pensado noutra hipótese. “O meu sonho é ter uma casa para ajudar quem sai da prisão e não tem suporte. Quem não tem um pai, uma mãe, um irmão, alguém que lhe deite a mão, volta para o crime e para a droga.”
Planeia criar uma associação e recorrer a dinheiros públicos. Tem uma quinta que, para já, é só um grande terreno e uma casa em ruínas. “Vou montar uma comunidade terapêutica de auto-sustento.” As terapias ocupacionais vão incluir plantar batatas, feijão ou cenouras e cuidar de galinhas, coelhos ou porcos. Serão parte de programa de busca de harmonia entre trabalho, autocuidado, lazer e descanso. “Com as terapias, vão descobrir em que são bons.”
Aos 48 anos, está confiante que descobriu em que é bom. “O meu nome já chegou a muita gente. Há famílias que me têm pedido ajuda e eu tenho ajudado. Já falei em colóquios de toda a maneira e feitio. Isto dá alento.” Mas a comunidade é o futuro. O presente é a pandemia. “Neste momento, já ponderámos fechar o café. Primeiro que se sobreviva, é terrível. Já ganhámos dinheiro como este café, mas agora não. Tem dado para as despesas. Quando não der para as despesas, fechamos a porta. Não vale a pena.”
O programa Incorpora, da Fundação “la Caixa”, em colaboração com o BPI e o IEFP, tem como objectivo fomentar o emprego para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nesta série de seis reportagens apoiadas, o PÚBLICO apresenta um conjunto de retratos representativos dos diversos grupos-alvo da iniciativa. As reportagens são guiadas por critérios editoriais, sem qualquer relação directa com os apoios atribuídos pelo programa.