17.12.20

“Muitos já fecharam e outros estão pela garganta”: o aperto no coração comercial do Porto

André Manuel Correia e Rui Duarte Silva, in Expresso

Dezembro é o novo janeiro: assim se pode traçar o cenário vivido por estes dias na Rua de Santa Catarina. Está cheia de gente, mas praticamente vazia de clientes. A carteira de quem compra parece também estar confinada, enquanto os comerciantes lutam pela sobrevivência. Parece o apocalipse para quem vive do que vende — e, entre a multidão, o Expresso encontrou um profeta do fim dos tempos no templo do comércio da Invicta

“In my eyes / Indisposed / In disguises no one knows / Hides the face (..) / Black hole sun / Won't you come / And wash away the rain?” A voz não tem exatamente o mesmo timbre barítono de Chris Cornell, mas a melodia e o estilo grunge da emblemática canção dos Soundgarden é facilmente reconhecível ao ecoar das cordas da guitarra de um músico de rua, com o estojo aberto e quase vazio de moedas, a pautar o ritmo que se faz sentir em Santa Catarina, encoberta sob um céu cinzento. O tempo e os tempos nunca foram tão incertos. O Expresso está no coração do comércio do Porto para sentir o pulso ao negócio, onde exala o cheiro a castanhas assadas bem quentes, insuficientes para aquecer o lucro. É que também os clientes de Agostinho Pinheiro se esfumaram.

Tem 51 anos e metade da vida passou-a à volta do fogareiro, a embrulhar os cartuchos de uma dúzia com papel de jornal, vendidos a dois euros e meio. As notícias, por estes dias, não são boas: os fregueses não estão em brasa e de meia em meia hora, com sorte, lá aparece um. “Este mês está melhorzinho, o resto foi um desastre”, ilustra ao Expresso o vendedor ambulante que dali não arreda pé, mesmo com o negócio travado todos os dias, entre as nove da manhã e as sete da tarde. Num ano bom, estaria a “despachar” 60 quilos por dia, mas em 2020 “a coisa arrefeceu” para os 20.

São imensos os transeuntes que deambulam pela rua mais movimentada da Invicta, quase todos de máscara, só olhos à mostra para ver as montras, só um pouco mais contidos do que aqueles escassos que seguram sacos, alguns poucos lá carregam um ou dois, bem mais leves do que noutros anos, numa quadra festiva em que a carteira, para muitos, está bem mais vazia e com os gastos também confinados.

É o caso de Ana, para quem as compras “são mais reduzidas, é só mesmo para a família mais direta”. A consoada vai ser partilhada apenas com o marido e a filha, “mesmo os sogros já não dá”, mas ainda assim não esquece os sobrinhos. É por eles que anda na Rua de Santa Catarina à caça das “últimas compras de Natal”, celebração que este ano não vive com “tanta euforia”: “É só mais uma coisinha simbólica porque a maior parte das famílias vão estar mais sozinhas”, lamenta Ana Martins, sempre precavida. “Não tiro a máscara, desinfeto as mãos e não tenho contacto verbal com ninguém, a não ser para pagar”, assegura a portuense de 44 anos.

O NEGÓCIO “ESTE ANO ESTÁ MORTO E É PARA ESQUECER”

Os lojistas resistem à tempestade daquilo a que alguns chamam “novo normal”, mas a normalidade é tão rarefeita como a clientela. A época de Natal traz, por tradição, presentes fartos para quem vive do que vende, mas “este ano está morto e é para esquecer”. A sentença é dada por Branca Cunha, proprietária da Casa Othello, “a mais antiga aqui da rua”, de portas abertas desde 1923. “Nunca passei por isto”, frisa a comerciante de 84 anos. “Já tive dias em que abri e fechei a zero, coisa que nunca me tinha acontecido em 43 anos”, complementa.

São tão poucos os que entram no histórico estabelecimento de loiças, vidros, artesanato e têxteis regionais que, neste negro mês de dezembro, Branca só precisa da ajuda de uma funcionária. “Já fomos aqui cinco pessoas e isso era na altura em que eu ainda podia trabalhar bem, agora já não posso tanto, por causa dos meus olhos”, enquadra a lojista, a fazer das tripas coração para não fechar. “Estou a desfazer-me do que tenho e que amealhei ao longo dos anos para pagar à empregada, além das contas”. Este mês, sustenta, “está pior do que um janeiro normal”, prossegue, notando uma “ligeira melhoria, muito pequena, muito pequena”, sobretudo porque “as pessoas não têm dinheiro, está muita gente desempregada, então compram menos e coisinhas mais económicas”.

Branca Cunha é a proprietária da loja mais antiga da Rua de Santa Catarina e não tem memória de um ano tão mau para o negócio

RUI DUARTE SILVA

Às vezes, na Casa Othello, ainda “aparece um turista ou outro, mas faltam os espanhóis, os brasileiros”, o que é mais um fator a “atrapalhar”, aliado ao horário reduzido para trabalhar ao fim de semana e à restrição de circulação entre concelhos. “Quem é que vem de fora a uma loja que está aberta das 10h às 13h?”, interroga Branca Cunha, encontrando no sarcasmo a justificação para as medidas impostas ao sector: “O bicharoco costuma vir cedo, à uma da tarde ao fim de semana, porque pelos vistos tem muita coisa para fazer”.

Branca só tem um desejo para este Natal e para o ano que aí vem: “Que vá de vez esta chaga! Esperemos dias melhores, especialmente para os mais novos, porque há muitos negócios que ainda estavam a começar. Muitos já fecharam e outros estão pela garganta”.

O APOCALIPSE PARA QUEM VIVE DO QUE VENDE

Quem entra na Rua de Santa Catarina dá logo de caras com o Mau Feitio. “A culpa do nome é da pessoa que está ali na cozinha, a minha sogra, que diz que nos momentos de stress tenho sempre mau feitio. E então pensei: ‘Pronto, vão comer com o meu mau feitio’”, explica José Cardoso, entre risos, ao Expresso. É ele o proprietário do restaurante snack-bar, inaugurado há dois anos, onde está atrás do balcão com mais cinco funcionários. A quebra na faturação, em relação a 2019, atinge os 70%. “Tentamos aguentar, mas começa a ser complicado. Estamos a lutar para sobreviver”, admite o gerente de 47 anos, relativamente a estes “tempos duros para quem tem uma casa”. Recorda que “há um ano tinha a casa cheia três vezes à hora de almoço e os clientes faziam fila. Era sempre seguido, sempre seguido, sempre seguido. Agora não”. Agora “dá para as despesas e mal”.

Agora “não há turistas” e, “a partir das 17h, a rua parece um deserto”, retrata o pequeno empresário, responsável por “deitar olho a tudo”, que é quase nada, desde as 9h às 23h. “Passamos noites aqui em que fazemos duas ou três refeições”, confidencia José Cardoso, não escondendo as dificuldades da família. “Nós se não comermos um bife, comemos uma sopa. Se não pudermos comprar um par de calças, não compramos. Se não houver prendas, também ninguém morre”, atira o detentor do Mau Feitio, sem hesitar em apontar o dedo à falta de apoios. “Não sei o que é que o Estado pensa. Talvez pensem que por sermos gerentes de um pequeno negócio sejamos grandes capitalistas. Mas não somos e trabalhamos mais do que qualquer funcionário”, assevera José. Tem medo do fim, do autêntico apocalipse dos trabalhadores. “O que eu não quero é perder isto, ter de entregar a casa.” Tem medo de que “a vacina não venha a tempo de curar o negócio”.

Bartolomeu Dias não tem medos: “Jesus Cristo é o único remédio”. É brasileiro, nasceu na cidade baiana de Maragojipe há 55 anos e há três que atracou no Porto, onde vive com a esposa. O Expresso encontrou-o na Rua de Santa Catarina a pregar, com dois cartazes pendurados no corpo. Um, pousado sobre o peito, anuncia: “O senhor Jesus Cristo vem julgar o mundo. Prepare-se. O tempo está acabando”. O outro, sobre as costas, alerta: “Os profetas de Deus estão clamando. Jesus Cristo está voltando”. No Brasil era professor de música e de artes, em Portugal está a terminar o mestrado em Ciências da Cultura. Bartolomeu não tem dúvidas: “Tenho a certeza absoluta que o ano de 2020 é um sinal. Os profetas Elias e Moisés já tinham avisado que isto ia acontecer. Isto é apenas o princípio das pragas apocalípticas que virão sobre a Terra”. Considera que “se vivêssemos sem matar, sem roubar, sem nos prostituirmos das mais variadas formas, sem todas as atrocidades de que somos capazes, então o mundo seria outro”, mas “as pessoas, hoje em dia, estranham o amor, estranham a cor da pele, e isso não é de Deus, é satânico”.

O relógio marcava as 15h quando coisa do demónio aconteceu no Majestic a 30 de novembro: teve de fechar portas (inaugurado no primeiro dia de dezembro de 1922, já foi considerado o sexto café mais bonito do mundo). Por ali passaram vários chefes de Estado, como o ex-Presidente francês Jacques Chirac ou o seu congénere brasileiro Juscelino Kubitschek . Por ali escreveu J. K. Rowling, fazendo nascer Harry Potter. “Acabámos por fechar temporariamente, não é definitivo”, esclarece o gerente Fernando Barrias. “Quando houver melhores condições a nível das restrições e quando houver sinais de algum turismo que possa estar a reaparecer no Porto, vamos tomar providências para abrir o mais rapidamente possível. Também não aguentamos estar tanto tempo fechados. Isto é só prejuízo”, reconhece o empresário, forçado a colocar os 24 funcionários do estabelecimento em lay-off, após uma “quebra na faturação de 85% ou 90%”.

“A entrada de clientes era muito pouca. A cada dia gerava mais despesa e prejuízo”, refere Fernando Barrias, lembrando que, noutros tempos, “nos melhores dias, formavam-se filas de 70 pessoas à porta”. Desfecho semelhante tiveram os cafés Guarany, nos Aliados, e o Marbella, na Rua de Santa Catarina, ambos detidos pelo mesmo grupo.

Quem, às vezes, costumava tocar no Majestic era Miguel Magalhães, músico de rua que faz de Santa Catarina o seu palco desde há quatro anos. “Sempre que está sol estou aqui. Desde que não chova venho sempre”, afiança o jovem de 22 anos, que vai mergulhando os dedos no teclado, desfiando um repertório que passa desde Coldplay a Yann Tiersen. “Toco um pouco de tudo. É aquilo que o pessoal conhece”. O estojo preto pousado no chão, com algumas moedas castanhas e umas poucas, bem pequenas, amarelas, mostram que “está muito pior”, “menos de metade”. Mas a música não pára. É a música que, por ali, vai desmascarando emoção e esperança. Como uma fé, é a música que aproxima as pessoas, que as faz parar, que as junta por breves momentos, enquanto os olhos não escondem alguns sorrisos. Depois seguem. A vida segue num tempo sem harmonia.